sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

«Pedro Páramo» de Juan Rulfo :: Opinião

“(…) não há nomes próprios mais próprios do que os das pessoas dos seus livros.” Diz-nos Gabriel Garcia Marques nas breves notas nostálgicas sobre Juan Rulfo e é com essa enaltação e o entusiasmo da leitura que o leitor pode começar a embrenhar-se nesse clássico. É claro que é um clássico e o nobel coloca Rulfo do panteão dos grandes. Um génio na forma e na estrutura, nos diálogos, nas cenas, na composição de cenários com apenas uma mancheia de palavras. Não lhe escapa nada. Nem os nomes dos personagens fogem da sua genialidade. Antes pelo contrário.

Só há um senão em “Pedro Páramo”, as almas penam ou são penadas?

“- Este mundo, que nos aperta por todos os lados, que vai esvaziando punhados do nosso pó aqui e ali, desfazendo-nos em pedaços como se orvalhasse a terra com o nosso sangue. Que fazemos nós? Porque nos apodreceu a alma?” (pp105)

Avistamos Comala, ainda vivos, embora cambados como um sapato velho, devido à longa viagem em “tempo da canícula, quando o ar de Agosto sopra quente, envenenado pelo odor putrefacto.” A visão ao longe é triste e cinzenta, puro calor sem ar e o Almocreve diz que em Comala ainda será pior.

Com os diálogos e as descrições do que vê, o narrador coloca-nos junto dele desde o início. E logo aí há um aviso, desceremos a um lugar desolado, vazio, assombrado. Os mortos daquela terra, quando chegam ao Inferno, voltam amiúde a procurar o calor a que estão habituados.

Tudo naquele local é feio, retorcido, fétido, pobre, duro. Tudo contrasta com as memórias da mãe de Juan Preciado. O verde, os pastos, as searas… tudo secou. Tudo morreu. Aparentemente como tudo o resto. O que não pereceu, ensandeceu.

“A cama era de verga, coberta com mantas que cheiravam a urina, como se nunca tivessem sido arejadas ao sol; e a almofada era um enxergão cheio de cotão ou de uma lã tão dura ou tão suada que endurecera como madeira.”

A sujidade, a traição, o medo, a violência, as dificuldades e os abusos constantes por anos a fio, espremeram as gentes de Comala até ao tutano. Juan não fugirá à sina dos daquela terra, enrijecerá de medo, mas não resistirá. Entretanto o leitor, vai emudecendo e ficando sem fôlego, lendo abruptamente as cenas que sucedem umas atrás das outras, cruzando épocas e histórias, para se perder e logo a seguir se achar, ou achar que se achou entre almas perdidas e histórias ainda mais de perdição.

“E, para cúmulo, a aldeia foi ficando deserta; todos se fizeram à estrada para novos rumos e com eles partiu também a caridade de que eu vivia. Sentei-me à espera da morte.
(…)
- Lá fora, o tempo deve estar a mudar. A minha mãe dizia-me que mal começava a chover tudo se enchia de luzes e do cheiro verde dos rebentos. (…)
- Não sei, Juan Preciado. Há já tantos anos que não erguia a cara que me esqueci do céu. E ainda que o tivesse feito, que teria eu ganho? O céu está tão alto e os meus olhos tão sem olhar que vivia contente só por saber onde ficava a terra.”

A brilhar nesta Comala só a escrita de Rulfo, visível em cada descrição dos seus personagens, embora na maioria seja irreparáveis, mas arrebatadores. A mudança constante dos tempos em que acção decorre, entre memórias dos que sofreram às mãos do cacique, desfiguram a imagem de Pedro Páramo, um príncipe, um conquistador, um Maquievel senhorial, capaz de cometer as crueldades de um só golpe, mas distribuindo ódio e violência por todos, um por um, quase ninguém lhe escapou.

“Quisera adivinhar os seus pensamentos e ver a batalha daquele coração para rejeitar as imagens que ele semeava dentro dela.”

Em batalha andamos nós leitores, descodificando como tudo desmorona, até mesmo Pedro Páramo.

“Pedro Páramo, a personagem, é uma personagem de epopeia. O seu romance, aquele que tem o seu nome, é um mito que despoja a personagem do seu carácter épico” («Rulfo, o tempo do mito» por Carlos Fuentes)

terça-feira, 28 de novembro de 2023

"Baiôa sem data para morrer" de Rui Couceiro - Opinião

 

Chegamos a Gorda e Feia pela mão hábil e minuciosa de Rui Couceiro que encontrou na voz de um narrador anónimo, o veículo ideal para fazer chegar aos leitores as peripécias de uma aldeia onde de repente (parece, mas não é) todos começaram a morrer. Mas este professor-narrador não conta só a história dos que vão morrendo, conta também a história de uma região, de uma família – a sua – e de uma comunidade que também se fez família pela proximidade que o isolamento traz. E nessa família aceitaram este narrador-forasteiro que com a calma a que o calor obriga e a imensidão dos campos inspira, se fez menos pacóvio urbano e mais destemido perante a fantasmagoria rural.

Cúmplice nessa transformação estava Baiôa. Joaquim Baiôa, um homem enrugado, quase tanto como uma uva ao sol. Um homem que vivia na inquietação de cuidar, limpar, edificar, lutar… era a sua luta por permanecer, por não deixar morrer a aldeia onde sempre tinha vivido.

“Baiôa vivia consciente de que a inquietação edificava, sentia-se sabedor de que nada de mais humano existia do que o desassossego. (…) Vivia em agonia, sentindo o desespero do fim através das mortes dos outros, torturas permanentes para ele que ficava e não sabia por quanto tempo.”

Não era apenas Baiôa que viva em desassossego, também o narrador se sentia em desesperos, alguns até os desconhecia.

“Em certa medida (…) valeu-me o rio. (…) O rio, que em rigor é um ribeiro, será nestas páginas sempre rio, por absoluto merecimento de tal promoção: não só é entidade viva em terra de mortos (…) No rio, via o meu reflexo parado sobre as minhas ânsias correntes, duas partes de mim que se separavam uma da outra e das reflexões deixadas nas margens.”

Não são só as reflexões que o narrador deixa nas margens. Também lá vai ficando o telemóvel e as incontornáveis redes sociais que tanto alimentavam os seus dias e as suas insónias, coisa crónica que o apanhava constantemente. Ou melhor dizendo, coisa que lhe abalroava de todo as ideias e as certezas, de tal forma que até ouvia a mãe: “Nós não somos nada, filho,”

É entre estes cenários de tormentos e mesmo fustigados pelo calor que Baiôa e o narrador vão reconstruindo casas na aldeia enquanto compõem as abordagens oficiais que regem os trabalhos no Observatório da Morte.

