sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

«Os dias do abandono» de Elena Ferrante :: Opinião

 

Cheguei até este «Os dias do abandono» de Elena Ferrante por ter lido «Laços» de Domenico Starnone e numa pesquisa sobre o autor italiano, encontrei uma fofoca literária sobre como o livro de Ferrante era uma resposta do outro lado deste abandono, explorando a hipótese de terem sido marido e mulher, mas como a identidade de Ferrante permanece um mistério, este detalhe adensa o enredo em torno de ambos os livros. 

Resposta ou não, a verdade é que são inúmeros os pontos em comum e isso é muito curioso de se ir descobrindo, especialmente se lermos com pouco intervalo cada um dos livros. 
Eu já tinha apreciado muito o livro de Starnone, tanto que o reli este ano, mas quando peguei neste «Os dias do abandono» senti que tinha entrado numa dimensão maior da dor, numa espiral opressiva que eleva a definição de abandono.

*
"A minha família de origem era sentimentalmente ruidosa, demonstrativa, e eu, sobretudo durante a adolescência, até mesmo quando ficava muda e com as mãos a tapar os ouvidos (...) sentia a opressão de uma vida em silêncio em que tudo parecia tornar-se objeto de exibição por meio de algumas palavras demasiado veementes ou de um movimento pouco sereno do corpo. Assim, aprendera a falar pouco e depois de refletir, a nunca ter pressa, a não correr sequer para apanhar o autocarro, a prolongar o mais possível os meus tempos de reação, preenchendo-os com olhares de perplexidade e sorrisos de incerteza.

Na urgência de compreender, Olga, a quem a família histriónica e gesticulante, ensinou a calar e a aumentar o tempo de reacção, protegendo-se, tenta observar ao microscópio, ano após ano mais de 15 de casamento que acabam abruptamente. Inicialmente, "(...) tudo isso me fazia sentir como um pugilista que não se lembra dos gestos de luta apropriados e vagueia pelo ringue com as pernas moles e baixando a guarda."

De olhar perplexo, pernas moles e cheia de incerteza, Olga não encontrava nada que não assinalasse as consequências práticas do abandono. Foram horas longas, acompanhada por uma multidão de palavras mortas."

A narrativa de Ferrante esmaga e centrifuga o leitor, tal é a intensidade do abandono em que Olga se encontra. Um abandono tão espesso e tão cheio de camadas, que existe quase uma desapropriação de si mesma, das suas vontades, do seu Eu e isso é totalmente visível pela forma cavalgante como o enredo se adensa, engolindo seja o que for que exista para além daquele sofrimento que tudo envolve e enegrece.

As palavras mortas aquelas que disseram e já nada valem ou as que gritaram na febre do abandono, nada valem ou alteram o passado, a frustração e as explicações que não preenchem e também Ferrante foco a espessura da dor e do abandono com reflexões sobre o rotineiro do dias: "um contador da vida que passa deixando um rasto de angústia", associando esse contador ao corpo, tal como é referindo em «Laços» o corpo do outro como estranho e invisível. E a incredulidade de tomar consciência que quando se deixa de ver o outro, deixamos de nos ver a nós. É o casamento que anula o indivíduo ou há uma predisposição intrínseca numa das partes?

No livro de Ferrante há uma aspereza maior, especialmente associada à maternidade, esse evento que altera o casal, a vida, mas mais ainda o corpo da mulher e que também aqui é questionado, tal como no de Starnone como um marco que redefine (e condena?) o casal.

"E registava também, entre as parcelas das contas, a intervalos, o meu estado de espírito: uma bola de comida que os meus filhos mastigavam ininterruptamente; um bolo feito de matéria viva que amassava e amaciava a todo momento a sua substância viva para permitir a duas sanguessugas vorazes que se alimentassem de mim, deixando-me na pele o cheiro e o sabor dos seus sucos gástricos. O nojo da amamentação, dessa função animal. E, mais tarde, os vapores mornos e adocicados das papas. Por mais que me levasse, aquele mau cheiro a mãe não me saía do corpo. Mário às vezes colava-se a mim, abraçava-me e possuía-me ensonada, também ele cansado do trabalho, sem sem emoção. Fazia-o, atirando-se à minha carne quase ausente, que sabia a leite, a bolachas, a farinhas, cheio de um desespero pessoal que aflorava o meu sem o reconhecer. Eu era o corpo de um incesto, pensava atordoada pelo cheiro do vomitado de Gianni, era a violação da mãe, e não a posse de uma amante."


É realmente uma escrita brilhante, rica e complexa que vai ao fundo de cada interrogação e por isso mesmo, dura e até bruta, explorando, na mesma medida, tanto o supérfluo como a essência, deixando desde o início essa pergunta: numa relação o que é supérfluo e o que é essencial? E pode haver quem tenha mais prioridade no sentir?

"Sim, era estúpida. Tinha os canais dos sentidos obstruídos, a corrente da vida deixara de correr através deles havia tanto tempo que nem eu já sabia quanto. Foi um erro terrível encerrar o sentido da minha existência nos ritos que Mario me oferecia com um prudente entusiasmo conjugal (...) Fora um erro terrível, sobretudo, acreditar que não podia viver sem ele (...) 
(...) e por que razão eu, que opusera sempre à desordem ocasional do sangue a estabilidade da nossa ordem de afectos, experimentava agora tão violentamente o remorso da perda, uma dor intolerável, a ânsia de me desligar da teia de certezas e de reaprender a vida sem a segurança de quem já sabe tudo."

Sem dúvida que estes dias de abandono são narrados com mestria e simulam muito bem o que a narradora-protagonista deseja que a sua escrita fosse, quando antes de casada alimentava sonhos com pedaços de papel.

"Queria escrever histórias sobre mulheres dotadas de outros recursos, mulheres cujas palavras fossem invencíveis, e não um manual da mulher abandonada subordinando ao amor perdido todos os seus pensamentos. Era jovem alimentava ambições. Não gostava da página demasiado fechada, como uma persiana completamente descida. Gostava da luz, do ar que entrava por entre as ripas da persiana. Queria escrever histórias cheias de correntes de ar, infiltradas de raios de sol onde dançassem partículas de poeira. E depois, gostava da escrita que nos faz debruçar a cada linha e olhar para baixo, sentindo a vertigem da profundidade, as trevas do inferno."

E conseguiu!

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

«Vista Chinesa» de Tatiana Salem Levy :: Opinião




"Até aquela terça feira o medo era para mim uma abstração. (…)
Só quero estar livre para concluir minha travessia, eu disse a Diana. O luto do pedaço de mim que se perdeu...”


«Vista Chinesa» é um relato duro, mas cirurgicamente detalhado, tornando-se num poderoso testemunho de uma batalha individual pela superação após um ataque que revela raízes profundas e abrangentes. Essas raízes, lançadas pela guerra ancestral que é a violação das mulheres, uma violência intemporal e sem fim à vista, uma (quase) herança espiritual e energética que atormenta todas e que aqui são unidas pelo fantasma que as condena tanto psicológica como fisicamente, pois estar viva não é igual a se sentir viva e este relato é precisamente sobre essa luta. E sobre tanto mais.

Tatiana Salem Levy narra, com extrema concisão e numa linguagem visceral, tanto o episódio da violação, como memórias recentes associadas ao trauma e à luta íntima que é a vivência pessoal, e em família, após a violação. O fio narrativo é emaranhado e por camadas. Camadas de dor que vão solidificando e por cada camada uma etapa de luto.

A narrativa é intensa e coloca o leitor à beira do precipício, pois percebe-se que a autora quer manter a objectiva bem focada naquele episódio, com flashes bem vívidos, mas logo esbatidos pela dor, humilhação e medo. E é no meio desse caos e de uma euforia transtornante, entre a violência do ataque e a exasperação com a investigação policial, que se revelam todas as preocupações.

“Lembro de ter me perguntado se era por estar no meu lugar ou no lugar dela, uma dor inalcançável, a impossibilidade de um sofrimento físico, palpável, a lacuna que nos separava. Eu veria minha mãe emagrecer nos dias seguintes, mas ela nunca iria conhecer no corpo a agrura que eu havia experimentado, e não deve haver aflição pior que o desconhecimento tangível da dor de um filho."

Entre fragmentos da memória, surgem as expectativas com o futuro, num combate diário entre a expiação do mal e o amor pela família, o emprego, os filhos e o viver do dia-a-dia, enquanto aquela mulher se reconstrói. E reconstrói-se mais ainda por ela mesma, no entanto, faltam-lhe as palavras, falta nomear o que lhe aconteceu e daí este quase-testamento para os filhos, pois atormenta-a a dúvida: saberão eles? Eles que foram carregados dentro dela.

(...) ninguém sabe, nem eu sei ao certo, é tão difícil saber (...) meus filhos quando estavam na minha barriga sentiram um corpo inteiro ou um corpo fraturado, vocês são duas crianças lindas, perfeitas, mas por dentro serão inteiros ou, por terem recebido alimento e energia de um corpo rachado, também carregam uma alma rachada.”

Mesmo que seja uma herança hipotética, ela precisa se apaziguar e matar o fantasma da violação que paira sobre todas as mulheres e pela palavra há uma superação mais concreta. Tal como redescobrir-se sexualmente, daí a própria gravidez ser também analisada como algo visceral e ancestral. E novamente a dor. A dor primitiva e o grito selvagem.

Sem dúvida que o fio condutor é a dor, uma dor partilhada entre mulheres, que é visível no poder que tem o relato na primeira pessoa revelando a capacidade de Tatiana Salem Levy em se apoderar de um episódio real, mesmo que exterior ao seu corpo.

