sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

"O Segredo de Christine" de Benjamin Black e «O Mar» de John Banville - Opinião



Fui ler «O Segredo de Christine» por ter gostado de «O Mar» de John Banville. Black é o pseudónimo de Banville quando este escreve enredos mais policias, no entanto, voltando agora a ambos os livros, às suas personagens e enredos, e aos dramas que aqui são revelados, descobrimos mais traços comuns do que diferenças. 

Em «O Mar» focamo-nos em Max Morden, viúvo, introspectivo, silencioso e em quem o passado lhe pulsa como um "segundo coração".
Em «O Segredo de Christine» também Quirke é viúvo e sente que o passado o persegue, é igualmente um homem solitário e silencioso que prefere ou, o frio e esclarecedor ambiente da morgue ou o calor de mais um copo.
Ambos vêm de uma classe social mais baixa, mas em alguma fase da vida foram adoptados por uma elite que até certo ponto os protegeu das asperezas da vida, pelo menos até serem tocados pela doença, a mentira e a morte.

"Tudo aquilo que realmente sempre desejei foi sentir-me defendido, protegido, resguardado, refugiar-me numa toca de tepidez uterina e ficar acocorado lá dentro, escondido do olhar indiferente do céu e das asperezas do ar agreste."

A morte e a doença juntam-se a outros ressentimentos, que deixam o ambiente pesado e sórdido, quase insuportável, tornando o presente numa dissimulação e fingimento constantes que apenas deixam espaço para sentir as memórias e os escombros do passado, camadas impressas nestes homens como se de um quadro se tratassem. 

No entanto, ambos os personagens sentem que já viveram a vida com outra energia e até dotados de uma percepção sensorial pulsante. Tinham uma crença diferente no futuro. Sentiam-se vivos. Conectados.

"A vida, a verdadeira vida, deve ser uma luta constante, cheia de acção (...), que a vontade não pára de bater com a cabeça dura contra a parede do mundo."
"Sempre sofri do que julgo ser uma percepção extremamente penetrante da mistura de aromas que emanam da presença humana (...) a fragância acre e acidulada da própria vida..."

No entanto, ambos os enredos preferem explorar o peso do passado e transformar os protagonistas em pequenos botes de tristeza à deriva "(...) numa fúria muda, carregando nos punhos fechados as frustrações do dia como se fossem bagagem." Tanto Max como Quirke experimentam um acumular da infelicidade, essa espécie de zumbido agudo e incessante mas inaudível que lhes apaga o rasto em direcção ao futuro.

A morte, o passado, as memórias ou as descobertas febris da juventude são tão personagens como estes homens, bem como a intensidade da palavra, a forma cuidada e pensada com que o autor escolhe caracterizar os traços de cada interveniente, seja uma mulher a quem que cobiçam os seios altivos mas proporcionais à tristeza que carrega; a janela como testemunha que revela e espelha uma dor; a gaveta bafienta que encobre segredos; uma praia que devolve a infância ou um copo, companheiro predilecto de uma noite.  

Banville tem a mestria de elevar linguagem, transformando-a num personagem que tudo une. Embora a certa parte assuma:
"Porém, mantenho-me firmemente sentado à mesa, a empurrar os parágrafos como se fossem fichas de um jogo que já não sei jogar."
Ou seja, parágrafo atrás de parágrafo, vá munindo o enredo com mais instrospecção do que acção: "seu mutismo era uma emanação penetrante e saturante. Não dizia nada, mas nunca estava silencioso."

Mesmo que se lhes mude o pano de fundo, "O Segredo de Christine" de Benjamin Black ou «O Mar» de John Banville, são narrados na invernia que pode ser o imaginário de um homem sozinho, a braços com os pensamentos, que com a força de uma barragem, estão prontos a desaguar.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

«Somos o Esquecimento que Seremos» de Hector Abad Faciolince :: Opinião


"É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler, e mesmo este livro não é mais do que uma carta a uma sombra."

Hector Abad não é uma sombra é antes a sombra que Hector Abad (o filho, o escritor) queria ter sempre consigo, mas quis a vida de um país e as lutas ideológicas sem fim, retirar-lhe essa sombra quando ainda lhe fazia tanta falta o amor exagerado de pai, mesmo que o narrador e protagonista fosse já um homem adulto. Uma falta que levou vinte anos a ser macerada e digerida em forma de declaração de amor, de testemunho e de documento que revela um país, uma luta, um homem e um crime que passou impune. 

