domingo, 30 de maio de 2021

«A Cadela», de Pilar Quintana :: Opinião


Pilar Quintana, autora conceituada na cena literária colombiana e na América Latina em geral, vencedora do Prémio Alfaguara 2021 com o romance «Os abismos», vê a sua obra começar a ser publicada em Portugal com o romance «A Cadela» romance finalista do National Book Award 2020. 

E que romance!


"A magia deste romance reside na capacidade de abordar questões importantes enquanto parece estar sempre a falar de outras coisas. Que questões são essas?
Violência, solidão, resiliência, crueldade. Os livros de Pilar Quintana maravilham-nos com a sua prosa desassombrada, acutilante e poderosa."                   Juan Gabriel Vasquez

 

Antes de tudo o que esta obra encerra e das feridas que pode deixar abertas, importa qualificar de grandiosa a capacidade da autora dizer tanto em tão poucas palavras. Abanar tantos fantasmas como o da culpa, dos sonhos perdidos, do desespero ou da solidão, mesmo com tão parcos parágrafos sobre o passado. Quintana descreve, tantos os seus personagens como as suas acções, de forma crua, serena e firmes nas suas emoções, arrastando-os para uma travessia contra a corrente. As vidas pequenas, mas enormes no sofrimento fazem-se ainda maiores quando dispersas pela natureza que se agiganta e os engole, tal qual os problemas eternos da natureza humana.

"(...) sentia que a vida era como um canal e que lhe tinha calhado ter de o atravessar com os pés enterrados na lama e a água pela cintura, completamente sozinha, num corpo que não lhe dava filhos e que só servia para partir coisas."

No cimo de um morro, uma barraca de gente pobre sobrevive às enchentes, sejam as dos rios ou as das intempéries emocionais de Damaris que em dias de humidade, "tanta que um peixe poderia manter-se vivo fora de água", alimenta com amor, gota a gota, uma cadela.

É essa mesma mulher, muitas vezes a sentir que se arrasta pelos dias, num silêncio apenas entrecortado pelo latir dos cães ou os sons da floresta que os podia engolir, que o seu corpo seco e pesado contrasta com a natureza que se renova em ciclos, que brota vida, mas que ela lembra como um burburinho choroso, digno de lamento. 

"Era uma noite de chuva intensa, mas estava calor (...) a sala pejada de melgas (...) Damaris, torturada pelos bichos, embrulhou-se da cabeça aos pés num lençol e deixou-se estar a ouvir a chuva, um zunzum contínuo que era como gente a rezar num velório."

Desconsolada e com os dias como os de um velório, o leitor acompanha, numa leitura sôfrega, a vida de Damaris e Rogélio, o marido, num avançar em crescendo que só pode terminar em tragédia, embora o leitor possa seguir enganado quase toda a narrativa.