Outra preocupação deste livro é a de denunciar a dificuldade de um tratamento digno e sem histrionismos, seja em ambiente hospitalar ou policial e neste caso, vê-se uma condução desajeitada de toda a trajectória da investigação, que cede à pressão de ter um culpado, não o verdadeiro, mas apenas um que satisfaça as estatísticas e os resultados da própria polícia. Facto esse que espelha as preocupações sociais e políticas com um Rio de Janeiro em convulsão e com registos de níveis de violência históricos e persistentes.

“Vista Chinesa” é sem dúvida um livro intenso e completo, dando ao leitor muitos pontos de vista

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

«Laços» de Domenico Starnone :: Opinião


«Laços» de Domenico Starnone (Alfaguara, Junho 2018), inédito em Portugal até este livro, recebeu no ano passado a adaptação cinematográfica, «Laços de Família», filme de Daniele Luchetti que não recebeu críticas equiparáveis às tecidas ao livro, no entanto, saber da sua estreia em Portugal fez-me querer recordar este enredo e a releitura foi ainda melhor do que o primeiro contacto com esta família disfuncional, cujo a relação segue caminhos sinuosos após o abandono (e regresso!) por parte de Aldo, o pai e marido adúltero, após um caso com uma mulher mais nova. 

As fragilidades do enredo prendem-se com um lado banal das acções do casal: ele vive deslumbrado por Lídia e agradecido por ela olhar para ele, sentindo-se mais vivo do que nunca e Vanda encarna o papel de mulher traída da forma mais acérrima e tóxica possível, desgastando-se e desfigurando-se enquanto recorda o quanto hipotecou de si em prol do casamento e dos filhos. No entanto, é precisamente a forma como Starnone passa dessa banalidade, de forma muito simples e concisa, para as motivações que fazem girar este casal que torna o livro duro e brilhante. É como se o autor fizesse um raio-x ao lugar mais fundo e íntimo dos pensamentos destas quatro pessoas enquanto as décadas avançam e isto apenas em pouco mais de cem páginas. A capacidade de tecer toda uma cena, de anos, num pequeno parágrafo é de um poder de concisão que espanta e abana o leitor.

“Disparataste longamente, com pedante tranquilidade, acerca dos papéis dentro dos quais nos tínhamos aprisionado ao casarmo-nos – o marido, a mulher, a mãe, o pai e os filhos – e descreveste-mos – a mim, a ti, aos nossos miúdos – como engrenagens de uma máquina desprovida de sentido, obrigadas a repetir para sempre, os mesmos movimentos sensaborões.”

“As pernas sobem agora com base em hábitos adquiridos. E a tensão, a emoção, a felicidade do passo perderam-se, como se perdeu a singularidade da maneira de andar. Deslocamo-nos achando que o movimento das pernas é nosso, mas não é verdade, sobe connosco esses degraus uma pequena multidão à qual nos adaptámos, a segurança das pernas não é senão o resultado do nosso conformismo. Ou mudamos o passo – concluis – reencontrando a alegria do início ou ficamos condenados à normalidade mais soturna.”

Tudo nesta narrativa ganha outro impacto pelas palavras que são escolhidas, ci-rur-gi-ca-men-te e com uma precisão geométrica, não vá a palavra errada estragar o pouco equilíbrio que sobra ou arruinar uma pequena conquista. E ruina é bem o que se analisa com o final entregue às mãos dos filhos: Sandro e Anna. 

“Olhei-os demoradamente. As crianças empurravam-se, insultavam-se, a mãe ameaçava-os. Levava um sobretudo fora de moda, eles calçavam sapatos deformados. Pensei: é a minha família a voltar do esquecimento, e vi de repente o meu lugar vazio ao lado deles, convenci-me de que tinha sido aquele vazio a modifica-los daquela maneira.”

Dito de forma disparatada ou não, a verdade é que Aldo tece desde o início palavras chave que determinaram a relação familiar: o conformismo, o casamento castrador, os filhos como extensão necessária de um casal, um repetir de movimentos que esmaga vontades e alegrias e o aprisionamento que são os anos que ainda lhes faltam. E aqui importa salientar que os que sobram e actuam como espelho são os filhos, levantando questões como: numa família tem sempre de existir o carrasco e a vítima? De que forma os papeis se invertem? E para a plateia (os filhos) o que sobra? Com os anos nada mais se acrescentar a não ser o cansaço?

"Agradava à Lídia, agradava a toda a gente. E, enquanto isso, uma névoa ia cobrindo o passado em que me sentira lento e inconsequente. Desvaneceu-se a casa de Nápoles, desvaneceram-se os parentes, os amigos. Permaneceram vivos, persistentes, a Vanda, o Sandro, a Anna, mas só enquanto a distância não lhes retirasse a energia, não retirasse espessura à dor."

Esta ideia da espessura da dor versus a distância e a invisibilidade é muito interessante e explorada mesmo quando o casal habita a mesma casa e envolve ainda outra questão: a do corpo estranho. É só o corpo da amante que é um corpo estranho ou os anos e a habituação ao corpo do outro também nos fazem estranhar um corpo que já não vermos? Quando é que o outro se torna invisível? 

Oscilamos entre considerar uma família como um laço constante, apertado e que protege; para a considerar um somatório de jeitos que se dá para unir vários fios, com gestos automáticos e de olhos fechados, gestos já sem sentido. Dinâmicas inofensivas que roçam a ameaça.

"Sinto o meu pai e a minha mãe. Sinto-os pelas divisões silenciosas, juntos e separados. O Sandro murmurou: esconderam-se um do outro, mas não sem deixarem a ameaça de se descobrirem a qualquer momento."



sábado, 16 de outubro de 2021

«A Casa» de Emma Becker :: Opinião


“Falo de um mundo onde as prostitutas podiam escolher ser princesas, elfos, fadas, sereias, meninas ou mulheres fatais. Falo de uma casa que ganhava as dimensões de um palácio, a doçura de um porto de abrigo. Agora, o resto do mundo é, para estas raparigas, um matadouro.”
“Dois anos imersa num mundo onde elas se farejam da cabeça aos pés, e continuo a corar quando uma rapariga me beija o rosto.
(…) E, contudo, quando estava mergulhada entre as pernas dela a lambê-la, com um apetite pouco fingido, pensava naquela carícia banal na perna e imaginava o que poderia levá-la ao orgasmo e se ela tivesse sabido como o fazer comigo, que sítios tocar, que linguagem inventar para insuflar de novo esse arrepio de vida na carne."

Emma Becker, vinte cinco anos, recentemente chegada a Berlim, é a francesinha de serviço num bordel aconchegante que protege as suas mulheres e que elas carinhosamente apelidam de A Casa. Becker é autora e narradora desta experiência na primeira pessoa, já que por curiosidade e gosto por sexo, decidiu prostituir-se na Alemanha a fim de expor este mundo pela perspectiva mais pessoal de cada uma das suas companheiras. Desse trabalho sob disfarce resultou um livro, quase como um herbário: uma forma de as alfinetar como borboletas para mais tarde as contemplar. Um livro que é uma declaração de amor às mulheres, aos seus corpos e às suas vontades e a tudo o que a experiência lhe permitiu aprender.

“Antes de mais, há os saltos: ninguém conseguiria andar naquilo, eu certamente não. Contudo, parecem uma extensão tão natural da sua perna como um pé descalço. E aquele barulho, aquele estalido langoroso, ao longo dos dez passos, para lá e para cá, que lhe delimitam o território... ouvindo-os, sabemos que aquele ritmo sábio não pode ser produzido por uma rapariguinha cambaleante, ameaçando torcer os calcanhares - por detrás daquele som há sem dúvida uma mulher agressivamente sedutora, cheia de si própria.”

Percebemos desde cedo a fascinação de Emma pela Casa, seja por comparação à prostituição de rua, seja por outras casas, mas sempre mais pelas mulheres que lhe dão corpo e os objectos que compõem os quartos, tal cenário de uma peça, previamente encenada. Tudo terá um certo valor sentimental, embora o que mais interesse sejam os episódios que penetram nesses cenários.

“Penso sempre: eis mulheres que são verdadeiramente mulheres, que mais não são, de facto, do que isso. Eis seres eminentemente sexuados, passíveis de serem definidos sem qualquer problema. Se houvesse nelas o que quer que fosse de ligeiramente ambíguo, tal duplicidade ficaria imersa no excesso de ornamentos e feromonas com que saturavam aquele canto (…).”

“A junção destes dois aromas perenes tem algo de infantil e obsceno, como se farejássemos a roupa de um bando de colegiais, escondidas na casa de banho para fumar… e, nos espaços que elas enchem de gritos, pulverizou-se uma essência um pouco ordinária, entre o detergente e o desodorizante barato, queimaram-se cinco incensos diferentes numa tentativa infrutífera de dissimular o fumo, as axilas húmidas e os dedos pegajosos de homens que estão sempre de passagem; é uma nota um pouco acre, quase indiscernível.”

O sentimentalismo é posto de lado, tudo assume um tom prático, mas o êxtase vem da forma como é descrito, sempre bastante visual, sensorial e até luxuriante. No entanto, o enredo fica um pouco a dever ao ritmo, pois para além de alguns episódios que oscilam entre recordações de amores antigos e situações com clientes no bordel, o que o leitor mais experimenta são manifestos de afirmação, usando o tom explícito a favor daquilo que defende: o valor das escolhas a que cada uma tem direito e a exaltação (e compreensão) pelo desejo que se alimenta em corpos que não as alugam à hora. Ou seja, há desejo para além da prática daquela actividade profissional.

“Aquele que não fode. Aquele que vem apenas beijar religiosamente aquela coorte de vaginas morenas, loiras, ruivas, rapadas ou hirsutas, que enche o seu herbário de mil clítoris com desenhos sofisticados de catedrais, cheiros de vaginas e de rabos, e do qual nem suspeita que se alivia nas casas de banho com uma dança febril de punho.”