"Somos o esquecimento que seremos" é primeira estrofe de um poema de Borges e um axioma que Hector Abad, pai e Hector Abad, filho, sabiam precisar de combater pelo acto da luta e da escrita. Isso e denunciar todo um outro tipo de sombras que durante décadas assombraram uma Colômbia que não quis saber dos seus melhores cérebros.
Ainda assim, quero crer que o leitor (não colombiano) retirará mais do lado afectivo e emocional que é ver a dedicação e o amor entre pai e filho, assim exposto como a mais bela poesia se oferece aos amores eternos e espelha uma inocência, tão própria, dos amores incondicionais. 

"Eu participava nessas procissões, mas, à tarde, o meu pai contrabalançava com a enciclopédia e com as suas palavras e leituras as minhas práticas diurnas. Como numa luta surda por se apoderar da minha alma, eu passava das tenebrosas cavernas teológicas matutinas para os reflectores iluministas vespertinos. Nessa idade em que se formam as crenças mais sólidas, as que provavelmente nos acompanharão até ao túmulo, eu vivia açoitado por um vendaval contraditório, embora o meu verdadeiro herói, secreto e vencedor, fosse esse nocturno cavaleiro solitário que, com paciência de professor e amor de pai, me esclarecia tudo com a luz da sua inteligência, ao amparo da escuridão."

Se a mão e a voz do pai eram formas de amparo contra a escuridão e a dúvida, as mãos da mãe e a sua determinação sagaz eram a garantia de segurança e retidão familiar, embora mais pelo lado de cuidadora empenhado do que só boa cristã.

"A minha mãe, pelo contrário, era e continua a ser mística, embora sempre repita que tem falta e gostaria de ter «muitíssima mais fé». (...) A sua religiosidade, no entanto, tinha uma componente animista muito forte, quase pagã, pois os santos em que ela mais acreditava não eram os do santoral, mas as almas das pessoas mortas da sua própria família, que ela santificava assim que morriam (...) e se algum de nós adoecia, ela encomendava o assunto à alma do tio Joaquím (...), a da minha irmã (...) e, finalmente, á do meu pai, desde que o mataram. Mas, ao mesmo tempo, embora sempre estivesse atenta a estas imateriais presenças (...) era - e continua a ser - a pessoas mais realista que já conheci e com os pés bem assentes na terra (...) e muito mais capaz que o meu pai de resolver os problemas práticos, tanto os nossos como os dos outros, se tivesse tempo para isso."

Percebe-se desde cedo que a fé do homem e do escritor que aqui encontramos nestas páginas, está voltada para dentro de casa, para a família que sempre o acolheu e amou e para os livros, esse refúgio que encontra em cada palavra e pela qual sabe demonstrar a sua crença no amor, mas também a tristeza, a solidão e a dor. Palavras tão comuns à história da sua família e do seu país. 

"A cronologia da infância não está feita de linhas esbeltas, mas de sobressaltos. A memória é um espelho opaco que se fez em cacos ou, melhor dizendo, é feita de intemporais conchas de recordações dispersas numa praia de olvidos. (...) recordá-las é tão desesperante como tentar recordar um sonho, um sonho que nos deixou uma sensação, mas nenhuma imagem, uma história sem história, vazia, da qual apenas resta um vago estado de ânimo. As imagens perderam-se. (...) no entanto, de repente, ao revermos o passado, qualquer coisa volta a iluminar-se na obscura região do esquecimento. Trata-se, quase sempre, de um misto de vergonha e alegria, e quase sempre aparece a cara do meu pai colada à minha como a sombra que arrastamos ou que nos arrasta."

Cronologia da memória e registo detalhado de uma vida que terminou abrupta, Faciolince traça uma ode ao pai em palavras que são pranto sem lágrimas, uma dor interior que não parece comovida, mas paralisada, uma quieta inquietação. E nessa inquietação que também é uma forma de amor, comove e desassossega quem o lê.

*

Aqui. Hoje. Já somos o esquecimento que seremos…                    Jorge Luis Borges    

                    Aqui. Hoje.
                    Já somos o esquecimento que seremos.
                   
                    A poeira elementar que nos ignora
                    e que foi o rubro Adão, e que é agora
                    todos os homens e que não veremos.

                    Já somos na tumba as duas datas
                    do princípio e do termo, o esquife,
                    a obscena corrupção e a mortalha,
                    os ritos da morte e as elegias.