«Baiôa sem data para morrer» é isso mesmo, um peculiar observatório das mortes em Gorda e Feia, uma incrível sucessão de acontecimentos com a qual o narrador se viu a braços, como quem toma notas naqueles papeizinhos amarelos com a banda autocolante a ficar-lhe presa em todos os seus movimentos. Até que, atulhado neles, se decide a escrever este livro, edificando assim uma homenagem às memórias da ruralidade que atravessa todos nós.

sábado, 11 de novembro de 2023

"O último acto em Lisboa" de Robert Wilson - Opinião


Robert Wilson converteu o género policial num épico, no entanto, tenho a sensação que enfiou o Rossio na rua da Betesga e expressão mais portuguesa não há para aquilo que faz ao longo de mais de 500 páginas. Há uma pesquisa imensurável e Wilson precisou cozê-la toda com ponto bem apertadinho para dar ao leitor uma viagem pela História recente de Portugal, sem esquecer detalhes de todo o género, no entanto, o diabo está nos detalhes. São demasiados. Nomes, referências, ruas, praças, patentes, expressões…. Tanto quantas as incontáveis personagens, mas… lá está, navegamos dos idos de 1990 e troca o passo para uma incursão à Alemanha nazi, para logo a seguir atravessarmos a serrania raiana portuguesa e entrarmos nos meandros do volfrâmio, cruzando a ruralidade inóspita com a ostentação da metrópole e as suas lides de espiões e quando o leitor está quase confortável com o que lê, mais um salto cronológico e a conspiração continua décadas atrás ou à frente e tanto estamos entre oficiais das SS como entre inspectores que tomam uma bica e um pastel e nata enquanto discutem trivialidades de um Portugal à espreita da viragem do século.

É intenso, é complexo, ganha ritmo, mas perde-o logo a seguir com a constante mudança nas personagens e com os infinitos detalhes. Os mal-afamados detalhes ;() Sem esquecer os que se disfarçam, mudam de rosto, de nome, de local… mal sabíamos nós que este «Último acto em Lisboa» era uma saga, embora o autor nos avise, disfarçadamente, pois também a linguagem usada é exímia e mestre do disfarce.

“Cheguei ao topo das gastas escadas de madeira e por instante senti-me como um homem a quem tivessem mandado carregar sozinho um piano.”

E lá vamos nós, empurrando o piano ou como Felsen, “(…) pisando e repisando o mesmo terreno , de tal modo que, se os seus pensamentos fossem passos, teria cavado uma trincheira circular até aos ombros.”

E a mestria do autor é essa, ele pisa e repisar, circularmente, cozendo com habilidade cirúrgica, uma conspiração que atravessa décadas e une as histórias que ao longo de muitas páginas teimam (assim parece) em não se cruzar. Sem esquecer, como estrangeiro que é, de ler, interpretar e escrever com humor, traços tão portugueses, que só nós português parecemos não ver, mas assim descritos tornam-se tão evidentes que não podemos fazer mais nada a não ser: rir!

“- A única coisa que os portugueses põem atrás das costas é a cadeira à hora das refeições. Vivemos com a história como se tudo continuasse a acontecer. Há gente nesta terra que ainda espera que D. Sebastião o Encoberto volte ao fim de quatrocentos anos para nos levar a cumprir Portugal…”

Entre factos muitos distintos, histórias e História, há ainda lugar para humor, roteiro turístico, crimes com investigações à portuguesa, especulações sobre heranças ancestrais, politiquices intemporais e um ou outro comentário romântico de pacotilha com pendor para o drama, ainda assim, a verdade não se escondeu debaixo do colchão como as notas de alguns, firmando a ideia “é tudo uma questão de negócios. O dinheiro não tem moral” ou a “impunidade dos tubarões”.



quinta-feira, 26 de outubro de 2023

«A lua de Joana» e «O guarda da praia» 30 anos depois 😉

 


O desafio de reler «A lua de Joana» foi lançado pela metade mais colorida deste blog, a ElsaR e em boa hora eu aderi. Não sei quem mais o fez, mas se nos lêem, não deixem de comentar, partilhando sensações.
São perto de 30 anos que separam estas leituras. 30!? Ah pois é. E as sensações desta leituras deveriam ser uma entrada de diário que eu pudesse comparar com outra, escrita pelo meu eu de doze anos. Mas não existe e recorrendo apenas à memória pouco por cá existe sobre ambas estas narrativa, a não ser pequenos detalhes: o baloiço em forma de lua, algumas sensações sobre a escola e a paixão, essa grande paixão que é a praia. Presença constante na minha vida. Tal como a leitura.

A primeira surpresa foi a ilustração com que abre o livro, foi uma surpresa, não me recordava nada dela, mas acho bem capaz, se ainda conservasse o meu exemplar, de a encontrar pintada. 

Ilustração de frontispício: Cristina Malaquias

Relendo este livro-fenómeno, por ser até hoje vendido e debatido nas escolas, reencontro acima de tudo a mística associada à escrita diarística e não deixa de ser curioso que nos últimos tempos tenha lido vários livros dentro deste registo, mas seja algo que não mantenha, nem procure ler. Mas tem calhado. E algo muito curioso é a forma como certas entradas parecem ser escritas pela minha mão, pelo menos algumas linhas, seja aqui neste registo mais adolescente, em «Dano e Virtude» de Ivone Mendes da Silva ou nas linhas atormentadas, ácidas e até repetitivas de «O regresso dos andorinhões» de Aramburu. O que é certo é que um diário encerra a eterna questão: a da incompreensão. E essas são as melhores passagens.


É precisamente nessa incompreensão que começa «A lua de Joana».
Joana não compreende o que aconteceu a Marta, o que a levou a tal desfecho, mas pior, não compreende como levar a vida adiante sem a sua amiga, a sua confidente, aquela que a ajudava a descodificar o mundo à volta delas. O mundo convulso e desafiante que é o da adolescência, os desafios de saber o que estudar, a dificuldade em compreender a família, os amigos... e o papel num todo no qual não se reconhecem. Por isso, Joana continua a escrever a Marta, mesmo a amiga estando morta. Escreve em busca de resposta, despejando as mágoas no papel e enquanto o faz revela a solidão e o desamparo que sente e nós, hoje 30 anos depois, vemos tantas coisas mais que não veríamos com doze ou treze anos. Há uma desconexão brutal entre os elementos estereotipados desta família, falha a comunicação e falha logo numa fase crucial, a do luto e a solidão. Joana não tem como nem como quem tapar o buraco que lhe comprime o peito e as ideias. Ou até tem, mas por pouco tempo e esse segundo luto define um caminho que já se adivinhava no horizonte.

Sem dúvida que «A lua de Joana» é um livro que merece ser lido e relido. É um objecto de estudo e de debate e consoante as idades, as sensações e preocupações mudam e isso ainda o melhora mais, por ser capaz de se transformar juntamente com os seus leitores.


Com «O guarda da praia» as sensações são diferentes. As preocupações também. Embora os temas sejam igualmente importantes, pois existe um alerta para a preservação e respeito pelo meio ambiente e também uma relação, até certa parte nebulosa, entre uma mulher e uma criança, recriando um pouco o mito do menino selvagem, sem esquecer questões de abandono familiar e a maternidade.

Gostaria muito, talvez até mais, de ter a tal entrada no meu diário e reler as ideias sobre esta história, lembro-me de ter gostado muito, de ter escrito até qualquer coisa inspirada por esta praia, mas a memória está carregada disso: efeitos-dos-livros 😉




segunda-feira, 23 de outubro de 2023

«Duas mulheres em Praga» de Juan José Millás :: OPINIÃO


«Duas mulheres em Praga» é um reencontro com toda a estranheza, mas também toda a autenticidade que povoam cada livro de Millás. É certo que nem sempre é fácil encontrar as palavras que dão forma aquilo que se sente a cada leitura, pois talvez precise de vivenciar o mundo mais com o lado esquerdo, especialmente em dias em que sou atacada pelo lumbago. ;) Estranho? Não! É só o mundo Millás a tomar conta do texto.