Um arrepio sente o leitor em alguns capítulos, que mesmo retirados do contexto, funcionam muito bem como pequenos contos, brindam à lassidão, às mulheres e à diferença, mas também contêm análise sociológica à profissão, aos clientes e aos motivos que sustentam uma das profissões mais antigas, nunca escondendo uma indolência, um tom de humor e o respeito pelo tema; o fio condutor é a qualidade literária de um enredo que pretende humanizar a prostituição e fazer pensar sobre grandes questões, a da motivação de ambos os lados.

“Será que alguma vez se para de verdade? Que acontece a esta sensação na boca do estômago, quando ouvimos alguém pronunciar, seja por que razão for, a palavra puta? Deixamos de ser capazes de discutir objetivamente sobre prostituição… e, de resto, trata-se de uma discussão a evitar, se não nos queremos trair graças a uma veemência irreprimível.”

“O verdadeiro problema é o tempo. Que se pode, contra o tempo? Talvez face a esse inimigo supremo, invisível, invencível, os homens saquem da arma do bordel como um pecado menor, mais desculpável, do que uma história de amor paralela, mais desprezível também, porventura. O bordel é a parte da humildade inexorável da sociedade… o homem e a mulher reduzidos à sua mais estrita verdade… a da carne, que saboreia, sente e estremece.”

sábado, 9 de outubro de 2021

«NADA» de Carmen Laforet :: Opinião

«NADA» de Carmen Laforet narra o despertar de Andrea numa Barcelona enegrecida e depauperada pelos anos do regime franquista que se entranhou desmedidamente na parte da família que a recebe e que é suposto educá-la.

"Sem pensar duas vezes, lancei-me na escuridão das ruelas que a rodeiam. Nada podia acalmar e maravilhar a minha imaginação como aquela cidade gótica. Naufragando entre húmidas casas construídas sem estilo no meio das suas veneráveis cantarias, mas às quais os anos tinham dado uma pátina de um encanto especial, como se tivessem sido contagiadas pela beleza. (...) O frio mais intenso, engavetado entre as ruas sinuosas (...). Havia uma solidão impressionante como se todos os habitantes da cidade tivessem morrido."

Entramos neste belo e terrível romance, como o caracterizou Mário Vargas Llosa, e somos desde cedo confrontados com uma assumida tristeza que quebra a energia inicial com que Andrea chega e percorre uma Barcelona nocturna e húmida, mas que ainda assim a conquista e liberta, uma liberdade que demorará até voltar, já que o desalento com o cenário familiar bizarro, que a recebe é composto por pessoas em ruínas, destruturadas e tóxicas que nos recordam os ambientes confusos, violentos e de terror dos enredos de Shirley Jackson ou os mais melancólicos e pesarosos de Carson McCullers.

A decrépita casa da Rua de Aribau é tal como a tia Angústias, “um bocado vivo do passado que estorva a marcha das coisas.” e  “Os dias sem importância (…) pesavam como uma quadrada pedra cinzenta no cérebro.” de Andrea, que se entregou à inércia dos dias inúteis. E são precisamente nas descrições dos  dias inúteis e povoados de Nadas que Laforet domina as emoções dos leitor e nos cerca com esse ambiente. A atribuição de cheiros à nostalgia e à solidão ou até à humilhação conseguem uma dimensão ainda maior para a dor e o abandono, que desafiam a "sombra gelada da tarde (…) uma tarde de luz muito triste.", como muitas tardes em que Andrea vagueia, salvando-a apenas um reduto de Natureza e a amizade com Pons e Eva.

Já os tios são personagens em constante devaneio, seres soezes, ordinários e agressivos, que encontram na violência e na humilhação, uma forma de expiarem dos demónios que os corroem, ainda assim são dignos de uma incompreensível estima e até carinho que gera uma repulsa, extensível à tia Angústias no que toca à capacidade de ferir os sentimentos alheios. Até a avó, essa última folha* de uma árvore já extinta, cujo os ecos ainda ressoam e vibram nos sentimentos de todos, sobretudo em Glória. 

*”(…) tive a sensação de estar perante uma daquelas últimas folhas de Outono, mortas na árvore, antes de serem arrancadas pelo vento.”

Arrancados, desenraizados e desbragados são tanto os personagens como as discussões bafientas que alimentam esta estranha relação familiar, que vive de argumentos já gastos: “(…) como pássaros envelhecidos e escuros, com os peitos palpitantes por terem voado muito num pedaço de céu muito pequeno.”

Um pedaço de céu muito pequeno é a casa, também ela personagem. Acozinha, a sala, as escadas ou até o quarto-orelha, todo "funciona" como um conjunto desconexo e grotesco em que tantos os rostos vazios habitam a casa, como a própria casa os habita a eles e os ocupa com a revolta e o esforço que sobrou de um passado recente e marcante. A casa, a rua e a própria cidade, outrora como eles, seres dignos de destaque, sobrou em escombros e sombras, sendo metáfora para a critica social que se lê nas entrelinhas. 

Contracenam com a desolação dos trastes inúteis, acabrunhados sob uma carga de desvario, uma amizade propícia a novos despertares dessa mulher-menina que é Andrea ainda que mergulhada em ilusões e sonhos do campo e que reverdece a cada reencontro com pedaços soltos de natureza naquele poço gótico que era Barcelona.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

«Dor» de Zeruya Shalev :: Opinião


Li «Dor» de Zeruya Shalev depois de ter lido «O desassossego da noite» de Marieke Lucas Rijneveld e é brilhante ver como os livros se completam e as leituras se cruzam, quase dando respostas de umas para as outras.

“Há dois tipos de pessoas, os que agarram e os que largam. Pertenço à última categoria. Só por meio de tralha que coleciono consigo agarrar recordações ou pessoas, assim consigo guardá-las em segurança nos bolsos do casaco.”        
 «O desassossego da noite» de Marieke Lucas Rijneveld 

Na intertextualidade entre livros, Cas tem os bolsos cheios de coisas que queria perto de si, enquanto Íris "está tão habituada a estender a mão para o lugar vazio, os seus dedos perderam-se nas profundezas do bolso vazio da sua vida (...)"

Íris, 45 anos,é mãe, esposa, professora, directora, vítima e lutadora e é também uma mulher vazia e despedaçada em diversos sentidos. É uma mulher carregada de dor que questiona a vida que leva. Relutante, vê cada vez mais um esforço injustificado em todos os esforços e sacrifícios que faz e fica ainda mais pesarosa perante uma hipótese remota, uma confissão que a mãe lhe faz e que lhe mostra “(…) cortando o ramo sobre o qual construir com esforço o seu ninho frágil.” que o rumo podia ter sido outro, há mais de trinta anos.

Com esforço ou sem ele, não são todos os ninhos frágeis? Ou fragilizam-se perante o reabrir de feridas do passado que se julgavam totalmente suturadas? Quantas camadas de dor esconde o passado?

“Miki: «eu gosto de jogar contra mim próprio», uma frase que retrospectivamente ganha um significado adicional (...) porque viver com uma mulher que quase morreu de amor é um jogo contra si próprio e não traz nada de bom."

Quando nos enganamos a nós mesmos, quem é joga contra si próprio? Tapar um buraco exige sempre que se abra outro?

“(...) não ouve as palavras dela, e talvez seja melhor assim, porque ultimamente temos um problema com as palavras, pensa ela, utilizamo-las para esconder em vez de revelar. Traímos com as palavras, e talvez isso seja pior do que trair o outro, traímos com as palavras e elas castigam-nos."

Em «Dor», Zeruya Shalev explora vários processos de luto, de dor e das dinâmicas de uma vida familiar que parece a cada dia que passa mais frágil e vazia e que questiona constantemente o passado, o deles, um a um individualmente, mas também o de um país, que em todas as partes em que se divide, fracciona opiniões e uma família. E a dor tal como o passado é feita de camadas, mas a pergunta principal talvez seja: e numa mulher, quantas dores cabem?

"O tom de voz é hostil e frio, custa menos zangar-se com ela do que preocupar-se com a filha, que estupidez é esperar que quando um homem nos desilude outro nos surpreenda pela positiva, que estupidez é esperar."

Esperar é uma forma de luto? Quanta dor exige a espera?

«Dor» está escrito com um ímpeto e uma fluidez ímpares. Uma catarse íntima despertada pela dor, seja ela a do acidente, a do abandono ou a do adultério. Uma catarse intensa que questiona a vida a dois e a vida que se constrói num país dilacerado por violência. Ela pode ter construído um lar em Israel, mas o próprio país cria em cada família uma carapaça, escondendo a angústia e a inquietação: “(…) pois a dimensão da queda apenas revela a da angústia (...)

Será que Eytan (o amor do passado) pode ser também ele uma queda, uma queda fatal que danificará a tartaruga há tantos entregue a outra carapaça? 😉

“(…) e ao lado do seu corpo grande tem uma sensação profunda de casa, como se ela fosse uma tartaruga e ele a sua carapaça, sente-se cada vez mais próxima dele que por pouco não lhe conta que o tal medico de barba branca devia ser o seu amor de juventude (…)”


"O Desassossego da noite" de Marieke Lucas Rijneveld :: Opinião


“«Somos livros gastos, sem capa, do lado de fora ninguém vê do que tratamos», diz a Hanna, e rimo-nos da nossa noção de insignificância.”

Na escrita peculiar e evocativa de Marieke Lucas Rijneveld (Man Booker International Prize 2020), recuamos à época dos tazos e dos walkmans, numa fria paisagem rural, onde 3 irmãos, Os Reis Magos, se perdem no desassossego que é o abandono familiar após a morte de um outro irmão mais velho, Mathhies. Com uma voz invulgar e um pensamento complexo e criativo, somos levados pela mão de Cas que nos conduz por uma infância afogada em desapego, conservadorismo, violência e vergonha (e bosta de vaca), sentimentos associados à descoberta que é o crescimento e o mistério da morte e do luto. Os episódios oscilam entre a ternura, o lado visceral do meio rural e a palavra de Deus!

