"Às vezes você fazia um pensamento e morava nele.
Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. (…) E apesar de
tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai
parar de morrer. Será sempre o pai que se recusa a partir. Na verdade, você
nunca soube ir embora. Até ao fim você acreditou que os livros poderiam fazer
algo pelas pessoas. (…) É com eles que te invento e te recupero. É com eles que
tento descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar (…)"
«O avesso da pele» de Jeferson Tenório arranca desta forma e
diz muito sobre a incompreensão e a dificuldade de relacionamento entre duas
pessoas. Uma realidade áspera, antes e agora, a de um filho que procura
recuperar e entender as memórias e ausência, uma ausência feita de objetos, feita
caos que comove.
A ausência de um pai, que pode ao mesmo tempo, ser um legado e um abismo. Um abismo do qual se abeira qualquer filho quando, entre pai e mãe começa mal. E daí ser tão pertinente: descobrir quantas tragédias ainda podemos suportar.
“(…) o que começa mal termina mal. Eram apenas duas pessoas
quebradas. Cada um com os seus cacos. Cada um buscando uma escora. O amor como
muleta. Naquele momento, a vida já havia tirado tanto, que vocês achavam
injusto que o amor não pudesse servir como amparo. Acontece que, em vez de
buscarem algo que pudesse reconstruíram os afetos, resolveram se cortar o que
restou."
Pedro, o narrador protagonista, perde-se na geografia vasta
dos afectos, a analisar o interior do labirinto que foi a vida familiar dos pais, e até a sua,
colocando na equação questões cruciais que se cruzavam com o amor, que o
delimitavam e definiram: a cor da pele! A pele na sociedade, a pele em todos os relacionamentos. A pele dentro da cabeça de cada um que é sempre mais do que pele.
Ou, e mais importante ainda, a conturbada relação entre pele e o avesso da
pele!
Mesmo com o ocutá atrás da porta, a pobreza, o
preconceito e a injustiça, espreitavam a cada esquina e aumentavam a ferida
funda que ameaçava rasgar o avesso, mas Pedro tenta, neste relato, recuperar os
afectos e entender todo o tipo de herança que lhe ficou. E o que fazer com ela.
“Li recentemente que as relações afetivas são formadas por
duas categorias: dos egoístas e dos doadores. Você era um doador nato. Minha
mãe era uma egoísta nata. (…) não a condeno por isso. (…) A infância nos
fornece certas mágoas e é com elas que lutamos.”
Jeferson Tenório explora os afectos, mas explora ainda mais
o viver confinado ao meio-fio da vida, porque a sociedade te coloca
nessa mesma berma, nesse lado marginal da vida e como combater para sair desse
lado, onde se é posto de parte. E o romance explora diversas formas de viver à
parte, por se ser lá colocado e por tanto se lutar pela integração, que a
pessoa acaba criando uma margem só sua, um lado de dentro só seu… uma forma de
alimentar uma solidão inacessível aos outros, talvez vencida, só pelos livros* e pelos
afectos (quando possíveis).
"Vocês só sabiam lidar com os afectos na precariedade. Vocês não eram equilibrados. Eram equilibristas. A corda bamba como terreno dos afectos"
É nessa corda bamba que, com um pé bem atrás do outro – passos curtos mas nem sempre
firmes - se avança, embora a dor e o trauma desenhem os contornos destas vidas, com que Tenório compõe um livro belíssimo. Duro, mas belíssimo.
* capítulo 7 de «O Jogo do Mundo» de Córtazar que eu fui descobrir graças aos livros aqui referidos
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