Estranhas são as coincidências entre leituras e a forma como dialogam e se interceptam, neste caso, entre este e o livro de Edith Wharton. É quase como se lhe respondesse ou assim quis eu lê-lo quando aceitei este périplo por entre filhos órfãos, pais adoptivos, mulheres que se completam e homens em dúvida acossados pela própria genialidade. Ou a genialidade é das mulheres e eles simplesmente alimentam-se delas?

“- Estou de baixa, por depressão. Sou funcionária pública e decidi nunca mais voltar ao escritório, nunca mais, mas para não voltar tenho de me deprimir mais ainda. O médico nota quando se fica boa e, por isso, estive dois meses a fazer exercícios de depressão para continuar de baixa. Mas dois meses sem falar com ninguém é demasiado. É de enlouquecer. Então vi o anúncio das biografias, liguei para os Ateliers Literários e marquei a entrevista.”

Garanto que o leitor em nada vai deprimir, mas de vez em quando gargalhará como um louco perdido nesta “geografia sem mapa”, ao que se deve acrescentar: aparentemente sem mapa, já que a habilidade de Millás é precisamente essa, não só compõe o mapa como as instruções para lê-lo e tudo em pouco mais de 170 páginas, descrevendo a vontade de cada uma destas personagens em ter uma vida mais plena, mais saldada, porém a vida teima em ficar a dever-lhes sempre alguma coisa.

“- Não és viúva, pois não? – perguntou ele.
- É como se fosse.
- Não te preocupes, eu também não sou órfão.
- Olha que é um alívio. A que te dedicas?
- Sou escritor – disse Álvaro, e inexplicavelmente saltaram-lhe as lágrimas como a Luz Acaso quando lhe disse que era viúva.
- Conheço outro escritor que também chora por tudo e por nada. Vocês são uns fracos.
- Não é que sejamos fracos – respondeu ele, reprimindo o pranto -, é que a vida deve-nos qualquer coisa que não nos dá.”

Esta realidade constantemente em dívida, compõe um novelo a desfiar-se numa dimensão paralela, sob a qual o leitor vai levitando inocentemente e incólume aos nós e penitências de cada um deles. Uma penitência ensaiada ou um delírio acarinhado. Calculista também. Ainda assim, o leitor compadece-se como se fossem assuntos sérios e perturbações reais

“Colocou o espelho retrovisor de maneira que, em vez de ver o trânsito, se visse a si própria. Deste modo, cada vez que olhava distinguia os seus próprios olhos e imaginava que eram os de uma passageira que viajava nas suas costas, perseguindo-a, embora se sentisse cada vez mais longe de si mesma.  (…)
Pensei, então, que cada um de nós tem dentro um «o que não», quer dizer, algo que não lhe aconteceu e que no entanto tem mais peso na sua vida do que «o que sim», o que lhe aconteceu.”

Diria até que a mestria de Millás é fazer com que as suas personagens se afastem sempre de si mesmas enquanto nunca se afastam um milímetro sequer dos seus dramas, criando conflitos e duplicidades maravilhosas, ficcionando muito bem a vida que nada tem de plana ou linear e basta ajustar o retrovisor para nos convencermos disso mesmo.

Ou como o próprio narrador nos diz, que um Ninguém se torna alguém porque o escrevemos com letra grande 😉 E que as mentiras, quando biografadas, tornam-se verdades, sempre carentes de mais um capítulo, porque a realidade nem sempre sabe escrever-se e precisa de mão habilidosa.


“- Olha, é uma amiga que te admira muito. Agora está a conquistar o seu lado esquerdo, para escrever um livro Canhoto.
- O que é um livro Canhoto?
- Não sei. Um livro escrito com o lado que não se sabe escrever.
Álvaro sentiu que Luz Acaso acabava de verbalizar com uma simplicidade surpreendente, uma ideia sua (…)
Fui tomando consciência de que estava a ser vítima de uma ficção que o meu próprio desejo contribuíra para construir. Era tudo mentira, de acordo, mas as peças dessa quimera começavam a encaixar tão bem que precisava de me repetir continuamente, é mentira, é mentira, porque à medida que os minutos passavam, era cada vez mais verdade.”

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

"A História do Riso e do Escárnio" de Georges Minois :: Opinião


Algumas considerações sobre uma leitura salteada mas atenta, deste grande compêndio sobre essa arte tão humana: o RISO!


Premissa para o estudo
: “Não será interessante verificar, por exemplo, que vivemos hoje em dia numa dupla contradição? 

Por um lado, há muito quem tenha a impressão de o riso estar em regressão quando, de facto, ele se mostra em toda a parte; por outro lado, nós rimos cada vez menos, enquanto todas as ciências nos gabam os méritos, mais ou menos miraculosos, do riso.

Compreender o riso é compreender a história da evolução do homem.

O «inextinguível riso» dos deuses. Os deuses riem e riem muito desde a Antiguidade e riram-se de tudo, sendo implacáveis com tudo. O riso serviu todos os propósitos, desde a violência, à deformidade, à cumplicidade e ao regresso à vida.

Do riso dos deuses até à humanização do riso foi um passo filosófico, com um afinamento da linguagem e uma intelectualização: “ao riso homérico, duro e agressivo, sucedeu a partir do século IV, o riso aveludado, sinal de urbanidade e de cultura, o riso finamente irónico Que Sócrates punha ao serviço da busca da verdade.”

Mas atenção, o riso oponha-se ao sagrado, ao equilíbrio, à sensatez e ao autodomínio. E toca de afinar mais uma vez o riso: a sátira. A inteligência da sátira política e a capacidade de auto-escárnio.

“A tomada de consciência do ridículo., do monstruoso e do absurdo no interior do ser gera um soluço caótico e gelado que do riso, já só tem as características físicas: «Instrumento de arte, Visão estruturada do mundo, mas construção, também., de um universo de já do total, o grotesco constitui um instrumento eficaz de uma análise lúcida, por vezes ridícula, mas cruel, do homem absurdo de todos os tempos.» (L. Callebat)

É bem por isso que a comicidade grotesca só aparece num estádio tardio da evolução das mentalidades e da cultura numa dada civilização. Resulta da verificação da incompreensibilidade do mundo, verificação consecutiva a traumatismos coletivos que desfiguram a fachada lógica das coisas que por trás das aparências deram a entrever uma realidade proteiforme* na qual nós não temos poder. O riso grotesco refere-se à própria essência do real, que perde a sua consistência. Verdadeira desforra do diabo, no sentido em que pulveriza a ontologia e desintegra a criação divina, reduzida ao estado de ilusão. Ao lado do riso irónico, verificação do absurdo, o riso grotesco é uma declaração da improcedência; dois risos cerebrais que reduzem o ser ao absurdo ou a aparência.

(*que muda de forma frequentemente)

O riso filosófico e a filosofia do riso perduram séculos e as discussões sobre o riso, do grotesco ao absurdo, passando do satírico à loucura, à estudada ironia, à comicocracia ou à proibição (ou tentativa) do riso, entre tantas outras formas de expressão, compõem séculos de história sobre a maledicência do outro e o prazer a isso associado.

O riso caricaturista «Realiza desproporções e deformações que deviam existir na natureza no Estado de veleidades, mas que, repelidas por uma força melhor, não vingaram. A sua arte, que tem qualquer coisa de diabólico, substitui o demónio que o anjo deitou por Terra».

E, ainda: «O riso é sempre verdadeiramente uma espécie de troça social». Nunca era um prazer puramente estético. Trazia em si: «a intenção inconfessada de humilhar, e com ela, é verdade, a de corrigir». Castigava muito mais a insociabilidade que a imoralidade.”