“«Um dia quero viajar para mim mesma», digo baixinho e carrego no pionés para dentro da carne macia do umbigo. Mordo o lábio a fim de não fazer barulho, um fio de sangue sai em direcção ao elástico das cuecas, penetra no tecido. Não ouso retirar o pionés, com medo de o sangue esguichar para todos os lados e em casa ficarem a saber que não quero ir ter com Deus mas comigo mesma.”

A atmosfera que a escrita de Rijneveld cria é imediata, capturando o leitor para a imaginação prodigiosa e telúrica de Cas, mas também para o evento tenebroso e infindável que é a morte e o luto por um irmão e a forma tentacular como isso vai sugando a vida desta família: “(…) só conhecíamos a faina da terra e não a que existe em nós.”

“Olhei para as minhas mãos, para as suas linhas irregulares. Ainda eram demasiado pequenas para as usar sem ser para agarrar. Agora ainda cabiam nas mãos do pai e da mãe, mas as do pai e da mãe não cabiam nas minhas, era essa a diferença entre eles e eu: podiam pô-las à volta do pescoço de um coelho ou agarrar num queijo acabado de virar no banho de salmoura. As mãos deles eram ávidas, mas, se já não conseguissem segurar carinhosamente uma pessoa ou um animal, mais valia largarem-nos e focarem-se noutras coisas.”

Mas o desassossego do luto é tal: "(…) de momento, os buracos de gelo situam-se sobretudo nas nossas cabeças.” que o foco familiar se desvia para as vacas e o revolver da terra, enquanto Cas e os irmãos, Hanna e Obbe, se tentam amanhar: "(…) os Reis Magos voltaram a montar os camelos sozinhos, apesar de a sela já ter desaparecido há muito, cavalgamos sobre o pelo áspero e temos o rabo esfolado do terreno acidentado.”

Acidentada talvez seja a palavra de ordem para descrever o dia-a-dia destas crianças que vão desabrochando, entre metáforas da vida agrícola e o descortinar dos salmos, tudo narrado habilmente por Cas enquanto tenta compreender como aumentar o prazo de validade da sua família, surpreendo o leitor com as comparações de que é capaz nos seus (ainda) ternos doze anos, referindo-se ao mutismo da mãe, que fica com os lábios cerrados como duas lesmas quando acasalam ou o pai, que cego de raiva tem os olhos pretos e contraídos como caganitas duras de coelho. Ou ela mesma, Cas, que se sente como uma lista de compras usada e amarrotada, à espera que lhe voltem a tocar e alisar.

“Tal como no Velho Testamento, também eles repetem infinitamente as mesmas palavras, o mesmo comportamento, os mesmos padrões e rituais. Mesmo quando nós, seus seguidores, nos afastamos cada vez mais deles.”

São muitas as questões que esta narrativa levanta, mas acima de tudo questiona a fé no abstracto, quando o que é palpável e próximo se afunda mesmo diante dos olhos. Questiona o peso da morte e da culpa, do quão frágeis e vulneráveis são os que “sobram” a essa morte e que ficaram com as recordações e o dever de honrar. Mas “sobra” também o direito a um futuro, ainda por construir e para o qual precisam de amparo. Questiona-se tanto ou mais o corpo e a sua necessidade de proximidade, afecto e respeito; ou o direito a chorar, a lembrar e a falar do que se sente.

“Na perda encontramo-nos e somos quem somos: seres vulneráveis como filhotes de estorninhos nus, que caem do ninho e esperam ser apanhados. Choro pelas vacas, choro pelos Reis Magos, por pena, e depois choro por mim, ridícula, vestida com um casaco de angústia, mas depressa volto a limpar as lágrimas. (…) Se as lágrimas tivessem cheiro, ninguém mais choraria às escondidas.”

sábado, 18 de setembro de 2021

«Menina» de Edna 0’Brien :: Opinião

 


«Menina» de Edna 0’Brien é um livro duro, assustador, sombrio e revoltante que expõe e denuncia uma violência com inúmeros tentáculos que subjuga e condena inúmeras meninas e mulheres em prol da palavra (supostamente) sagrada que perpetua tradições sociais e religiosas que em muitos aspectos não são mais do que a continuação de crimes que continuam impunes ao longo dos séculos.

“À noite quando fico acordada, vejo o céu. Um céu vasto e violeta, uma terra de beleza que se tornou um lugar de dor. Tantas raparigas mortas. O triste abate das árvores.”

“As nossas blusas brancas, os nossos uniformes e lenços depressa se dissolveram em flocos leves de cinza-pardo que pairavam por um momento e depois eram levados a encontrar o seu caminho por entre os espaços do arama farpado. Segui-os mentalmente, e tola, julguei que os flocos incinerados seriam os nossos mensageiros.”

Apesar de perturbador, é um romance com passagens líricas e luminosas, onde uma centelha, mesmo por muito pequena que seja, de inocência e esperança, ainda paira sobre os pensamentos desta Menina. Embora logo de seguida, arrepie o leitor com descrições ritmadas e hipnóticas de episódios bárbaros e brutais.

“(…) carinhos de mão cheios de pedras, empilhadas, pardas e malignas. Eram de todas as cores, cinzentas, pretas, cor de carvão, com arestas afiladas, e haviam sido especialmente escolhidas para o que se seguiria. (…)

Meteram-na na cova, invisível para todos, ficando apenas à vista a cabeça e o pescoço, que passava no rebordo na perfeição.

A excitação estava a aumentar. Os homens troçavam e pediam que lhes dessem a honra de atirar a primeira pedra. (…) As pedras caíam desenfreadamente, acertando com monstruosidade naquele que fora o rosto mais lendário do enclave.

Tiras do outro lado do maxilar pendiam (…). As próprias pedras ficavam sujas ao cair, mas eram apanhadas de novo, para continuar o ataque.”

 

Existe um poder e um pesar nas palavras de O’Brien, um poder que nos esmaga enquanto leitores e nos faz ranger os dentes enquanto os olhos se enchem de água. A narrativa está brilhantemente encadeada para que todas as emoções se alinhem enquanto torcemos por Buki, Maryam e Babby. O destino só pode ser de refúgio e reparação, com alguém que as receba, as acompanhe e lhes mostre um caminho menos sinuoso. Já que a sociedade de onde foram abruptamente roubadas, lhes nega o direito ao digno retorno e integração. A comunidade não quer os relatos das vítimas, os testemunhos assustadores; não quer elos de sangue com guerrilheiros, não quer uma escrava sexual de volta ao seio familiar.

 

Os pecados deles são agora os pecados dela!

 

“-Não tenho idade para ser tua mãe – digo-lhe, a medo.

A sua expressão é vazia, ausente, o seu dedo aponta para longe com uma espécie de investida interrogativa. Começo a chorar. Choro do fundo do meu ventre. Choro de onde quer que deveria estar a raiz do meu amor por ela. Ela nunca me viu chorar abertamente. Baixa o dedo e enterra a cabeça no meu peito. O bater do meu coração é o único refúgio que tem.”

 

Para além da violência e da denúncia, «Menina» é um romance sobre coragem, resiliência e superação. É um elogio às meninas, às mulheres e às mães. Essencialmente às mães (…) descalças, suplicantes, a viver de restos, mas sem nunca desistirem, sem nunca desistirem. Elas não lhes cortam a garganta. Não cortam a garganta aos filhos para lhes beberem o sangue. Suportam tudo, tal como suportaram dar os filhos à luz. Pergunta como o fazem, essas mães com os filhos, como o fazem, como é que tu o fazes.”

 

Como é que o fazem? Como é que conseguem em condições tão violentas e indignas e no meio de tanta devastação exterior e interior. Como é que conseguem superar, é essa a questão que ressoa e nos faz ponderar e valorizar o que temos.

 

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

"três homens num barco (já para não falar do cão)" de jerome k. jerome :: Opinião


“Eramos quatro - o George, o William Samuel Harris, eu próprio e o Montmorency.”

Assim começa o relato desta viagem.

Existem várias viagens dentro desta viagem de barco, algumas delas são divagações de cariz filosófico, outras são crítica social, a maioria são autênticas digressões nas memórias de cada um dos três homens, em périplos alucinantes fruto de uma imaginação prodigiosa e ainda há espaço para servir de guia turístico pelas aldeias pictóricas nas margens do Tamisa e aproveitar para uma tacada política aqui e ali.

Portanto, temos um preguiçoso crónico hipocondríaco que se queixa do seu amigo insone e igualmente “doente” e ambos se debatem com outro amigo que, deprimido, dorme demais (já para não falar dos pés enormes que tudo atrapalham). Todos se sentem moribundos (menos o cão) e decidem que o rio e os ares aquáticos seriam o melhor remédio para todos.

“A maior ambição do Montmorency é meter-se de permeio e ser insultado. Se conseguir enfiar-se num sítio onde ninguém o quer, pôr tudo numa roda-viva, fazer com que as pessoas fiquem furiosas e lhe atirem coisas à cabeça, então ele acha que não perdeu o dia.”

Cedo concluímos que o ócio é o motor desta narrativa e o objectivo principal é simples: se não poder ajudar, atrapalhe. 🤭 O importante é participar! O mesmo se aplica ao cão, nas suas francas amizades com gatos e chaleiras fumegantes.

A maior ferramenta do humor de Jerome K. Jerome é a ironia e o sarcasmo e a intelegência com que narra episódios que roçam o absurdo e historietas do arco da velha que se tornam mais cómicas pela escolha da linguagem e o encadeamento que vão tendo com a própria aventura que era suposto ter o papel principal, mas desengane-se o leitor se pensa que isto é só uma viagem de barco!