                    Não sou o insensato que se aferra
                    ao mágico som do meu nome:
                    penso com esperança naquele homem
                    que não saberá quem fui sobre a Terra.

                    Sob o indiferente azul do céu
                    esta meditação é um consolo.


"Bairro sem saída" de Fernando Ribeiro - Opinião

 


O convite de Fernando Ribeiro é que entremos no Bairro da Verdade (ou na Brandoa) no virar da década de 70 e o façamos pela sua mão poética e gótica a que já nos habituou, seja em tons mais ou menos melódicos, nas letras e poemas de que é autor. Chegada a vez do romance, o leitor é convidado a recuar a um dos bairros mais clandestinos das Europa e conhecer tanto aquilo que tombou, como a geração que vingou, com personagens peculiares e bem caracterizadas, numa linguagem e um traço de humor negro que fazem logo metade do enredo que acompanha Rogério Paulo desde que fez estremecer as paredes pela primeira vez.

"Dentro de um quarto de um hospital na capital, entre tremores e rebentamentos de águas, eu tentava nascer. Rogério Paulo. O crucifixo na parede agitava-se. Parecia que até Cristo queria sair dali para fora, enjoado com o marear desta frágil jangada. (...) a cada grito da minha mãe, os médicos recuavam um passo, como se no útero dela radicasse o epicentro que rachava o branco das paredes. (...) O seu Ai! era um eco distante, pequenino entre as vozes que invocavam uma agonia preocupada."

Entre o entulho dos assustados, uma jangada meio à deriva, abre caminho entre tremeliques da terra enlameada, assim nasce Rogério Paulo e perde-se Fernando, o primo que dará uma aura ao romance.
E, na agonia preocupada, que sempre ocupou as mentes e os dias de muitos dos habitantes da Brandoa, fossem essas preocupações fruto da época social e política que o país atravessava, e obviamente todo o impacto económico que isso tinha na vida em geral, havia ainda a própria precariedade do bairro e o quanto isso foi alimento para a criatividade necessária à sobrevivência diária. E parte deste livro é isso mesmo, um relato dessa criatividade entre miúdos. E graúdos.

"Eu lá crescia, imitando o Bairro.
Como um casaco aos buracos, o Bairro lá se ia remendando. Desengane-se quem pensar que a brisa da prosperidade já por ali soprava. Era preciso mais que água e sabão para desinfectar o charco. (...) Nos arredores da capital, o Bairro apresentava-se como um espantalho vestido de retalhos de louça, azulejo e cimento ao sol. Cá de baixo da estrada, os carros tiravam-lhe a fotografia enquadrada pela aritmética do desprezo. (...)
O ar incompleto das suas ruas era parecido ao daquela manga de camisa que não chega a dar a volta ao punho (...) Estava feito à imagem das pessoas que o habitavam por dentro, cabeças de milho arrancadas à força do êxodo rural, lançados nas pressas ao vento soprada através da clandestinidade das noites."

Na clandestinidade e à força, na boleia dos biscates entre passadas apatetadas, a Brandoa e a Buraca cresciam, desarmando a inocência das primeiras idades e fazia-os crescer um tanto desencantados com a vida. No entanto, muitos fizeram-se às ruas sem sinalização e deram com a saída!

"A caspa descia para os autos, como naqueles globos artificiais de neve com figuras natalícias, e, às vezes, por passar a mão na bochecha, o polícia de turno ficava com tinta na cara. Conferia algo de cómico à confusão das liberdades interrompidas pela voz de prisão que amontoava pessoas ao pé da esquadra, impelidas pelo tal arfar das esquinas."

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

"A Ocupação" de Julián Fuks :: Opinião


"Todo o homem é a ruína de um homem (...) 
Não pensei se o homem era a ruína do homem quando cheguei para ver o meu pai. Não pensei em nada. Vi o seu corpo (...) Estava crescido o meu pai, como se o mal que sofria expandisse os seus contornos, como se o infortúnio aumentasse o espaço que ele ocupava no mundo

Um homem narra a ocupação que pode ser a doença e a gravidez. Um evento trágico em contraponto com um evento puro de alegria, ilógico e pleno de desconexão com todos os males que ocupam tantas outras existências, ocupações tóxicas, como a política que vai degradando tudo à sua volta ou como a própria vida que se esgota, à frente dos nossos olhos, adensando a impotência da qual somos feitos perante a doença e a morte. Perante a solidão que nos sobra.

