“Eramos quatro - o George, o William Samuel Harris, eu
próprio e o Montmorency.”
Assim começa o relato desta viagem.
Existem várias viagens dentro desta viagem de barco, algumas delas
são divagações de cariz filosófico, outras são crítica social, a maioria são
autênticas digressões nas memórias de cada um dos três homens, em périplos
alucinantes fruto de uma imaginação prodigiosa e ainda há espaço para servir de
guia turístico pelas aldeias pictóricas nas margens do Tamisa e aproveitar para
uma tacada política aqui e ali.
Portanto, temos um preguiçoso crónico hipocondríaco que se
queixa do seu amigo insone e igualmente “doente” e ambos se debatem com outro
amigo que, deprimido, dorme demais (já para não falar dos pés enormes que tudo
atrapalham). Todos se sentem moribundos (menos o cão) e decidem que o rio e os
ares aquáticos seriam o melhor remédio para todos.
“A maior ambição do Montmorency é meter-se de permeio e ser
insultado. Se conseguir enfiar-se num sítio onde ninguém o quer, pôr tudo numa
roda-viva, fazer com que as pessoas fiquem furiosas e lhe atirem coisas à
cabeça, então ele acha que não perdeu o dia.”
Cedo concluímos que o ócio é o motor desta narrativa e o
objectivo principal é simples: se não poder ajudar, atrapalhe. 🤭
O importante é participar! O mesmo se aplica ao cão, nas suas francas amizades
com gatos e chaleiras fumegantes.
A maior ferramenta do humor de Jerome K. Jerome é a ironia e
o sarcasmo e a intelegência com que narra episódios que roçam o absurdo e historietas do arco da
velha que se tornam mais cómicas pela escolha da linguagem e o encadeamento que
vão tendo com a própria aventura que era suposto ter o papel principal, mas desengane-se
o leitor se pensa que isto é só uma viagem de barco!
É uma viagem pela natureza humana e as suas crises
existenciais, num texto cheio de tiradas poéticas.
“(…) mas à noite, quando a mãe natureza foi para a cama e nos
deixou acordados, oh! O mundo fica solitário e ficamos cheios de medo (…) Sentimo-nos
tão desamparados e tão pequeninos no meio daquele grande silêncio, quando só se
houve o rumorejar das árvores negras ao vento da noite. (…) Mais vale
juntarmo-nos todos nas grandes cidades e acender grandes fogueiras de milhões
de candeeiros de gás, e gritar e cantar em uníssono, e sentirmo-nos corajoso.”
No entanto, estes espíritos indolentes não procuram
reparação ou redenção para os seus constantes elogios ao pecado do ócio e à
doce contemplação do trabalho, esse bem precioso no qual é melhor não tocar; antes
pelo contrário, eles tecem aqui quase um tratado de como continuar nessa vida
mesmo estando cientes das tarefas laboriosas e dos caprichos das previsões
meteorológicas que determinam o sucesso de uma actividade e vida ao ar livre e é
isso que confere todo o lado cómico às peripécias pelas margens do Tamisa.
“Não existe sensação mais excitante do que a de velejar. (…)
As asas do vento sibilante parecem transportar-nos sempre em frente, não se
sabe para onde. Já não somos aquelas coisas de barro lentas, laboriosas,
débeis, que se arrastam tortuosamente sobre a terra; tornámo-nos parte da
Natureza. (…) Os seus braços gloriosos abraçam-nos e erguem-nos de encontro ao
seu peito.”
Difícil é amarrar a tenda ao barco e não dormir ao relento.
Saber se lhe colocam os espeques todos os não, bem como a hercúlea tarefa de
pelar umas batatas ou lavar uma peça de roupa.
“(…) ora bem, o rio entre Reading e Henley ficou muito mais
limpo depois de lá termos lavado a nossa roupa. Toda a sujidade contida no rio
foi recolhida por nós durante a lavagem, e ficou retida na nossa roupa. A
lavadeira de Streatley disse que tinha de nos cobrar o triplo do preço normal
para lavar aquela roupa. Na opinião dela, aquilo não era propriamente uma
lavagem, era mais uma espécie de escavação.”
Tá explicado porque J. não sofre de artrite de lavadeira!
Em suma, quase todos os relatos arrancam sonoras gargalhadas
ao leitor, mas um dos episódios mais brilhantemente descritos e a ritmo de
meter inveja ao restante livro, é o capítulo três, quase todo ele dedicado à
perseverança e empenho do tio Podger e a sua capacidade para a bricolage. Mas
também, o episódio do guisado irlandês ou o familiar que tenta aprender a tocar
gaita de foles, são hilariantes. Ou a risota entre J. e George com a camisa que
cai ao rio ou uma espécie de luta livre na manteiga entre George e Harris. (já para não falar do queijo capaz de matar só com o cheiro).
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