É uma viagem pela natureza humana e as suas crises existenciais, num texto cheio de tiradas poéticas.

“(…) mas à noite, quando a mãe natureza foi para a cama e nos deixou acordados, oh! O mundo fica solitário e ficamos cheios de medo (…) Sentimo-nos tão desamparados e tão pequeninos no meio daquele grande silêncio, quando só se houve o rumorejar das árvores negras ao vento da noite. (…) Mais vale juntarmo-nos todos nas grandes cidades e acender grandes fogueiras de milhões de candeeiros de gás, e gritar e cantar em uníssono, e sentirmo-nos corajoso.”

No entanto, estes espíritos indolentes não procuram reparação ou redenção para os seus constantes elogios ao pecado do ócio e à doce contemplação do trabalho, esse bem precioso no qual é melhor não tocar; antes pelo contrário, eles tecem aqui quase um tratado de como continuar nessa vida mesmo estando cientes das tarefas laboriosas e dos caprichos das previsões meteorológicas que determinam o sucesso de uma actividade e vida ao ar livre e é isso que confere todo o lado cómico às peripécias pelas margens do Tamisa.

“Não existe sensação mais excitante do que a de velejar. (…) As asas do vento sibilante parecem transportar-nos sempre em frente, não se sabe para onde. Já não somos aquelas coisas de barro lentas, laboriosas, débeis, que se arrastam tortuosamente sobre a terra; tornámo-nos parte da Natureza. (…) Os seus braços gloriosos abraçam-nos e erguem-nos de encontro ao seu peito.”

Difícil é amarrar a tenda ao barco e não dormir ao relento. Saber se lhe colocam os espeques todos os não, bem como a hercúlea tarefa de pelar umas batatas ou lavar uma peça de roupa.

“(…) ora bem, o rio entre Reading e Henley ficou muito mais limpo depois de lá termos lavado a nossa roupa. Toda a sujidade contida no rio foi recolhida por nós durante a lavagem, e ficou retida na nossa roupa. A lavadeira de Streatley disse que tinha de nos cobrar o triplo do preço normal para lavar aquela roupa. Na opinião dela, aquilo não era propriamente uma lavagem, era mais uma espécie de escavação.”

Tá explicado porque J. não sofre de artrite de lavadeira!

Em suma, quase todos os relatos arrancam sonoras gargalhadas ao leitor, mas um dos episódios mais brilhantemente descritos e a ritmo de meter inveja ao restante livro, é o capítulo três, quase todo ele dedicado à perseverança e empenho do tio Podger e a sua capacidade para a bricolage. Mas também, o episódio do guisado irlandês ou o familiar que tenta aprender a tocar gaita de foles, são hilariantes. Ou a risota entre J. e George com a camisa que cai ao rio ou uma espécie de luta livre na manteiga entre George e Harris. (já para não falar do queijo capaz de matar só com o cheiro).

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

«Silêncio na Era do Ruído» de Erling Kagge :: Opinião

No seu «Silêncio na Era do Ruído», Erling Kagge predispõe-se a pensar sobre o que significa o silêncio, onde e como o encontramos e como o sentimos. O silêncio tem muito de indizível e de abstracto, no entanto, há uma busca incessante pela sua definição. Aproximar-se-á da definição do «nada»? Ou define-se pela experiência de cada um?

Experimentando-o cada um à sua maneira, sem garantia de conseguir-se expressar sobre ele de forma concreta ou palpável, que o digam os inúmeros artistas que tentaram filosofar, sentir, pintar, encenar, musicar, escrever ou expor o silêncio. Também sobre eles, Kagge, de forma breve e rendilhada, os cita para fundamentar as suas ideias sobre o silêncio, que tanto procurou, fosse em caminhadas solitárias de 50 dias pela Antártica, fosse na rede complexa de esgotos e túneis, chafurdando noutra dimensão de Nova Iorque.

“Conhecendo-nos a nós mesmos, conhecemos os outros. Ao ler Sacks, sinto que ele, tal como Nansen, ao dirigirem os seus olhos para o alto, também os dirigiam para dentro, em direcção ao seu silêncio interior e também aos seus aspectos interiores esquecidos. Em direcção a esse universo que para mim é tão misterioso como o espaço que nos rodeia. Um universo expande-se para fora, o outro para dentro. Para mim, este último universo tem o maior interesse. Porque justamente como concluiu a poetisa Emily Dickinson; «O cérebro – é mais vasto do que o céu.»”

Silêncio está associado a resiliência, relutância, satisfação, como essa mesma satisfação está intrinsecamente associada a sacrifício e meta. Porém, o caminho e as suas etapas são mais proveitosas que só a meta em si, é nessa perseverança que algo transformador acontece e desperta no cérebro sensações de bem estar e paz interior. Se assim for, silêncio é satisfação por auto-conquista? Que som tem o silêncio? A do auto-reconhecimento e da compreensão?

É tão vasta a definição como a forma de atingi-la, porém é na simplicidade do silêncio que ocorrem conversas entre os nossos pensamentos, capazes de vencer medos, de fazer avançar ou recuar, superar o aborrecimento mais por saber parar e contemplar e não por alimentar a ânsia, tão socialmente aceite, de continuar a fazer mais e mais. Mais intenso. 

“(…) Rumi escreveu: «Agora permanecerei em silêncio, e deixarei o silêncio separar o que é verdadeiro daquilo que mente»”

Talvez se possa dizer que a melhor definição de silêncio e aquela que o indica como uma sensação de paz interior, um luxo e uma liberdade, que tanta falta fazem nesta Era do ruído agudizada pelas aplicações que viciam e que dão estímulos exteriores que nunca são suficientes e atuam segundo a máxima: partilho logo existo; embora essa partilha seja feita sem que cada um abandone o seu isolamento, por vezes tóxico e caótico.

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

"A segunda vida de Olive Kitteridge" de Elizabeth Strout :: Opinião


"(...) nem queria acreditar. A sério que não. Era um pouco como quando caíra de bicicleta, anos e anos antes (...) a sensação em câmara lenta de que algo terrível está a acontecer e a noção de que nada podia fazer para o impedir. Ver o alcatrão vir de encontro à face."

Strout traz nos uma Olive ainda mais olivesca 😉 que nos leva a pensar no quanto todos temos uma Olive dentro de nós e como nos ligamos a essa faceta. Ou se nem sequer temos ideia de tal, o que deixa uma pergunta: estaremos a guardar para a velhice? É que cair de bicicleta na velhice pode nunca mais dar para recuperar!

Regressamos a Crosby, no Maine para percorrer algumas ruas e corredores de supermercado ou os lares que nos esperam na velhice para ouvir algumas lamúrias, mas mais ainda conclusões que vêm com o entendimento tácito dos anos. Do amadurecimento e da velhice. Por isso, revive-se o casamento, o nascimento e a criação dos filhos, o avanço rápido da vida que tudo atropela e entra-se na velhice quando já ela já se instalou: "Olive tinha a sensação de que uma rede descera sobre ela, o tipo de coisa que se põe a cobrir um bolo ou uma mesa de piquenique, para afastar as moscas. Ou seja, estava encurralada e a sua visão do mundo reduzira-se."

No entanto, Olive em nada está reduzida. Nos capítulos onde Olive não está, Olive esta sempre lá, pois habilmente Strout ausculta (palavra feia) nos feitios e problemas dos outros, caminhos que nos levam às conclusões que a idade tem trazido a Olive, ou seja, aquelas personagens parecem surgir do nada, mas trazem consigo todo um propósito, seja validar ou contrariar o que aprendemos com Olive. E isso é estrategicamente bem equacionado no seguimento da narrativa. A sequência que cada conto ou capítulo tem, não pode, de todo, ser ao acaso. Há um fio que tudo cose, mesmo que padeça de um certo caos. Tal como a vida. Ou as aprendizagens que a vida nos dá, mesmo que às vezes seja à bruta.

"Mas mesmo por detrás dos olhos fechados, Olive via a casa e um arrepio percorreu-lhe os ossos. A casa onde criara o filho, sem nunca, nunca se aperceber de que ela própria criara, durante todo esse tempo, uma criança órfã de mãe, que agora estava muito, muito longe de casa."

Olive revive mágoas antigas quando as redescobre nas aprendizagens que faz cada vez mais com o passar dos anos, por isso, o leitor reencontra Christopher, Henry e Jack que vai alterar um pouco o curso da vida de Olive, ainda assim reencontrar Olive Kitteridge é encarar uma solidão tão característica da sua personalidade que talvez toque, ali e ali, a solidão que todos sentimos. Nesse tomar de consciência e com as várias gargalhadas que vamos dando, podemos dizer que respeito será a palavra que mais aprendemos à medida que somos confrontados com certos episódios. Respeito e a máxima: mais amor por favor!

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

"A biblioteca de Paris" de Janet Skeslien Charles - Opinião

 


«Esperança é uma coisa com penas que se empoleira na alma.»
Emily Dickinson

"A Biblioteca de Paris" de Janet Skeslien Charles (Suma de Letras, 2021) capta desde logo a atenção com um primeiro capítulo que oscila entre o nervosismo de Odile, à beira de ser contratada para a Biblioteca Americana de Paris (BAP) e o sistema decimal de Melvil Dewey. É com esse texto entrecortado pelos números da classificação documentária, que ainda hoje se usa (com as devidas actulizações), que a autora cativa por certo qualquer leitor e frequentador de bibliotecas.

Odile é apaixonada por livros e o ambiente que se vive na Biblioteca é precisamente onde ela quer estar, no entanto, decorre o ano de 1939 e a Guerra será uma ameaça a esse cenário idílico de passar os dias rodeada de livros. Ainda antes do conflito estar mesmo às portas da Biblioteca e definir o rumo de cada braçada de livros, Odile descobre que os dias na biblioteca, entre leitores, podem ser tão desgastantes quanto o medo da página em branco.