Entrar em "A Ocupação" é quase como continuar em "A Resistência", mantendo vincada a temática do quanto o lado pessoal é político e o político afecta a esfera do íntimo. Um pouco também como «O avesso da pele» de Jeferson Tenório, livros que lemos seguidos como se as personagens pudessem - e estão! - no mesmo Brasil. Alguns familiares de Pedro podiam ter estado no hotel ocupado, Sebastián podia ter tomado parte em manifestações pelas mesmas causas que Pedro e ambos poderiam encontrar-se e discutir o quanto ter filhos é um acto de resistência. E assim, os livros dialogariam para além do que já dialogam na cabeça do leitor. 

"Sim, porque o mundo é feito de infinitos trânsitos, do movimento contínuo de seres. (...) uma infinidade de deslocamentos em sua génese. Toda a humanidade é feita desse movimento incessante, e só existe tal como a conhecemos graças a esses deslocamentos. (...) cada um de nós fez o seu caminho, mas que somos todos descendentes de um mesmo ancestral absoluto e longínquo. Esse raciocínio tem (...) algo de incestuoso, será sempre um amor entre irmãos (...) e toda a violência contra o outro é uma violência contra nós mesmos, fadada a destruir a um só tempo cada um se nós e a humanidade inteira."

"A Ocupação" narra a violência, a opressão, a política e as causas mais variadas, mas narra mais ainda a ocupação feita pela família, pelo outro. O que nos é querido e o que nos é estranho. 
Quanto da nossa ocupação mais íntima é herança do outro? E é aí, ainda mais, que os livros referidos se cruzam e a história de cada indivíduo se cruza com a de qualquer outro e talvez essa seja a ocupação maior a que Fuks se refere.

"Por mais de uma década fomos dois na mesma casa, apenas dois (...) uma intimidade maior do que aquela que cada um experimentava quando só, quando abandonado. (...) parecia impossível que não compuséssemos uma enciclopédia comum de ideias, um receituário de actos, um atlas de gestos, um dicionário de palavras particulares. Com essa bibliografia nunca impressa* (...) íamos nos ensinando a ser semelhantes (...)
E então quisemos ser três (...). Só de querer ser três já sentíamos a visita de um terceiro, um intruso entre nós, um estranho, um segredo."

*Ler este "A Ocupação" é também para o leitor a oportunidade de dar mais designações às palavras que já conhece, por exemplo:
- alegria: privilégio de distracção e desconexão 
- literatura: abertura para o diálogo
- escritor: alguém que soma fugas
- dúvida: partir a tranquilidade
- filho: ampliar o sentido da vida
ou
- ocupação: como chega fundo a raiz do desterro

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

«O AVESSO DA PELE» de Jeferson Tenório :: Opinião

 

"Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. (…) E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir. Na verdade, você nunca soube ir embora. Até ao fim você acreditou que os livros poderiam fazer algo pelas pessoas. (…) É com eles que te invento e te recupero. É com eles que tento descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar (…)"

«O avesso da pele» de Jeferson Tenório arranca desta forma e diz muito sobre a incompreensão e a dificuldade de relacionamento entre duas pessoas. Uma realidade áspera, antes e agora, a de um filho que procura recuperar e entender as memórias e ausência, uma ausência feita de objetos, feita caos que comove.

A ausência de um pai, que pode ao mesmo tempo, ser um legado e um abismo. Um abismo do qual se abeira qualquer filho quando, entre pai e mãe começa mal. E daí ser tão pertinente: descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar.

“(…) o que começa mal termina mal. Eram apenas duas pessoas quebradas. Cada um com os seus cacos. Cada um buscando uma escora. O amor como muleta. Naquele momento, a vida já havia tirado tanto, que vocês achavam injusto que o amor não pudesse servir como amparo. Acontece que, em vez de buscarem algo que pudesse reconstruíram os afetos, resolveram se cortar o que restou."

Pedro, o narrador protagonista, perde-se na geografia vasta dos afectos, a analisar o interior do labirinto que foi a vida familiar dos pais, e até a sua, colocando na equação questões cruciais que se cruzavam com o amor, que o delimitavam e definiram: a cor da pele! A pele na sociedade, a pele em todos os relacionamentos. A pele dentro da cabeça de cada um que é sempre mais do que pele.

Ou, e mais importante ainda, a conturbada relação entre pele e o avesso da pele!