“Rir é, antes de tudo, uma sanção. Feito para humilhar, deve dar uma impressão dolorosa à pessoa que é seu objeto. A sociedade vinga se por seu intermédio das liberdades que foram tomadas contra ela. O riso não atingirá o seu objetivo, se trouxesse a marca da simpatia e da bondade.” (H. Bergson, 1989)

Por isso o autor afirma que o século XX, esse século horrendo que nunca mais acabava, morreu de riso, soube zombar de si mesmo. Precisava!

“(…) um riso louco (…) um riso nervoso e incontível. O mundo riu de tudo, riu dos seus deuses e dos seus demónios e, principalmente, de si próprio. O riso foi o ópio do século XX, de Dada aos Monthy Pithon. Essa droga suave deu à humanidade um meio de sobreviver às suas vergonhas. Insinuou-se por toda a parte, e o século morreu de overdose – uma overdose de riso quando, depois de tudo reduzido ao absurdo por esse riso, o mundo se achou de novo perante o seu não-sentido original.”

 

O século XXI ameaça o riso com a sua comercialização, globalização e massificação.

O riso virou produto de consumo. Terá validade? Gastar-se-á a fita? Catalogado perderá público? Haverá neste século tendencioso uma ditadura do riso disfarçada de uma qualquer felicidade (obsessão!) de rápido consumo?


“(…) reencontramos nisto a ideia de escárnio universal: o riso como refúgio supremo e recusa das ilusões ideológicas. Mas também aqui o riso voluntário, utilitário e planificado, coagula depressa. A festa contemporânea queria domesticar o riso, mas ele só pode voar em estado selvagem, em pura liberdade.”

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

«O homem mais feliz no mundo» de Eddie Jaku - Opinião

Foi com enorme gosto e interesse que conheci Eddie Jaku, embora tenha sido uma leitura entusiasmante, foi igualmente uma leitura sofrida, mas quem sou eu para falar de sofrimento perante um relato destes!

E por isso mesmo a melhor mensagem que se retira desta leitura só pode ser o mantra que acompanha esta biografia.

"Quem partilha as dores, sofre metade.
Quem partilha o prazer, desfruta o dobro."

Claro que são palavras bonitas que pretendem olhar para trás com o pendor do perdão e da superação de anos e anos de tormentas com memórias e fantasmas, mas também isso Eddie Jaku revela quando nos diz até que ponto foi infeliz e atormentado e a partir de que ponto senti uma emoção sem igual que lhe permitiu abraçar o futuro com outra postura. Ainda assim, essa alegria do nascimento do filho teve sempre uma sombra: quando e quanto devia revelar da sua história pessoal como vítima do Holocausto?

"Foi uma emoção muito forte. Desatei a chorar. A minha irmã nem quis olhar para a caixa, tão perturbada se sentiu. É impossível esquecermos a imensidão da dor que carregamos e do sofrimento que sufoca o nosso subconsciente, até nos confrontarmos com provas de tudo o que perdemos."

Essa revelação - um choque para muitos - foi outra parte da superação que o levou a acreditar ser o homem mais feliz do mundo e mais uma vez o seu mantra fazia sentido. É preciso partilhar, é preciso sofrer e sorrir em comunhão com os outros, quer sejam eles outros sobreviventes, a sua própria família ou estranhos espalhados pelo mundo. Eddie acreditou sempre que de cada vez que partilhou a sua história fez um amigo. Que em cada leitor que leu o seu livro fez mais um amigo. E que cada amigo partilhará a sua história e que é dessa partilha que nasce a empatia que nos permite tomar parte naquilo que é correcto.  

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

"O Filho de Duas Mães" de Edith Wharton :: Opinião

A estreia com Edith Wharton não podia ter sido melhor, «O filho de duas mães» tem uma aura misteriosa tal como a caracterização de Bernard Berenson sobre a autora e a sua obra: “Edith Wharton mantêm-se apenas incontactável, num sítio qualquer onde não a ouvimos e de onde não pode responder-nos. É muito duro, mas não é aquilo a que chamamos morte.”

É com este pesar e fascínio que sentimos o enredo, para o qual é difícil encontrar sinopse, embora as palavras de Berenson funcionem muito bem, cativando o leitor a abrir o livro, e encetada a leitura, tornam-se num prenúncio.

São as palavras de Aníbal Fernandes que abrem o livro mas eu só as li no final, e ainda bem, encontramos nelas algumas revelações que eu dispensava antes da leitura, mas achamos também o medo, a solidão, a opressão e a renuncia, sentimentos dos quais o enredo se alimenta, e junto com a qualidade da escrita, são a maior experiência de leitura.

Leitura essa que fiz com voracidade e sofreguidão, tanta que não me deixou espaço para conclusões precipitadas ou óbvias, de tão enlaçada que estava. Tanto melhor, ter acontecido dessa forma. O medo tornou-se real, a opressão apertou-me de igualmente, a desconfiança gerou dúvida de todos e a solidão, essa, partilhei-a com qualquer uma daquelas personagens, mas nunca tomei as vezes de narrador e me senti tentada a antecipar desfechos. Coisa rara em mim. Senti-me completamente levada pelas sensações de cada uma daquelas pessoas, sem no entanto favoritar ou desprezar, aliás flutuamos muito por sentimentos contraditórios, fruto da mestria com que está escrito este «O filho de duas mães».

A qualidade narrativa redobrar o estado de confusão do leitor, em muito conseguido pela forma como o narrador desenha as personagens diante dos nossos olhos, quase dando um pedestal a estes personagens de sentimentos (e atitudes) indecifráveis.

“(…) dei por mim sentado ao seu lado e a recordar-me destas coisas. «Pobres criaturas – era como se dois bustos de mármores fossem quebrados, atirados do alto dos seus pedestais e esmagados», pensei ao relembrar-me dos rostos do marido e da sua mulher depois de o rapaz morrer; «e ela, a pobre mulher, foi duas vezes esmagada…”

Se Catherine Glenn tinha a perfeição de um busto renascentista, já a frieza do mesmo não se lhe podia atribuir, especialmente à medida que adentramos na história das duas mães e sem precisarmos do laço taciturno e enfermo do recém-descoberto filho, embora a sua sensibilidade artística complete ainda mais a percepção que o leitor tem: a maternidade não é o tema fulcral, mas talvez uma generosa ostentação da solidão. Uma suposta fragilidade.

“Ser verdadeiramente maternizado era para ele uma nova experiência (…) ele era sensível de mais para a classificar (…) resignou-se a olhá-la como alguém que possuía um indecifrável orgulho e uma incorrigível perfeição. (…) Ela é um tema.”

Inebriados seguimos com estas personagens-tema até ao declínio de uma e a ascensão corpulenta de outra, esquecendo o filho ou o narrador, mas não um outro tema, o do quanto somos colonizados pelo outro e ansiamos devolver o resultado dessa colonização


quarta-feira, 13 de setembro de 2023

«História do Repouso» de Alain Corbin - Opinião


«Toda a infelicidade dos homens provém de uma só coisa, que é não saberem ficar em repouso num quarto.»