"Quando cheguei ao fim do turno, a língua desertara. Era como abrir um romance e encontrar apenas páginas em branco."

Nas páginas deste romance são várias as histórias e as mulheres que vamos conhecendo, bem como os seus livros favoritos, que vão desde Jane Eyre, o "Drácula", uma ou outra referência a Ralph Waldo Emerson, passagens de "A idade da inocência" de Edith Warton (uma das primeiras administradoras da BAP) ou o incontornável "Crime e Castigo" e a poesia de Emily Dickinson, entre várias outras referências, no entanto, há uma frase do "De olhos pousados em Deus" de Zora Neale Hurston que espelha bem o que todos os personagens passaram a sentir com a presença alemã em Paris:

"Depois ela engomou e passou a ferro o rosto, moldando-o naquilo que as pessoas queriam ver..."

Que é igualmente uma excelente descrição para caracterizar o rosto de Lilly, a outra metade desta história, já na década de 80, em Froid, Montana, quando a sua vida muda e a saída da adolescência se faz em proximidade com Odile, já viúva e isolada entre livros, memórias e sonatas de Bach. Entre Odile e Lilly nasce uma amizade sediada no amor aos livros, no sabor de cantarolar lições em francês e sonhar com uma Paris lá longe, onde deviam ter ficado as memórias dos tempos difíceis, no entanto, existe a história de uma enorme resistência que não deve ser esquecida, precisamente para enaltecer os livros, mas também o poder da amizade.  

"Senti-me como se estivesse no meio de um globo de neve que alguém tinha abanado, só que as peças lá dentro não estavam coladas no fundo, e tudo girava..."

E giraram, pessoas e livros, corações e cartas. 
Circularam muitos livros, fruto do trabalho das bibliotecárias e da administração da BAP, para irem ao encontro de leitores encerrados em casa, privados das suas colecções, apenas por serem judeus ou de nacionalidade dos países aliados ou até para os soldados na frente de batalha e outros estropiados e acamados em hospitais de campanha, para os quais os livros eram um bálsamo e uma centelha de normalidade. 


"A devoradora de pecados" de Megan Campisi :: Opinião

 

"As pedras que a vão comprimir estão amontoados ali perto (...) eles usam pedras, algumas são largas como as rodas de uma carroça, para obrigar os traidores a falar se estes recusarem a confessar. Deitam o homem ou a mulher numa cama de madeira, a seguir empilham pedras sobre o seu peito, parando apenas se for feita a confissão. Falar ou morrer. Podem passar-se horas até as pedras esmagarem um corpo em forma."

Em "A devoradora de pecados" (SdE, 2021), assiste-se à caracterização sombria e requintada de um hábito que existiu até há pouco mais de cem anos nas regiões da Bretanha que a autora tratou de abrilhantar com detalhes grotescos e vívidos, conseguindo assim ofender visualmente o leitor, obrigando-o a desviar o olhar daquilo que se consegue visualizar tão nitidamente que arrepia. 

Megan Campisi compõe um enredo em torno de May, que por um crime pouco significativo é condenada a um destino de marginalização, segregação, silêncio e solidão. May será uma devoradora de pecados, uma proscrita amaldiçoada, uma serva de Eva que não se deve sequer olhar. Apenas tolerada nos momentos fúnebres ou junto aos corpos dos moribundos onde se banqueteia com línguas de vacas, sementes de mostarda, empadas de rins e muito alho ou corações dos mais variados animais, para engolir pecados que os outros cometeram. Comidos os pecados, é a devoradora quem os carrega até à morte, livrando assim a alma, para limpa, entrar no céu. 

Regozije-se então, quem deste sórdido banquete apenas tiver que engolir pepinos em conserva e sal, uma ou outra empada de restos e claro, pão. Pois significa que os seus pecados são pouco mais que a preguiça e o orgulho e claro, o pecado original.

A leitura torna-se cativante, apesar da envolvente, miserável, pobre, suja e violenta, que envolve o leitor num enredo cada vez maior, onde tudo, desde as paredes ao chão lamacento ou ao poço e um balde de mijo, contribuem para uma narrativa que cresce conforme a própria personagem se desenvolve e se empodera. Isto sem esquecer a critica social à nobreza mesquinha e ao poder desenfreado da religião, juntamente com uma opressão enorme conseguida pelo medo e pela ignorância de um tempo tão sombrio e tortuoso, tipicamente medieval, conseguido por cenários de violência que são explorados com uma linguagem extremamente visceral, provavelmente fruto da formação profissional da autora no ensino de teatro. 



«A minha irmã é uma serial killer» de Oyinkan Braithwaite - Opinião



"A Ayoola convoca-me com estas palavras: «Korede, matei-o.»
E eu que tivera esperança de nunca mais ouvir estas palavras..."

O livro sensação «A minha irmã é uma serial killer» (Quetzal, 2021) de Oyinkan Braithwaite é um livro por camadas ou até mesmo um livro puzzle que se monta por irmos interpretando essas camadas. A irmandade entre Korede e Ayoola vai-se intensificando à medida que a narradora (Korede) desmistifica, por pequenas brechas, acontecimentos do passado e por aí se compreende as margens para onde ambas as irmãs desabrocham. Opostas, mas completando-se (como quase sempre, diria eu!) e são fruto do tratamento dado pelos pais e a forma como a família as caracteriza pela aparência e respectivos actos, desde muito cedo e por aí as condiciona ou enaltece. Sem esquecer que as tradições e a forte presença paternal determina em muito a união que as mobiliza e lhes justifica os actos.

"Pergunto-me onde é que ela guardará a faca. Nunca a vi, a não ser naqueles instantes em que estou a olhar para o corpo ensanguentado (...) Não sei porquê, mas não consigo imaginar a Ayoola a esfaquear uma pessoa (...). Quem sabe se os objectos não têm as sua próprias intenções secretas? Ou se as intenções colectivas dos seus donos anteriores não continuam a orientar-lhes o propósito?"

A orientar-lhes o propósito, a ambas, está o passado e é talvez isso que alimenta a leitura sôfrega, se bem que a autora consegue-o também pela escrita escorreita e sucinta, agarrando o leitor ao ritmo quase aflitivo com que as irmãs vivem cada episódio. Para além disso, a dinâmica de ambas as personalidades também se desenvolve à velocidade de um thriller. 

Korede é determinação, Ayoola é descontração. Uma é reconhecida pela sua beleza, a outra pela inteligência e careira. Uma cozinha, a outra come, uma apaixona-se superficialmente, usufrui e pavoneia-se, até se chatear e matar, a outra vem desinfecta, esconde e oculta cadáveres. Juntas são um binómio interessante para matar sem deixar rasto. Ou não, pois uma tem consciência e a outra não.

Dizer mais pode enviesar leituras, mas não me aguento em acrescentar que por aqui restaram alguns mixed feellings com a forma como termina, mas quem ler e quiser trocar umas ideias, são todas bem vindas.

sábado, 31 de julho de 2021

GARRA - Contos de Cecelia Ahern - Opinião


«Garra» pode ser sobre a mulher que foi à boleia, subiu uma montanha, mas desceu ao fundo de si mesma e engolida pelo chão encontrou mais mulheres lá em baixo, tantas delas na escuridão que mesmo vestidas com o fato da vergonha, descobriram que partilhar aligeira o espartilho que a todas sufoca já que todas falavam mulher, antes ainda de terem um nome ou um destino. No entanto, não falará dos flagelos mais gritantes ou até dos grotescos que assombram milhares de mulheres pelo mundo fora.

É certo que importa muito a singularidade do caminho, relatando a experiência feminina, conseguindo seguidores para a causa feminista, mas mesmo que essa experiência seja peculiar e até alucinada na forma de contar, como Cecelia Ahern encontrou para relatar estas histórias, como aquela que ficava na prateleira enquanto era alimentada por um pato ou tantas outras que semeavam plantios inteiros de dúvidas ou outras que devolviam e trocavam de maridos, para aceitarem a necessidade de tolerar e viver nos sapatos do outros. Mas o que se precisam é de mais pessoas a se colocarem no lugar de tantas outras mulheres que são limitadas, discriminadas, humilhadas, violentadas e silenciadas, só por serem mulheres. Essa realidade mais negra teimou em não estar nestas garras.

Apesar das histórias que se expandem em tantas áreas da vida e outras tantas metáforas, fica a sensação de vivências que não são necessariamente ou ferozmente femininas. Talvez lhe falte relatos de sobrevivência tipicamente feminina, por exemplo no mundo do trabalho questões tão práticas, mas tão escondidas como a higiene menstrual ou até a própria discriminação associada a essa condição só feminina. Não estranhar a minha repetição de feminina!
Porém há um conto sobre a chegada ao topo de uma montanha que é uma metáfora muito boa para a competição tóxica que existe, desnecessariamente, entre mulheres e que ao mesmo tempo revela falta de conhecimento e investimento individual. É uma boa chamada de atenção.

Existe ainda, uma sensibilização ligeira para a igualdade pelo caminho da empatia, conhecimento e partilha que são precisos de ambos os lados, seja no diálogo de mulher para mulher, sejam entre homens ou como é óbvio entre homens e mulheres, sem que esteja em causa que um lado saia vencedor, pois se superarmos os constrangimentos, a união criará uma mistura astuta e elevada da qual o todo sairá beneficiado, seja o todo de apenas uma e cada mulher, um núcleo familiar, um ambiente empresarial ou um grupo de amigas. No entanto, não é um livro para abanar estruturas, chocando-as com as desigualdades gritantes e violentas que afectam a maior parte da Humanidade, num flagelo que persiste ao longos dos séculos. 


sexta-feira, 30 de julho de 2021

Opinião "Margo" de Tarryn Fisher

A Margo caiu-me no colo. Não me recordo deste livro ter sido publicado cá mas sei que a Tarryn Fisher é amiga da Colleen Hoover. E oh well, diz-me com quem andas e eu saberei o quanto és atrofiada da cabeça. E adivinhem lá, não me enganei.