Mesmo com o ocutá atrás da porta, a pobreza, o preconceito e a injustiça, espreitavam a cada esquina e aumentavam a ferida funda que ameaçava rasgar o avesso, mas Pedro tenta, neste relato, recuperar os afectos e entender todo o tipo de herança que lhe ficou. E o que fazer com ela.

“Li recentemente que as relações afetivas são formadas por duas categorias: dos egoístas e dos doadores. Você era um doador nato. Minha mãe era uma egoísta nata. (…) não a condeno por isso. (…) A infância nos fornece certas mágoas e é com elas que lutamos.”

 *

Jeferson Tenório explora os afectos, mas explora ainda mais o viver confinado ao meio-fio da vida, porque a sociedade te coloca nessa mesma berma, nesse lado marginal da vida e como combater para sair desse lado, onde se é posto de parte. E o romance explora diversas formas de viver à parte, por se ser lá colocado e por tanto se lutar pela integração, que a pessoa acaba criando uma margem só sua, um lado de dentro só seu… uma forma de alimentar uma solidão inacessível aos outros, talvez vencida, só pelos livros* e pelos afectos (quando possíveis).

"Vocês só sabiam lidar com os afectos na precariedade. Vocês não eram equilibrados. Eram equilibristas. A corda bamba como terreno dos afectos"

É nessa corda bamba que, com um pé bem atrás do outro – passos curtos mas nem sempre firmes - se avança, embora a dor e o trauma desenhem os contornos destas vidas, com que Tenório compõe um livro belíssimo. Duro, mas belíssimo.

 

* capítulo 7 de «O Jogo do Mundo» de Córtazar que eu fui descobrir graças aos livros aqui referidos

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

«Arco-íris» de Banana Yoshimoto :: Opinião


Na minha estreia com Banana Yoshimoto senti que regressava a um ambiente conhecido, melancólico, exuberante, exótico e até simples nas palavras, à boa maneira das autoras nipónicas, que foi como se já tivesse lido vários livros da autora. Mentira, foi o primeiro, mas sinto como se soubesse que decisões a protagonista ia tomar, onde ia vacilar, como ia defender com unhas e dentes os animais ou como ia relatar experiências cristalinas que colocariam o leitor a sentir locais desconhecidos como se lá estivesse ou até sentado à mesa num festim gastronómico enérgico, capaz de revitalizar energias e ânimos. E sentia que o âmago da questão não estava em qualquer paixão platónica, bem como a solução passava por apenas existir e sentir. 
Mesmo dito desta forma, não exponho nada que revele o curso da história ou sequer como Eiko resolve as suas dúvidas ou preenche a solidão que lhe fica após uma perda enorme. 

"Não me agradava de todo viver de recordações, porém às vezes, acontece que se toma consciência do valor que elas têm."

Eiko é uma mulher persistente e consciente do seu foco, embora um pouco abalada por as circunstâncias em que se encontro. O luto tem muito estágios e nada indica que por vezes, antes de se avançar, não tenhamos de recuar e fazer no novo a mesmo viagem. Resignificando-a. Compreendendo-a melhor. Dando espaço apenas para sentir.

"Todavia, o nosso silêncio não era embaraçante. Era um silêncio rico, um silêncio do sabor do ar, um silêncio feito daquele ar fresco que, se for aspirado profundamente, enche os pulmões com algo de belo."

Belo e simples. A beleza das pequenas coisas ;)

A contemplação, a natureza, a brisa do lago, as caminhadas ao luar: "(...) A Lua, como se fosse uma unha bem cortada, começava a descer e irradiava uma luz clara e difusa", os passeios com o cão Tarôt que apagavam nela a angústia e a tristeza e lhe permitiam voltar a sentir o mundo com uns olhos mais apaziguados, quase infantis - ansiosos pela descoberta. "(...) se o corpo se cala, a vista torna-se mais perspicaz".
Acalmando a ansiedade, Eiko segue mais consciente das ocasiões em que é mesmo necessário entrar em contacto com o mundo, sem deixar que o mundo a estilhaçasse mais.

*

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

«Os amores do Senhor Nishino» de Hiromi Kawakami :: Opinião

“Ato contínuo, ele colocou-se diante de mim. Tal como eu esperava, estava com cara de zangado. No entanto, a expressão era meiga. A doçura no rosto, o aprumo, a precisão com que atara o obi por mim era uma espécie de imagem de marca.”