Quem o disse foi Pascal, mas Corbin vai mais além, dizendo, logo ao abrir deste pequeno tratado sobre a evolução do conceito de repouso: «É nos momentos de repouso que sabemos no que estamos a pensar.» Porém, arrisco a dizer, após uma leitura atenta, mas em repouso (daquele lânguido de quem se espraia ao sol), o que esta História do Repouso nos deixa a pensar é que a História da Humanidade se cruza, ou se faz, pela da Religião e a da Igreja, a do Dinheiro e da Industria e muito das Modas e Tendências, existindo uma circularidade daquilo que é esperado do ser humano, assim sendo, que espaço lhe sobra para saber no que está a pensar?

Ficamos inclusive a indagar se mesmo quando há espaço para esse encontro com o Eu, se rapidamente não se procuram outras formas de repouso. E a organização secular da sociedade tem variado a oferta. Nem que seja com a missa, a oração, o trabalho ou a demonização da inutilidade, já que repouso teremos muito quando entregarmos a alma ao criador.

E embora as ideias de repouso e descanso dominical tenham herdado muito do advento do cristianismo e pelo qual o autor deambula bastante, há a evolução do conceito de repouso associado ao trabalho e à consequente alteração do mesmo com a revolução industrial, sem esquecer, conforme os séculos foram passando, e consoante os pensadores de cada época, os estados de alma e os temperamentos também ditarão tendências sobre o era o repouso e como se deveria praticá-lo, até entrarmos nas prescrições médicas do repouso como curativo.

“Quando De Maistre descreve os prazeres do confinamento, pensamos logo nos pensamentos de Pascal sobre os benefícios do repouso no quarto. No fim do século XVIII, a teoria dos temperamentos, que associa a circulação dos humores aos traços de carácter, já entrara em declínio; porém, no caso de Xavier de Maistre, podemos sem dúvida, incluí-lo na categoria dos indivíduos de temperamento linfático (…) era um apreciador das delícias da «flânerie» (…) era um entusiasta da «viagem imóvel» e sentia fascínio por espaços fechados, considerados um «refúgio eleito e estável», que convidavam a um repouso longe da vã agitação.”

O repouso como refúgio ou o encontrar refúgio para repousar é mais tarde a ideia base dos sanatórios, fossem para estados de melancolia e para os valetudinários ou outros tipo de inválidos, todos eles “vitimas de um desregulamento geral da saúde”, mais tarde como famigerada cura para a tuberculose e enquanto Corbin vai relatando e referenciando como todas estas passagens do tempo alteraram a História do Repouso, o leitor está sedento do capítulo sobre aquilo que está a fazer no preciso momento da leitura – estatelado ao sol com o livro em jeito de mini-sombrinha – até que se depara com o termo vilegiatura, pára tudo, baixa o livro, olha o mar e apercebe-se que está em vilegiatura, termo pelos vistos utilizado desde o século XVII, isso mesmo dezassete ;) e continua a ler: “(…) deve a vilegiatura marítima ser incluída numa história do repouso? É lícito afirmar que esta novidade alterou, de um dia para o outro, o conceito de repouso?" e entramos um pouco na Anatomia da Melancolia, Robert Burton que nos fica já na lista.

E seguimos com a leitura e percebemos que a prescrição para a vilegiatura pressuponha “estratégias de repouso em sintonia” (e busca) com a quietude, a introspecção e as sensações agradáveis e apaziguadoras do contacto com a Natureza. Sem dúvida muito diferente do que a maioria pratica hoje em dia, ou considera repouso e férias.

Ostentar o repouso e sentir-se contente (e tranquilo) com essa prática, alimentar uma certa inutilidade e preguiça e exigir o direito ao ócio tem sido cada vez mais estudado e alvo de uma atenção redobrada, ganhando o estatuto de necessidade básica, estudos esses em paralelo com outros sobre doenças, criminalidade, suicídio, produtividade, entre tantas outras vertentes da vida moderna, especialmente aquela que faz do repouso (ou lazer) outra tarefa, com horários, tensões e consumo, transformando mais uma vez o conceito de repouso: Porque deixámos de descansar, se descansar faz parte da jornada?

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

«O Relatório de Brodeck» de Philippe Claudel :: Opinião

«O Relatório de Brodeck» é um inventário da tristeza, da desumanização, da traição, do medo e da solidão, mas é também um inventário da beleza, da esperança, da luta e da crença na palavra. Palavra após palavra, pouco a pouco, o nada ganha conteúdo, dimensão, profundidade, memória. O Relatório é isso mesmo, um compêndio de pequenos nadas que compõem memórias fortíssimas (muitas vezes duras de serem lidas), recordações que não se podem perder, porque cada homem é uma soma de pequenos nadas que justificam tudo!

“Cada homem encontrava-se curvado sobre o seu próprio silêncio, mesmo havendo quase quarenta pessoas no albergue. Estávamos comprimidos como hastes de salgueiro num feixe, asfixiando, respirando o cheiro uns dos outros, os hálitos, os pés, a viscosidade ácida do suor, da, da roupa húmida, da lã velha e do algodão., sujos da poeira, da floresta, do estrume, da palha, do vinho e da cerveja, sobretudo do vinho. O que não significa que estivessem todos embriagados, não, seria demasiado fácil acusar a embriaguez. Apagar-se iam de uma penada as atrocidades. Demasiado simples. Mesmo, muito simples. Vou tentar não abreviar o que é muito difícil e complexo. Vou tentar. Não prometo que consiga.”

E não conseguiu abreviar porque lhe vieram à cabeça, à boca, às noites e à palavra, os pesadelos a que as atrocidades do campo de concentração o condenaram. Voltou tudo, envolto naqueles cheiros e sensações, naquelas ordens que o sentenciaram perante a urgência e a obrigação de relatar. Relatar para ilibar pela palavra. Pela mesma palavra com que falava para si mesmo, descrevendo a beleza, igualmente esmagadora e aprisionante, da aldeia e a Natureza envolvente e só por aí entram alguns raios de luz na narrativa, pois o O Relatório, esse, é pior que o Inverno da sua aldeia.

“No Inverno que, na nossa Terra, é longo como séculos espetados uns atrás dos outros, numa grande espada e durante o qual, à nossa volta, a imensidão do Vale, asfixiado pelas florestas, desenha uma extravagante. Porta de prisão.”

Nos dias seguintes ao Ereigniës (palavra em dialecto usada para descrever a noite do evento) nada mais será quente para além dos ânimos da população, as braseiras ateadas por boatos e as coxas de Boulla, que é talvez das poucas vezes que nos faz rir, embora todos os habitantes sejam peculiarmente descritos, como o velho Diodème que Brodeck achava digno das epopeias e desconfiava ter sido enviado pelos deuses, mas com que intuito?

Entre questões sem resposta e memórias que caem, Brodeck reaviva o medo, sempre o medo. O medo é personagem deste romance, juntamente com o mal.

“Sinto que não fui feito para esta vida. O que eu quero dizer é que a minha vida transborda por todos os lados, que não foi talhada para um homem como eu, que se enche de muitas coisas, muitos acontecimentos, muitas misérias, muitas falhas. Talvez a culpa seja minha? Talvez eu não seja capaz de me revelar um homem? De pegar ou largar, de seleccionar. Ou talvez a culpa seja deste século em que vivo, e que é uma espécie de grande funil no qual se vasa a sobra dos dias, tudo o que corta, esfola, esmaga e retalha. Recordo o meu medo, como se o medo, doravante, fosse uma peça do meu vestuário. Uma peça que, de resto, nunca consegui despir, muito pelo contrário, e que me comprime como se me encolhesse de semana em semana. O mais estranho é que, quando eu estava no campo de concentração, quando me chamava Cão, Brodeck, não tinha medo. No campo de concentração, o medo não existia. Eu estava para lá do medo. Porque o medo ainda pertence à vida.”