Embora goste da capa, creio que pela sinopse não comprava o livro. Acho que dá demasiado e eu gosto que se dê um dedo, não o braço todo. Pior, acho que se dá o braço errado mas isso é outra conversa e eu sou pouco de dar spoilers.

Conhecemos Margo na sua existência transparente. Nascida numa casa que parece consumir quem lá habita, Margo escapa pelas divisões onde a presença de uma mãe negligente não chega, encaixa-se nos cantos onde a luz que acompanha os visitantes noturnos da mãe não brilha e alimenta a sua vida com doces, tal é o fraco acompanhamento que teve desde tenra idade. Por esse motivo, embora passe despercebida em termos de personalidade, sente que toda a gente vê a miúda feia e gorda da casa problemática.

Ao ambiente com que cresceu dentro de casa, junta-se o bairro que a vê passarinhar diariamente mas que é por si só um mal do qual se diz que quem lá nasce não consegue escapar. Bone, nos lados menos bons de Seattle, é um daqueles sítios em que se contam pelos dedos de uma mão às pessoas que se safam. Margo é uma delas, pelo menos até uma certa altura.

Sob existência atormentada desta jovem, está uma alma boa, altruísta, que se preocupa mas que também tem sempre um pé atrás, principalmente perante as injustiças visto que é, desde sempre, alvo de uma bem grave. Essa negligência é o que inicia o pontinho escuro que habita no seu ser e é dai que cresce a escuridão que a dor, a injustiça e a raiva vão alimentando. 

Quantas injustiças teríamos de presenciar na nossa vida para sentirmos ceder a camada que nos exige justiça?

Será que sob determinada pressão todos nós, independente da força da nossa espinha, cederíamos?

Margo muda sob os nossos olhos e com ela a nossa resposta, ou pelo menos a nossa bussola moral, face às perguntas acima colocadas.

Se é uma obra da literatura? Claro que não mas é uma história que mexe connosco, que consumimos num ápice porque precisamos de saber como acaba, que nos faz pensar no mal que fazemos e no quanto, todos os dias, tantos saem impunes.

Margo tem um cadinho de todos nós, especialmente aquele lado que não colocamos livremente e sem julgamentos à superfície.

Recomendo a leitura, tão escaldante como aqueles dias de verão com leituras à beira mar/piscina.

E o melhor de tudo, está a 5€ na wook! 

sexta-feira, 9 de julho de 2021

«A cor do hibisco» de Chimamanda Ngozi Adichie :: Opinião


Porque os afectos não têm horário e a vida deve galgar os muros da religião e das tradições e encontrar no calor das relações humanas o pilar para crescer em amor e segurança. É essa a maior mensagem de «A cor do hibisco», sem esquecer o peso das tradições como identidade, superando pesos maiores deixados pela colonização.

Seguimos esta família aprisionada nos horários rígidos de um pai que nas palavras da tia Ifeoma, é um produto fidedigno da colonização e que na sua total evangelização condena o tribalismo e a tradição pagã e não admitirá aos filhos, Kambili e Jaja ou à mulher Beatrice, quaisquer desvios ímpios.
O desrespeito é punido sempre!
A ordem e o silêncio sepulcral são para ser mantidos num ambiente doméstico entregue à oração, ao agradecimento e ao falar apenas com propósito. Por isso, quando por motivos santos, os horários das crianças ficam entregue à tia Ifeoma e ao seu sorriso resplandecente, a vida só poderá mudar.

Adichie escreve ainda sobre personagens para quem as possibilidades se abrem com um sorriso e a vida flui pelo poder da liberdade e do amor que não sufoca nem espezinha. É nas mulheres interpretadas por Kambili, Amaka, Ifeoma e Beatrice que nos mostra a resiliência feminina em diferentes perspectivas e nas mais variadas fases da vida.
Kambili no tríptico rígido de ser temente a Deus, boa filha e estudante de mérito, desabrocha para a puberdade, precisando vencer o silêncio e o medo que a sufoca e humilha.
~
"O inhame cozido e os legumes picantes recusaram-se a descer-me pela garganta abaixo; ficaram-me colados à boca como crianças agarras as mãos das mães à entrada da creche."
"Eu queria sorrir, mas não fui capaz. Os meus lábios e as minhas bochechas estavam petrificados, congelados, imunes ao calor que me fazia escorrer suor pelas faces abaixo. Estava demasiado ciente dos olhos dele postos em mim"

Amaka mostra à prima Kambili a amizade, a paixão e o amar-se a si mesma, mostrando que os sentimentos são para ser vividos sem restrições e que para chorar ninguém precisa esconder-se.

Beatrice, mãe, mulher e irmã, que na sua pequenez silenciosa se faz invisível, encerra em si segredos de muita violência e um medo paralisante que a cala mas não cega perante a realidade injusta em que vivem.

E claro, a tia Ifeoma, um pináculo de energia, resistência e sobrevivência, um modelo no que toca ao quebrar de padrões, sendo a força motriz das outras, é com o seu riso audível que quebra barreiras da frieza e alimenta a união possível daquela família, diminuindo o medo que limita os sobrinhos e sendo a única que confronta Eugene:

"-Ifukwa gi! És como uma mosca que segue um cadáver às cegas para dentro da sepultura."


É no alimentar dessa injustiça encontramos Eugene, a mosca a Ifeoma se refere, ele é o pai de família que castiga e justifica as suas acções aberrantes, julgando-se o mais justo dos justos, expiando os pecados por uma interpretação enviesada das escrituras, aterrorizando a sua família. No entanto, a mestria com que Adichie o descreve não chega a permitir uma total demonização deste homem, no seu lado bom ele é um omelora, o que zela pela comunidade, ainda assim ficamos a pensar se o cadáver é a religião ou a Nigéria. E é nos diálogos entre irmãos que vemos o lado político e social que também pauta a escrita da autora.

Toda a narrativa está contextualizada pelo catolicismo, o ambiente socio-político e a própria natureza, pesados e poeirentos como os ventos quentes do harmatão e do próprio golpe de estado, ainda assim, a gastronomia, os cheiros, as plantas coloridas, os tecidos, a música e a luta que vai surgindo por vários tipos de independência, iluminam todo o enredo.

As descrições ricas e peculiares são um dos traços que melhor caracterizam a escrita de Chimanda Ngozi Adichie que ao caracterizar as suas personagens as expõe por comparação ao que as envolve, assim podemos observar o medo no vento que tudo arrasta e emporcalha, os sentimentos que despertam como a comida picante que rebenta na boca ou certas descobertas que chegam com a força das chuvas e tudo limpam e abrem caminho à renovação.

"A tarde desfilou pela minha mente (...) eu tinha sorriso, corrido, rido. O meu peito parecia cheio de qualquer coisa tipo espuma de banho. Leve. A leveza era tão doce que a saboreei na língua, a doçura de um caju bem maduro, amarelo-vivo."


domingo, 30 de maio de 2021

«A Cadela», de Pilar Quintana :: Opinião


Pilar Quintana, autora conceituada na cena literária colombiana e na América Latina em geral, vencedora do Prémio Alfaguara 2021 com o romance «Os abismos», vê a sua obra começar a ser publicada em Portugal com o romance «A Cadela» romance finalista do National Book Award 2020. 

E que romance!


"A magia deste romance reside na capacidade de abordar questões importantes enquanto parece estar sempre a falar de outras coisas. Que questões são essas?
Violência, solidão, resiliência, crueldade. Os livros de Pilar Quintana maravilham-nos com a sua prosa desassombrada, acutilante e poderosa."                   Juan Gabriel Vasquez

 

Antes de tudo o que esta obra encerra e das feridas que pode deixar abertas, importa qualificar de grandiosa a capacidade da autora dizer tanto em tão poucas palavras. Abanar tantos fantasmas como o da culpa, dos sonhos perdidos, do desespero ou da solidão, mesmo com tão parcos parágrafos sobre o passado. Quintana descreve, tantos os seus personagens como as suas acções, de forma crua, serena e firmes nas suas emoções, arrastando-os para uma travessia contra a corrente. As vidas pequenas, mas enormes no sofrimento fazem-se ainda maiores quando dispersas pela natureza que se agiganta e os engole, tal qual os problemas eternos da natureza humana.

"(...) sentia que a vida era como um canal e que lhe tinha calhado ter de o atravessar com os pés enterrados na lama e a água pela cintura, completamente sozinha, num corpo que não lhe dava filhos e que só servia para partir coisas."

No cimo de um morro, uma barraca de gente pobre sobrevive às enchentes, sejam as dos rios ou as das intempéries emocionais de Damaris que em dias de humidade, "tanta que um peixe poderia manter-se vivo fora de água", alimenta com amor, gota a gota, uma cadela.

É essa mesma mulher, muitas vezes a sentir que se arrasta pelos dias, num silêncio apenas entrecortado pelo latir dos cães ou os sons da floresta que os podia engolir, que o seu corpo seco e pesado contrasta com a natureza que se renova em ciclos, que brota vida, mas que ela lembra como um burburinho choroso, digno de lamento. 

"Era uma noite de chuva intensa, mas estava calor (...) a sala pejada de melgas (...) Damaris, torturada pelos bichos, embrulhou-se da cabeça aos pés num lençol e deixou-se estar a ouvir a chuva, um zunzum contínuo que era como gente a rezar num velório."