"Nishino sorriu. Havia algo de misterioso no sorriso dele, como se soubesse de ciência certa que não existia nenhuma mulher capaz de o amar. O sorriso lembrava-me a chama azulada do aquecedor a gás."

Nishino e as suas amantes são tal como este frase: enigmática e ao mesmo tempo certeira, sem que perca uma aura própria que ecoa nos textos de Kawakami.  

“À imagem e semelhança do colecionador que estica as asas de uma borboleta e as fixa com alfinetes numa caixa. Como quem manuseia delicadamente o corpo sem vida de um inseto, a fim de preparar o mostruário. Pode dizer-se que ele me captara. Sem me ter sequer tocado com um dedo. Sem que tivéssemos trocado um olhar. (...)

No entanto, tinha qualquer coisa de suave, de quente e infinitamente agradável, criando a ilusão de que a aura era o próprio Nishino.”

Ilusório é sem dúvida um adjectivo para a linha ténue com que se cose este enredo. Vamos conhecendo, mas pouco, a história de Nishino, pelas várias mulheres narradoras, das quais também apenas vislumbramos algumas características, para, uma após a outra, constatarmos que aqui o que importa é o mistério, os humores flutuantes e a melancolia e, até uma certa estranheza, tudo bem macerado com uma boa dose de Natureza que se cruza com a cidade e se prova em vários encontros gastronómicos. Detalhes esses que compõem muito cada breve narrativa e permite quase estabelecer um padrão, mas mais nas mulheres que tão fácil se aproximam de Nishino, como sabiamente recuam e o negam com subtileza.

"Imaginava que a luz secreta que caracterizava os nossos encontros - que podia ou não ser natural - se perderia a partir do momento em que deixássemos de ser apenas dois.
Tínhamos uma relação efémera. Era precisamente o que me agradava nela. Se começássemos a conviver com terceiros, receava que isso fizesse de nós «um casal». Mal isso acontecesse, a nossa relação ficaria exposta aos olhos do mundo, como uma fatura na parede, e seríamos forçados a acertar contas um com o outro."

No decorrer dos vários anos, as tonalidades com que estas mulheres vão colorindo ou acinzentando Nishino, mostram-nos também as oscilações nos seus próprios sentimentos e as relações entre algumas delas, num jogo subtil, onde se analisam com mais ou menos frieza, mas tentam perceber-se como parte de um todo, um corpo único que tentou amar e compreender Nishino, sem negarem uma certa exuberância que contrastava em absoluto com a tristeza espelhada no rosto (de algumas delas).


quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

«De olhos fixos no sol» de Irvin D. Yalom :: Opinião

 

«Realize a sua vida» e «Morra na altura certa»

Os epigramas de Nietzche podem resumir o objectivo deste «De olhos fixos no sol» de Irvin D. Yalon, embora sejam mais fáceis de dizer do que praticar. E é com isso que nos deparamos ao ler sobre a necessidade de nos questionarmos e aceitarmos a inevitabilidade da morte e esse medo que nos persegue, por vezes disfarçado de imensas fugas e sofrimentos mal resolvidos.

Reconhecer a ansiedade da morte é aceitar um caminho manifestamente marcado pelo despertar de novas dinâmicas que trarão maior sentido às interacções interpessoais, mas também àquelas em que dialogamos para dentro, de modo a compreendermos que o que damos e deixamos aos outros não é mais do que uma soma de atitudes e momentos que apenas perduraram no tempo através das pessoas às quais nos conectamos (rippling).

Aceitar a morte ou encarar o sol de frente, reduzirá a miséria humana, ou seja, reduzirá a origem, a raiz da maioria dos nossos problemas. Ideia essa defendida por Epicuro e esmiuçada por Yalon nas suas sessões de psicoterapia. E claro, parte do objectivo deste livro é explicar que uma terapia bem orientada, numa base de empatia e conexão genuína entre o terapeuta e o paciente é encontrar um meio facilitador para superar medos e encontrar ferramentas de aceitação. E atenção, é aceitação, não rituais de protecção, onde reprimimos e engolimos a noção da nossa natureza finita.

“A morte realmente faz comichão e é uma comichão bem persistente; está sempre connosco, a arranhar alguma porta interior, a zumbir suavemente, quase sem se ouvir, mesmo por baixo da membrana da consciência. Escondida e mascarada, gotejando uma variedade de sintomas, é a fonte de muitas das nossas preocupações, stress e conflitos.”

