“Dei-lhes pernas para andar, joelhos para correr, braços para chegar à fruta e mãos para agarrá-la. Olhos para não bater nos troncos, dentes para trincar, língua para palrar até dizer palavras e poder dar nomes às coisas. No fim, pareceu-me funcional e algo rústico.”
Do rústico e por entretenimento,
tirou uma costela e fez Eva: “Já tinha aprimorado a forma, trabalhei os traços:
ancas arredondadas, barriga lisa, pele macia. No peito, carne que parecia inútil,
mas que viria a alimentar a espécie numa simbiose natural.
Tirei-a do homem por preguiça, mas quando ele percebeu julgou-a sua. Não foi logo, primeiro veio o pasmo de ver outra, e a confusão ao ouvi-la dizer «Eva». Tudo sem verbos ainda, o Verbo era só Eu.”
E da ausência de verbos, de
passado e de futuro, questionou o paraíso: “Davam as mãos em direcção ao
pôr-do-sol e não pediam mais da vida do que a felicidade até ao fim.
Chamam-lhe hoje paraíso, mas aquilo eram só árvores e maçãs. Não havia futuro nem passado, restava apenas um excesso de paisagem. Se acabassem com a fruta, que seria deles?”
Palavra do Senhor é isso mesmo, um livro de questionamento e reflexão, do que se construiu e destruiu com esse excesso de paisagem e uma mão cheia de abundância, ora de escassez, dominando a natureza inacabada de cada personagem que ditou o curso desta história às mãos da inevitabilidade do destino.
“Tinha sido feito para ser testado: já antes de nascer seria um assassino. Rejeitei-o antes de ter cometido o crime, a culpa e a morte eram a génesis da criação. Protestou contra a injustiça, mas falhou no alvo, quem morreu foi o irmão. Verdade seja dita, onde mais poderia gastar a sua raiva?”
Crime, culpa, castigo, o Bem e o Mal e um enredo com um narrador que compara os seus feitos a outros grandes da ficção, como Stephen King, teatralizando ainda mais o acto da criação e nivelando-o pelo que mais tem de terreno e palpável, sem esquecer um ou outro episódio mais transcendente.
“Não havia dúvida: quem nega o filho nega o pai, e ele assumiu a autoridade para falar por mim – espírito do seu sangue. Só assim poderia imbuir-se de uma razão maior do que os homens e então a sua palavra poderia ser igual ao Verbo. Não o pus no mundo para lançar a paz, mas uma espada, porque não quis barreiras para este cavalo à solta, e ele rasgou o ar com o seu golpe.”
Se dúvidas há sobre o conteúdo e a mensagem aqui habilmente compilados por Ana Bárbara Pedrosa, talvez baste dizer que enceta a desmistificação e concluí: “(…) todos saberiam que a razão última da vida era a família, que os humanos e os deuses deveriam unir-se para se protegerem uns aos outros.”
É um livro experimental, mas que
assume uma voz muito própria e até irreverente, mas bastante cuidada e que
desperta a curiosidade do leitor, seja para temas bíblicos seja para outros
livros da autora.
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