Desconsolada e com os dias como os de um velório, o leitor acompanha, numa leitura sôfrega, a vida de Damaris e Rogélio, o marido, num avançar em crescendo que só pode terminar em tragédia, embora o leitor possa seguir enganado quase toda a narrativa. 


domingo, 18 de abril de 2021

«O que contamos ao vento» de Laura Imai Messina :: Opinião




"Yui tinha humores, tendia um pouco para a melancolia, como se tivesse sido concebida inclinada e resvalar fizesse parte da sua natureza."

Nessa sua natureza, Yui levava uma vida oca cheia de horas opacas, em que o amanhã enquanto princípio, era algo que não existia. E foi mais ou menos com essa sentença que Yiu e Takeshi estabeleceram contacto, depois de muita perda nas vidas de ambos, e como processo de cura, começaram a frequentar Bell Gardia, aguardando um certo serenar das respostas trazidas pelo vento.

No entanto, e por a cura ser um processo longo, as viagens de carro entre Tóquio e o telefone do vento, são uma forma de se conhecerem e conciliarem gostos e cumplicidades.

"Longas viagens de carro, horas intermináveis de condução, melodias de fundo, gargalhadas e silêncios confortáveis, verdadeiros haikus visuais para mais tarde recordar e que reforçavam os nervos e os músculos do coração."

O que é dito nas entrelinhas coloca-nos muitas questões sobre temas sensíveis, como a morte por doença, acidente, catástrofe natural ou até mesmo por suicídio, e aí sem evasivas ou desculpas, se afirma que o suicídio tem o rosto dos que lhe sobram, ainda assim é mais sobre luto e superação do que a morte, embora não esconda as ideias que pairam naquelas cabeças em dias mais negros. 

"Takeshi convenceu se de que era por causa dos sobreviventes, dos que ficavam, que a morte tinha, de facto, um rosto. Sem eles, a morte seria apenas uma palavra feia. Feia, mas no fundo, inofensiva."

O luto é o enxertar dos dias com estratégias de superação, como o homem da moldura, que nos dá uma metáfora para a forma como podemos ficar a ver a vida depois de partirem aqueles que mais amamos, uma constante recordação, retalhos de uma vida que só se vive por memórias: momentos emoldurados e espartilhados num rectângulo do tempo. Ou então, uma constante necessidade de fragmentar, aceitando e catalogando breves acontecimentos, emoldurados de felicidade, pequenos momentos felizes que não invalidam nem fazem esquecer o quadro maior da dor e do luto.

Ainda assim, tudo é dito com delicadeza e até doçura, como se com esses ingredientes pudéssemos amparar melhor a dor e aceitar que a perda nos deixa amarfanhados e desajeitados para aceitar novos sentimentos de pertença e dedicação. É preciso voltarmos a deixar que nos abracem, é preciso aceitar e deixar entrar novamente o amor.

"We need four hugs a day for survival, eight hugs a day for maintenance and we need twelve hugs a day for growth."                                  
                                                                                                    Virginia Satir

«O que contamos ao vento», de Laura Imai Messina, tem um enredo que nos enche de lugares, música e pensamentos, muito além do que é narrado e, se o amor é como a terapia, na qual é preciso acreditar para que funcione, um telefone ligado a nenhuma linha ou até um livro com muitas perguntas, podem igualmente dar respostas ou abrir a mente em outra direcção. Basta acreditarmos! E julgo ser essa a premissa principal deste relato: o poder de acreditar e sentir, muda tudo. Muda-nos.

Ao longo da leitura fui compilando uma lista de músicas, a maioria consta no livro, outras vieram por acréscimo, como aquela que mais pano de fundo a esta leitura:





terça-feira, 30 de março de 2021

«A única história» de Julian Barnes :: Opinião


Se o romance for uma escada sem degraus é uma rampa ascendente ou descendente? E onde nos leva?

Julian Barnes escreve-nos uma história de amor que começa de forma arrebatadora, pois nenhum deles sabia estar disponível para amar; Casey Paul pela tenra idade e alguma inocência e Susana por achar que na sua idade, já não amaria mais. No entanto, este amor, que dura décadas, é encarado de forma diferente para cada um deles e até para uma terceira pessoa que pode ser qualquer um deles caso se ponha a olhar de fora para aquela relação, uma relação que marcará a reputação de ambos na pacata vila do clube de ténis.

"Compreender o amor é para mais tarde, compreender o amor raia o sentido prático, compreender o amor é para quando o coração arrefece. O amante, extasiado, não quer compreender o amor, quer experimentá-lo, sentir a intensidade e o olhar sobre as coisas, o acelerar da vida, o egocentrismo totalmente justificado, o desaforo lúbrico, a prosa alegre (...)"

E julgo que o livro pretende precisamente isso: compreender o amor, fazer um balanço de como arrefeceu a relação e o peso que daí resultou. No entanto, falta-nos, faltou-me a mim, a perspectiva de Susan, ela é uma presença apagada, uma presença ausente, cujo a dependência do álcool a tornou numa presença corrosiva e falhada, deixando o leitor na dúvida sobre o peso da culpa dentro desta relação, seja a de Susan, seja a de Casey Paul, fazendo o leitor questionar sobre que mais existia dependência. 

"(...) não vi o pânico que estava dentro dela. como podia adivinhar? Pensei que era só dentro de mim. Vejo, já tarde, que ele está em toda a gente, é condição da nossa mortalidade. Temos códigos de conduta para o dissipar e reduzir, anedotas e rotinas e tantas formas de alheamento e diversão, mas há pânico e desordem à espera de irromper em todos nós (...)"

Ficamos a pensar na verdade e no lado pelo qual é narrado essa verdade, juntamente com a culpa e uma tristeza crónica, presente em quase tudo o que é narrado nas entrelinhas deste amor. Tal como os períodos bons e de euforia, que afirma ter existido, este relato, caótico e ao sabor da memória, dá-se mais aos momentos chave em que "o tronco racha a direito até ao veio" ou seja, os momentos em que a perda da inocência causou ruptura e crescimento, um confronto com a realidade, como as considerações do sexo triste:

"Sexo triste é ela estar drogada com um comprimido para animar, mas eu pensar que, se a foder, posso animá-la um pouco mais. Sexo triste é eu estar tão desesperado e a situação tão sensível à pré-história, tão agressiva e o próprio equilíbrio da alma tão incerto (...) Sexo triste é sentir que estou a perder o contacto com ela e ela comigo, mas que essa é uma maneira de dizermos um ao outro que a ligação ainda lá está, (...) que nenhum de nós desiste (...) Então descubro que insistir na ligação é o mesmo que prolongar a dor."

E a dor, essa dor tão intensa e corrosiva, que mesmo diminuindo tanto as expectativas deste amor, torna o que aqui é narrado numa leitura em sofreguidão mas sem saber muito bem do que realmente se gosta ou do porquê de nos sentirmos tão apegados a esta única história.
Faz-nos pensar se parte desta "única história" não é para além do amor, ou seja, a própria culpa e o pânico aliado à idade e ao medo, quando se ouve muito alto o "ranger das dobradiças".

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

“Manual de sobrevivência de um escritor”, de João Tordo :: Opinião

 




Auster, Melville, Rilke, Mishima, Pessoa, Kafka, Tolstói, Dostoiévski, Levi, Camus, Javier Cercas, Javier Marias, John Cheever, Ian McEwan, Raymond Carver, Joyce, Philiph Roth, S. King, Denis Johnson, Bolaño ou Baudelaire... "Sem todos estes nomes, não me teria tornado escritor. Sem a companhia de todos eles, sem a companhia dos mortos. Por isso, concluo que um escritor é uma estranha e improvável mistura de tradição colectiva e patologia individual, de uma ferida aberta, muito particular, e do caminho que outros, antes de si, lograram explorar e que ele vai percorrendo com paciência e humildade."

Regressando a uma aventura na feira do livro em 1986 até ao confronto com "Crime e Castigo", João Tordo traça um retrato de como pode ser a sobrevivência de um escritor a braços com tamanho legado que são as vozes da literatura, vozes essas que povoam o universo alienígena desta legião de infelizes e insanos que são os escritores, um regime de eremitas, donos de uma disfunção social que os remete para o isolamento, a depressão, a melancolia e uma dispersão caótica em perpétua mudança que só encontra estrutura (ou cura) na ficção. 

"A literatura nasce de uma necessidade quase atómica de ordenar aquilo que surge catastrófico, de reunir num volume a fragmentada experiência humana."

Não será ainda mais fragmentada por tantas referências que habitam o bom leitor?
E ir em busca dessas referência e ver como se cruzam com o autor e a escrita dos seus livros, é a meu ver o ponto alto deste Manual. É com muitas palavras de outros que Tordo organiza e justifica as suas, quando compõe, capítulo a capítulo, passando a pente fino este ofício que vive de inquietude, da emoção, da linguagem e de buracos da agulha.

"Se a emoção é a raiz, a imaginação alimenta-se de quê?"
"Olhar para a vida com a perspectiva de descobrir o buraco da agulha, o lugar através do qual entra a possibilidade de uma história. (...) o verdadeiro mistério é o visível."
"(....) perguntar o porquê (...) não importa; a pergunta é desinteressante; tem um travo académico que abala o fundamento de toda a efabulação."

Todo o peso está no poder da efabulação, salientada na obra de nomes maiores da literatura pelos quais nos vamos perdendo entre realidade e verdade e ficando despertos para inúmeros títulos pela forma como Tordo fala deles.

Sobre «Detectives Selvagens»:
"O enredo está presente, mas não passa de uma sombra - traçar um enredo para esse livro é como tentar seguir todas as ramificações de uma teia de aranha ao mesmo tempo."

Sobre «O ano da morte de Ricardo Reis»:
"(...) a melancolia é a cor do livro; e a melancolia é uma forma de beleza que merece aplauso."