Ler este livro pode realmente abrir algumas dessas portas interiores, mas o objectivo é mesmo esse, juntamente com relatos de casos clínicos, mostrar aos leitores, uma panóplia de situações que escondem esse receio da morte e o projectam em sentimentos, dores, preocupações e prisões que diminuem a qualidade e a força da existência de cada um de nós.

“O escritor existencialista checo Milan Kundera sugere que também provamos a morte através do acto de esquecer: «O que mete mais medo na morte não é perder o futuro mas antes o passado. De facto, o acto de esquecer é uma forma de morte sempre presente na vida.»”

Yalon vai mais longe e avisa-nos: contemplar a morte ou um grande episódio de dor, podes ser experiências decisivas para despertar e provocar mudanças, servindo-se de grandes filósofos (e não só!) para desmitificar noções contraditórias sobre a morte que inflamam uma existência menos independente.

“O leitor não poderá conectar-se ou dar seja o que for de importante aos que morrem, (…) a menos que esteja disposto a enfrentar os seus próprios medos, equivalentes aos de quem está a morrer, juntando-se-lhes num território partilhado. Ser capaz de fazer este sacrifício pelo outro é a essência de um acto de verdadeira compaixão e que traduz empatia. Esta disponibilidade para experimentar a nossa própria dor, em sintonia com a de alguém, tem feito parte da tradição curativa.”

A ideia poderosa do «eterno retorno» de Nietzche, em «Assim falava Zaratustra» que propõe um desafio: "(...) e se pudesse viver uma existência igualzinha à que viveu, uma e outra vez, por toda a eternidade, de que forma isso mudaria a sua vida neste momento?”

Se a mera sugestão de que pode ser obrigado a repetir tudo é assustadora, essa pode ser a força motriz que faltava para gerar mudança.

Ou seja, é o poder de olhar com maior transparência ao que nos acontece, permitindo uma maior higiene intelectual e equilíbrio emocional, alimentando a tão desejada serenidade mental ou equanimidade.

Mas o conselho maior é mesmo o de se socorrer de boas ideias, positividade e uma rede de boas memórias baseada na conectividade humana, combatendo a solidão e o isolamento e aumentando a compaixão e a empatia que permitem esbater a indiferença e baixar os muros da intolerância. E exemplo disso são sessões de psicoterapia que se sustentem na autenticidade, empatia e no olhar incondicionalmente positivo, criando uma interacção significativa. 

«Palavra do senhor» de Ana Bárbara Pedrosa – Opinião

“Dei-lhes pernas para andar, joelhos para correr, braços para chegar à fruta e mãos para agarrá-la. Olhos para não bater nos troncos, dentes para trincar, língua para palrar até dizer palavras e poder dar nomes às coisas. No fim, pareceu-me funcional e algo rústico.”

Do rústico e por entretenimento, tirou uma costela e fez Eva: “Já tinha aprimorado a forma, trabalhei os traços: ancas arredondadas, barriga lisa, pele macia. No peito, carne que parecia inútil, mas que viria a alimentar a espécie numa simbiose natural.

Tirei-a do homem por preguiça, mas quando ele percebeu julgou-a sua. Não foi logo, primeiro veio o pasmo de ver outra, e a confusão ao ouvi-la dizer «Eva». Tudo sem verbos ainda, o Verbo era só Eu.”

E da ausência de verbos, de passado e de futuro, questionou o paraíso: “Davam as mãos em direcção ao pôr-do-sol e não pediam mais da vida do que a felicidade até ao fim.

Chamam-lhe hoje paraíso, mas aquilo eram só árvores e maçãs. Não havia futuro nem passado, restava apenas um excesso de paisagem. Se acabassem com a fruta, que seria deles?”

Palavra do Senhor é isso mesmo, um livro de questionamento e reflexão, do que se construiu e destruiu com esse excesso de paisagem e uma mão cheia de abundância, ora de escassez, dominando a natureza inacabada de cada personagem que ditou o curso desta história às mãos da inevitabilidade do destino.

“Tinha sido feito para ser testado: já antes de nascer seria um assassino. Rejeitei-o antes de ter cometido o crime, a culpa e a morte eram a génesis da criação. Protestou contra a injustiça, mas falhou no alvo, quem morreu foi o irmão. Verdade seja dita, onde mais poderia gastar a sua raiva?”

Crime, culpa, castigo, o Bem e o Mal e um enredo com um narrador que compara os seus feitos a outros grandes da ficção, como Stephen King, teatralizando ainda mais o acto da criação e nivelando-o pelo que mais tem de terreno e palpável, sem esquecer um ou outro episódio mais transcendente.