Brodeck fez parte dessa marcha de cadáveres, regressou de onde não se regressa e afirma várias vezes que a morte não é difícil, difícil é tentar sobreviver perante a constante ameaça de morte, a ideia, o foco, a concentração numa única sensação, a de morrer. E o ser humano não foi talhado para viver assim. Por isso o Inverno lhe era tão doloroso, memórias como mancheias de neve entre a roupa e a pela. Um frio cortante que queima.

O Relatório vai continuando e pouco é revelado sobre o seu verdadeiro alvo, o Outro, o Estrangeiro, O Estranho, O Forasteiro, ou seja, O Anderer, o homem que foi morto pela população cega de desconfiança, porque o desconhecido é uma ameaça, mas uma multidão é uma ameaça maior, especialmente quando confrontada com o boato, a desconfiança ou o que é puro. Como a pureza dos animais fortemente atacados e usados, embora Brodeck avance e recue na história e nos faça, ora detestar ora compreender cada uma daquelas pessoas.

O que é certo, é que a guerra devastou e os seus horrores não têm fronteira, não precisam de país ou idioma, os traumas têm extensões mais altas que as montanhas e efeitos mais desconhecidos que as entranhas da terra, sempre adensados pelo isolamento e a escuridão

“Releio as páginas já escritas da minha narrativa, apercebo-me de que sigo pelas palavras como um animal acossado, que corre veloz, aos ziguezagues, procura despistar os cães e os caçadores lançados em sua perseguição. Há de tudo nesta confusão. Ostento a minha vida. Escrever alivia-me o coração e o ventre.”

Já o leitor não segue nem sai de coração ou ventre mais aliviado, antes sim num novelo, mesmo quando Brodeck cruza as suas palavras com as de Nösel e nos diz, à laia de dúvida ou de esperança que «o homem é um animal que recomeça sempre», não obstante, afirma que o autor nunca respondeu sobre o que é que o homem recomeça e o acuse de ter esquecido o verdadeiro mundo por se ter dedicado aos livros. Mas também ele, Brodeck se dedicou aos livros, desde cedo pela mão do padre Peiper.

“Alguns devorarão, outros, esventraram-nos, violaram-nos, conspurcaram-nos. E o que é justo nem sempre triunfou sobre o que é sujo.

O que me obrigou, como milhares de outros homens, a carregar uma cruz que não escolhera, a sofrer um calvário que não fora feito para os meus ombros e que não me dizia respeito?

Quem decidiu, então, remexer a minha obscura existência, desenterrar a minha parca tranquilidade, o meu anonimato cinzento, para me lançar como uma bola tresloucada e minúscula para o meio de um imenso jogo? Deus? Mas então, se Ele existe, se Ele existe realmente, que se esconda. Que erga as mãos à cabeça e a curve. Talvez, como dantes nos ensinava Peiper, muitos homens não sejam dignos Dele, mas hoje também sei que Ele não é digno da maior parte dos homens, e que se a criatura pôde gerar o horror, foi unicamente porque o seu criador lhe forneceu a receita.”

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

"A piscina" de Libby Page :: Opinião


Sou uma amante de praia e de dias que envolvem mergulhos e o som do mar como única companhia. Adoro o efeito da água salgada no cabelo, a areia no pé, os desenhos que ficam de nos deitarmos na areia e o terminar de qualquer dia é sempre melhor se for com uma caminhada à beira-mar, maré bem vazia (e a praia também, de preferência) e o sol a cair e transformar tudo aquilo em que toca apenas já por breves momentos. Ler à beira-mar, de cadeirinha enterrada na areia molhada… Enfim, podia continuar a descrever cenários que envolvem a praia, porque a piscina, sendo pública e municipal e tem regras, mas mesmo assim, é um espaço onde cada vez mais recorro para recarregar baterias e nivelar os humores 😊

E o mesmo se passou com este livro «A PISCINA» de Libby Page, que em boa hora as minhas queridas Rodistas me chamaram à atenção para ele, por isso, de todas as vezes que o abria foi como se desse um mergulho na minha piscina, aonde regressei em plena pandemia e por lá me tenho mantido, seja para treinar ou relaxar. No meu pote com papelinhos coloridos, que são notas de gratidão, de um ano para os outros, reencontro inúmeros agradecimentos por mais um mergulho e a água fria que tantas vezes (ou quase sempre!) é curativa.

Contudo, «A Piscina» não é só para os fãs de mergulhos em águas frias, lycras justas e tocas apertadíssimas que comprimem o cabelo e as ideias 😉 são também para quem queira uma história leve, que ainda assim toca em temas sensíveis, como a perda, o luto, a ansiedade ou a falta de confiança em nós mesmos e sensibiliza para a importância de equipamentos públicos que criem espaços de convívio e partilha e assim se fomente um maior sentimento de comunidade. E pelo meio, conhecemos Rosemary, numa idade em que já só se flutua, ou dentro de água ou nas memórias e é aí que a conhecemos jovem e percebemos o quanto uma simples piscina acompanhou e definiu a sua vida familiar, como pode agora definir a de kate.

“Chega sempre com antecedência, mas só se sente mesmo confortável quando a luz diminui e, como ela, todos se perdem no filme. Estica o pescoço para o ecrã e vê a comédia romântica, o thriller, o filme de espionagem escolhido este mês., chorando ou rindo em coro com os outros espectadores. A emoção flui pela sala como uma onda. quando assiste a um filme, não está sozinha, faz parte de algo maior, um rosto sem nome numa grande plateia de rostos sem nome.”

Esta massa humana e tantas vezes incógnita no seu todo, também pode estar na piscina, naquela orquestra de barbatanas, pás, mãos e pés nus, que dialogam com os guinchos das crianças, o chapinhar dos brinquedos que flutuam, as gargalhadas a ecoar maia alto que a música das aulas, um burburinho incessante que apenas sossega a cada mergulho quando a água nos devolve a um silêncio desfocado pela respiração tantas vezes sustida em esforço.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Regressar à escrita de Sainz Borgo sem ser para dar continuidade à saga de Adelaida Falcon foi uma barreira difícil de ultrapassar. Eu queria aquela mulher, fosse imigrada em Espanha, fosse de regresso à Venezuela que a ia comendo viva. E custou-me esta nova realidade. Houve até alguma luta com este cenário árido, mas rapidamente reencontrei a dureza e a brutidade das palavras a quem a autora arranca a pele. 

Um casal debicado pelas agruras de um país entregue à miséria e à peste, decidi partir em busca de um outro destino que não o da aflição e do desamparo. A vida já quase lhes retirou tudo, mas deu-lhes dois gêmeos que entre ânsias e pobreza, nasceram prematuros.

O adiantamento dos moços não lhes atrasou a fuga. Angústias Romero sabia que agora tinha ainda mais por que partir. Forte e destemida, embora crente de que "Deus nunca se decidiu a acompanhá-los" fez-se ao caminho com os dois amarrados às costas, enquanto tentavam acabar de cozinhar-se entre suor, poeira e o trapo que os amarrava à mãe. Amarrava mas não os segurou a vida. 

E se o deserto já era imenso e agigantou-se perante a morte dos gêmeos.

