quinta-feira, 12 de maio de 2022

“Uma Solidão Demasiado Ruidosa” de Bohumil Hrabal :: Opinião

Depois de mais de vinte cinco anos da primeira edição (Afrontamento, 1992), a estrondosa obra «Uma solidão demasiado ruidosa» de Bohumil Hrabal volta aos escaparates portugueses (Antígona, 2019).


"Só o Sol tem direito às suas manchas." 
Goethe


Um homem trabalha há 35 anos na companhia de papel velho, sujo e manchado e considera-se igualmente velho, sujo e manchado tal como as toneladas de enciclopédias e livros que destrói numa prensa hidráulica, também ela velha. Histórica, provavelmente!
 
"(...) sou culto independentemente da minha vontade e, assim, nem sei bem quais as ideias que são minhas e saídas da minha cabeça, e que ideias li. (...) afinal nem leio, apenas colho com o bico uma bela frase e chupo-a como um rebuçado, como se bebericasse um cálice de licor durante muito tempo, até que ideia se espalhe em mim como o álcool; ela dissolve-se em mim tão lentamente que penetra não só no meu cérebro e no meu coração mas pulsa também nas minhas artérias até as raízes capilares (...) o meu cérebro é feito de ideias prensadas pela prensa hidráulica - são pacotes de ideias - a minha cabeça é a noz da Cinderela, cujo o cabelo foi consumido pelo fogo."

É assim que se descreve e se sente este "terno carniceiro" que treme com as palavras que lê e se alimenta a cântaros de cerveja que o deixam desperto, para assim ter mais horas para ler e tratar de acumular livros que se empilham, periclitantemente, em forma de dossel, acompanhando-lhe o sono.

"E tenho a sensação física de que eu próprio sou um pacote de livros prensados, que também em mim existe uma pequena chama semelhante à de um esquentador, à de um frigorífico a gás, uma pequena lamparina eterna que todos os dias reanimo com o óleo das ideias que li durante o trabalho e independentemente da minha vontade nos livros que agora trago na pasta para casa."

Entre episódios sobre livros e outros da sua vida pessoal, Hanta consegue, como nas palavras de Lau-Tseu: conhecer a vergonha e conservar a Glória, já que o episódio com Mariazinha pode também ser uma metáfora para os seus dias narrados do fundo da cave bafienta, que habita com os seus livros, ambos condenados ao esquecimento por uma sociedade que ruboriza e se excita perante mais uma mancheia de ideias prensadas. Quadradas.

"(...) vivo num país que sabe ler e escrever há quinze gerações; habito um antigo reino onde havia e continua a haver o hábito e a obsessão de prensar pacientemente na cabeça as ideias e as imagens que trazem um prazer indescritível e uma mágoa ainda maior; vivo entre pessoas que são capazes de dar até a sua vida por um pacote de ideias prensadas."


Uma solidão demasiado ruidosa é uma ode ao amor pela literatura e aos livros como objetos, à arte em geral, mas também uma crítica à sociedade entalada entre o nazismo e o comunismo e daí a destruição massiva de livros e ideias. Um esmagamento contínuo.

Perdido muitas vezes ente o delírio, o sonho e alguns pesadelos, Hanta revisita grandes autores e os seus clássicos, filósofos e seus ensinamentos, mas não se esquece de aprender com um simples rato ou seu tio agulheiro, a quem quer copiar a ideia de um jardim de delícias, quase tão peculiares e bizarras quantas as de Bosh, no entanto, o futuro é uma ameaça em breves e frenéticos ruídos de tiquetaque, tiquetaque. 

"(...) eu consolava-me com a esperança louca de que a minha máquina faria greve, ficaria doente, fingiria que as suas rodas tinham ficado obstruídas e as correias partido, mas até a minha prensa hidráulica me traiu: trabalhava de uma forma completamente diferente, como quando era jovem: bramia, trabalhando com toda a força, e chegando à sua velocidade máxima tinia; desde o primeiro pacote tinia sem parar, como se estivesse a gozar comigo, como se quisesse demonstrar que só debaixo das mãos da brigada socialista do trabalho desenvolvera todas as suas capacidades e possibilidades.

Esta obra preciosa de Hrabal é quase simples como madeira tosca (e o amor simples da sua ciganita), sensível como se pudesse desmoronar-se apenas "com o som da voz", mas poderosa como a prensa que avança bruta e friamente, impondo-se a qualquer tentativa de revolução.

Ainda assim, se nascer é subir e morrer é entrar, Hrabal demonstra, através do activismo de Hanta, que tal como ratos ou os excrementos, também os livros podem ser destruídos, mas dificilmente desaparecerão por completo: "(...) do texto a mais sobra do que ideias imateriais que esvoaçam no ar, repousam no ar, se alimentam do ar e para o ar regressam, por tudo é, afinal, apenas ar, assim como o sangue existe e não existe, simultaneamente, na hóstia sagrada."