“Não havia dúvida: quem nega o filho nega o pai, e ele assumiu a autoridade para falar por mim – espírito do seu sangue. Só assim poderia imbuir-se de uma razão maior do que os homens e então a sua palavra poderia ser igual ao Verbo. Não o pus no mundo para lançar a paz, mas uma espada, porque não quis barreiras para este cavalo à solta, e ele rasgou o ar com o seu golpe.”

Se dúvidas há sobre o conteúdo e a mensagem aqui habilmente compilados por Ana Bárbara Pedrosa, talvez baste dizer que enceta a desmistificação e concluí: “(…) todos saberiam que a razão última da vida era a família, que os humanos e os deuses deveriam unir-se para se protegerem uns aos outros.”

É um livro experimental, mas que assume uma voz muito própria e até irreverente, mas bastante cuidada e que desperta a curiosidade do leitor, seja para temas bíblicos seja para outros livros da autora.

«TRÂNSITO» de Rachel Cusk - Opinião

 

“Concluía por vezes que as pessoas desejam aquilo que não têm a certeza de poderem vir a possuir, outras vezes, a coisa parecia-lhe mais complexa.”

Dito quase nas primeiras linhas, esta frase tornar-se numa sentença que se estende como conclusão de diversos episódios ocorridos na vida da narradora protagonista, Faye, que em busca de mudança, que já haviam sido iniciadas em «Contraluz», a levam desta vez a procurar estabelecer-se por Londres.

Os desejos estão aqui em trânsito, e essa noção é de confluência, quase de engarrafamento, onde uma série de coisas empancam, umas atrás das outras, num curto espaço de tempo, tudo afazeres necessários aquando de uma mudança. Como a casa. O foco desta narrativa.

Por outro lado, são também todas as coisas que surgem a quem corre atrás de um tempo que parece ainda mais acelerado. E mais uma vez o título funciona muito como metáfora para as ocorrências e encontros. Ela está em trânsito entre duas realidades: a do eu unitário e solitário e a de um eu mais universal, mais partilhado que comunga com uma realidade mais sinérgica.

“(…) ao fim de tanto tempo, parecia ter criado um acordo tácito de que, até estarmos ambos seguros do chão que pisávamos, deveríamos permanecer em terreno neutro e orientarmo-nos por balizas públicas.”

Neutro é muitas vezes o terreno literário que se estende ao logo de todo o relato, neutro pela ausência, quase total, de enredo, já que os instantâneos da vida de Faye, embora narrados na primeira pessoa, parecem isentos de avaliações sentimentais. Não o são, mas surgem de forma muito inteligente e com um humor peculiar, expondo uma análise pelas atitudes de terceiros, talvez até como forma de não acrescentar mais itens à lista de pecados que Faye afirma possuir.

“Esta ideia de dois cães a partilharem a tarefa de decifrar os sinais do falcão, achava-a muito empolgante. Sugeria que a realização suprema de um ser consciente residia não na solidão, mas numa partilha tão elaborada e cooperante que quase podia dizer-se que representava o entrelaçar de dois eus. Esta noção, do eu unitário a ser rompido, da consciência, não de um aprisionamento nas suas próprias perceções, mas, antes, como alguma coisa mais íntima e menos dividida, uma universalidade.”

Da universalidade é compreendermo-nos pelo outro. Conclusões encontradas no discurso alheio. Afirmando o poder restaurador que é escutar, Faye, expõem-se menos, mas compreende-se nas revelações dos outros, que de forma brilhante narra ao leitor, abrindo apenas pequenas brechas sobre si mesma, como quem exercita e reforça, apenas em doses homeopáticas, o sistema imunitário. E por isso afirma: “talvez seja só nas nossas feridas que o futuro pode criar raízes.”

Ainda assim, a dualidade desempenha um papel importante, e talvez por andarmos em busca dela se consiga encontrar um certo enredo, fruto da natureza esgotante “(…) muitas vezes as pessoas se revelam, involuntariamente, por aquilo que notavam nos outros.”

“(…) se não pode ser interpretada, então pela concretização ao menos de um olhar humano admirativo, tal como uma pintura suspensa numa parede, aguardando.

Embora com passagens muito bem conseguidas, há uma certa redenção e um tom menos cáustico com que pincelou «Contraluz». E uma agressividade mais contida e até contemplativa.