Mordida pela dor, temos uma mãe determinada a enterrar os seus filhos, já que chão será a única coisa que ainda lhe pode dar, mas temos um pai picado pela serpente do desânimo que ameaça ruir a cada passo. E desmontados cada um à sua maneira, estas duas almas penadas vão em busca de Visitación Salazar, um ser mítico cuja biografia parecia um pai-nosso, uma verdade sem explicações

E neste baile de almas penadas, neste chão que encerra o queixume dos mortos, a lei de Salazar faz frente à lei de homens violentos e corruptos, os verdadeiros donos de Las Tolvaneras, morada última de tantos que ficaram para trás, cujo destino seria uma sepultura de pó, vento e esquecimento. Mas aqui, neste cemitério, neste Terceiro País, a voz destas mulheres são a única árvore que dão sombra e irão mudar a vida de alguns que ainda serão capazes de se parir de novo. 

Porém, o morredouro que circunscreve esta fronteira às portas da efectiva fronteira é terreno para enredos que se cruzam entre o real e o sobrenatural, no entanto, o sofrimento é transversal a vivos e mortos ou não fosse com as palavras de Juan Rulfo em Pedro Páramo que Karina Sainz Borgo decide abrir este livro. Que fazem ainda mais sentido agora que já li ambos.


sábado, 29 de julho de 2023

"A história de Roma" de Joana Bértholo :: Opinião

A história de Roma ou como foi que o nosso amor aconteceu? Se é que aconteceu mesmo. E quando acontece, o amor é sentido igual? Bate de forma igual?

Aqui, claramente que não!

Chuana (ou Joana) recém-chegada à complexa geografia de uma Buenos Aires milongueira e perdida na arte de chuchurrear e compreender os meandros da confecção e degustação do mate, faz um desvio para conhecer um homem pela arqueologia do seu quarto, sem, no entanto, perceber muito bem o enigma com o qual anda de mãos dadas na rua, festas e outros eventos por onde socializam como casal. E mais uma vez, é na caracterização das personagens e na densidade que lhe dá que a escrita de Joana Bértholo ganha todo o fôlego e reencontro o que mais gostei em «Ecologia», a forma de descrever os outros que é logo em si mesma uma relação com o outro.

“Orgulhoso e casmurro: são várias as recordações da tua fúria a pontuar a mesa com o punho. Tens prazer em exaltar-te. Chamam-Te conflituoso, mas não possuis a rigidez das pessoas conflituosas, apenas uma atração genuína pelo confronto. Falas de qualquer desconhecido com fel e de qualquer camarada com mel. És tribal. Eu penso em termos de planeta e tu em termos de clã. (…) Casamento da Irene e do Tomazzo, um senhor sentado ao teu lado, pergunta tu que fazes. Sem pestanejar, respondes que és talhante. Isso parece surpreender e cativar as pessoas na mesa, que ficam mesmerizadas a ouvir-te discorrer acerca dos distintos ângulos de corte de carne, o desmanche de uma peça ou o Segredo de um bom hambúrguer. Passo a refeição esquinar graçolas por ser a companheira vegetariana do talhante. Vamos embora sem que desfaças o embuste.

No calor de uma discussão, tu a dizeres que a verdade não interessa, só importa sermos honestos.”

E é em busca da honestidade para consigo mesma que Joana repesca as memórias e iludida ou não por essas mesmas memórias discorre uma narrativa quase diarística sobre um amor de difíceis contornos e uma Roma que não chegou a existir. Uma quase cidade que foi calcorreada apenas pelas expectativas e reflexões, muitas delas sobre a maternidade ou melhor dizendo, a não-maternidade


“(…) Grávidos, todos.
Alguém filma. Alguém me filma, de pé, a conter o pânico. A câmara persegue-me, eu tento escapar mas esbarro em barrigas. (…) Incapaz de olhar e de ignorar. A ferir-me e a nutrir-me com aquela imagem. Quero acordar, mas não consigo.
(…) Ao centro do círculo aparece um caixão com a forma de um enorme corpo nu de mulher, que se divide em dois como num truque reles de mágico de circo. O interior do caixão-corpo é azul e aveludado. Está cheio de bebés.”

A estranheza de alguns episódios retira o leitor do périplo turístico e do novelo romântico e é com eles que a narrativa ganho o outro fôlego, navega em águas mais turvas, mas os momentos de reflexão social sobre o papel da mulher-não-mãe são muito interessantes, lúcidos e até acutilantes, embora as arestas não apontem de dedo em riste. São reflexões-nuvem, pairam e dão fronteira aos diálogos do casal.

Independentemente de gostarmos ou não do enredo, partilharmos ou não, viagens e reflexões, o melhor deste livro é mesmo a forma como a autora nos apela aos sentidos e como demonstra o quanto as relações nos apuram ou atordoam esses mesmos sentidos.

“Não tenho dúvida de que esta ênfase na alimentação é uma forma de me ancorar e de lidar com a ansiedade que aquele reencontro tinha gerado. Contra essa ameaça, eu saboreio, o que une e arreiga. Cada pinhão, cada talo crocante, cada pedaço de pão chato mergulhado em molho ou coberto de condimentos, me ajuda a ficar na imediatez dos sentidos e a não me deixar apanhar pelos desvarios da mente, da memória ou da expectativa do que irá acontecer a seguir.”

Entretanto, na imediatez da expectativa fica o leitor, tal e qual amor não correspondido perante a impossibilidade de fechar certas histórias, mas até nisso está bem feito, pois quando um casal discute, ambos têm razão, mas nenhum está certo 😉

“Não negoceio: A viagem será sempre a melhor das minhas más decisões.”

E existem muitas formas de viajar!

terça-feira, 18 de julho de 2023

"O homem do ciúme" de Jo Nesbo :: Opinião

 

“A taxa de homicídios na Grécia e baixa. Tão baixa que muita gente se pergunta, como tal é possível num país em crise, com grande taxa de desemprego, corrupção e agitação social. A resposta espirituosa é que, em vez de matarem alguém que odeiam., os Gregos permitem que a vítima continue a viver na Grécia. Outra é que não temos crime organizado porque não somos capazes de organização necessária. Mas é claro que temos sangue quente. Temos o crime passional. E eu sou aquele que é chamado quando há suspeita de o ciúme ser o motivo por trás de um homicídio. Dizem que consigo cheirar o ciúme.”

Não sabemos se o ciúme tem cheiro, mas sabemos que Nesbo mete o leitor de nariz bem empinado, olfatando por culpados em cada esquina e com a cauda num frémito como pás de uma ventoinha.

Para o leitor com faro menos apurado ou sem aspirações para roubar o lugar ao inspector, o ritmo pode ir buscá-lo à «Black Dog» dos Led Zepplin e enquanto dá ao pezinho e lê desenfreadamente, cruza os olhos quando os sons se misturam e já o karaoke vai em «Happier» de Ed Sheeran quando os graves roçam a tortura emocional, causada pelo ciúme… mas a verdade é que ela está mais feliz.

Ou parece!

E aqui há muita coisa que parece mas habilmente não é! Por isso, os Led Zepplin retomam o palco e o riff  (que parece) menos harmonioso imita o batimento descompassado do coração do leitor perante alguns finais. Um coração que não sabe se martela e insiste como a pedaleira dupla duma bateria que acusa o ciúme como mote para tudo ou se, tal guitarra se deixa dedilhar e gritar consoante o tom de cada história.

Jo Nesbo agarra o leitor desde o primeiro conto e a morte cola-se-lhe à pele, daí em diante, a luta é entre a ansiedade, para afastá-la, e a atração para ela, como solução para tudo, o que não deixa de ser rebuscado quando misturado com ciúme, actualidade e justiça.

“O homem do ciúme” é um sortido fino de contos, polvilhados com um toque de malvadez, especiarias maceradas no ponto certo, humor refinado, uma pitada de inocentes e uma mão cheia dos culpados do costume, tudo muito bem embrulhado em dilemas intemporais e um laçarote bem repenicado que aponta o dedo aos temas actuais. 


sexta-feira, 7 de julho de 2023

Opinião "Ainda bem que a minha mãe morreu" de Jennette McCurdy

 Faz muito tempo que não me sento "aqui" para escrever.

As leituras andam pelas ruas da amargura e as opiniões, ui, reconhecem-se ausências de anos, menos regulares que aquele café que juramos combinar com aquela colega da escola secundária com quem (por sorte ou azar!) nos cruzamos na estação dos comboios.

Mas hey....aqui vamos nós!

"Ainda bem que a minha mãe morreu" não foi o único livro que li nos últimos meses (e anos!) de ausência aqui. Ainda bem!

"Ainda bem que a minha mãe morreu" foi um dos que nunca, nem por sombras, me viria parar à mãos por escolha própria. Foi o meu filho que disse "quero ler!" e eu pensei "ahhhhh, isto é alguma dica?!". 

Parece que não, era mesmo só um adolescentes com um olho no Tiktok e nas suas tendências. Eu acabei por o comprar, sem nunca ter ouvido falar da Jennette McCurdy e por mais que a leitura da contracapa me tenha deixado a pensar "Wow!", entreguei-o ao suposto leitor e nunca mais olhei para o livro.

Mas a curiosidade levou a melhor de mim e as pessoas que me enviaram um clip de uma entrevista no programa da Drew Barrymore também (vejam aqui)

Devorei este "Ainda bem que a minha mãe morreu" como se de ficção se tratasse, a arrepiar-me com as ações e reações de uma mãe manipuladora e doente e de uma filha que não conheceu outra realidade e assim cresceu condicionada. 

Dizia o Buzz (sim sou velha!), é "FACTO OU FICÇÃO?".

O que nos é contado não é ficção, é a vida de alguém, por mais que a Jennette não fosse conhecida no meu universo de trintona que nunca viu o iCarly, é chocante os episódios que vamos lendo sobre o seu crescimento, a relação da mãe com ela e com a restante família (especialmente o pai!), o desprezo por um caminho que nunca desejou seguir, uma total aniquilação da sua pessoa e as consequências nefastas de todos os fios que a mãe puxou na marioneta superestrela Jennette.

Ainda não terminei mas senti-me inspirada para vir escrever qualquer coisa. Nem que seja porque preciso de ganhar novo fôlego para continuar a leitura após tropeçar em 3 momentos de tradução que despertaram o Pat em mim.

(nota: o Pat de Guia para um final feliz  The Silver Linings Playbook do Matthew Quick)

NOTA: a capa/título gera sempre comentários e virares de cabeça das pessoas à nossa volta. E vejam lá se no vosso universo, a leitura deste livro não é uma dica a alguém.

Se for, então deviam mesmo ler.

Boas leituras!

sexta-feira, 23 de junho de 2023

«O Quarto do bebé» de Anabela Mota Ribeiro - Opinião

Escatológico ou não, seja pela quantidade de vezes que relata os seus episódios fecais, seja pelas preocupações que a se abeirou sobre o fim do mundo e ideias de pós-fim de mundo, por motivos de doença e ambiente pandémico, o que e certo é que «O Quarto do bebé» de Anabela Mota Ribeiro é um registo diarístico peculiar, sem friso cronológico definido e que tanto disserta sobre a banalidade e a mesmice do dia-a-dia como tece comentários e preocupações de teor mais intelectual, deixando o leitor sem saber muito bem o que vai encontrar ao virar de cada página. Uma coisa é certa. O medo. 

"Escrever é fazer pão. É dar uma forma ao medo, torná-lo comestível, ser capa de o cuspir."

E em confinamento, pandemia, doença e incerteza, o medo foi companheiro de muitas horas, nas horas de todos nós. "A raiz deste medo é diferente da raiz do medo do que é incognoscível. Ainda que seja sempre medo. Um solo diferente que dá pedras semelhantes. Lá no fundo, na ramificação, talvez deem as mãos." Tal como as pedras, o medo assume diversas formas, sempre exigentes. Duras. Escrever foi uma forma de combater o medo. Escrever e limpar. Limpar e escrever. Reescrever. Limpar. Mas limpar o quê? O medo e o passado?

"É uma coisa mesmo minha: apagar qualquer vestígio e iluminar-me de espanto se, por acaso, encontrar no futuro uma coisa do meu passado. Isto foi mesmo connosco? Isto fomos mesmo nós? (...)
A descrição dos factos destes dias, um dia, vai constituir um dialeto do isolamento. Uma linguagem que só pertence a este contexto, que só nós, que vivemos o medo de morrer e o horror da desesperança, dominamos com proficiência."

Talvez esta possa ser uma resposta ou um roteiro de leitura. Um diário-prova dos factos. Uma limpeza do medo e do passado das que deixa rasto, embora limpo, arrumado, datado e acedido apenas pelo acto de ler. Contraditório. Como tudo no ser humano, especialmente quando o medo estica as ramificações a um futuro (ou passado) longínquo, como a solidão e a orfandade de ser só cinzas, corpo sem descendência, camada de pó que ninguém vá visitar. E oscila entre a não-maternidade própria, real e a orfandade nascida no abuso que foi a colonização, dando uma perspectiva que não se ouve muitas vezes.

“Quando passaram 40 anos sobre o 25 de Abril, dei-me conta de que o meu pai não estava quando comecei a andar e a falar. Tinha meses quando ele foi para a tropa. Essa era a condição de milhares de crianças. A compreensão dessa ausência, do trauma, da orfandade é uma coisa que só agora começa a ser escalpelizada nos estudos sobre o colonialismo. Escalpelizada é mesmo aquilo que quero dize. Abriu-se uma porta para a cabeça, fez-se um lenho, alguns começaram a entrar, muito começou a sair.”

São variadas e entrecortadas, as memórias entre passado e presente, porque o presente quando começa a ser escrito já é uma memória, diz-nos a certa parte, como também nos diz que luta e esbraceja, é borboleta. E de bater de asas hesitante, hesitamos muitas vezes em continuar, questionando o sentido do que lemos e entretanto a autora responde-nos: "Ainda não estamos nessa fase. Não procuramos capta um sentido. Procuramos sobreviver." E podemos extrapolar as suas palavras sobre a pandemia para o que sentimos com o seu livro, que nos vamos desviando de certas palavras que caem como pedras. Pancada seca, queda abrupta, umas conseguimos identificar de que falésia caem, outras não.

E chegamos ao fim acreditando que o sentido de tudo isto provêm de uma tristeza imensa que acompanha futuros que ficaram por cumprir, que morreram no cansaço e na doença. Uma tristeza imensa perante a dor e o medo da solidão. Simultaneamente há uma enorme capacidade e inteligência de pensar tudo isto de forma detalhada e cirúrgica, ficcionando um registo com arestas verídicas.

"A minha vida são esforços de emancipação, gestos de recusa, uma dor que me autoinfligia, a culpa de me ter insubordinado. E um desamparo absoluto. A certeza de estar sozinha. Não há uma clareira última para onde possa fugir, onde me sinta embalada. Pegada ao colo. O cancro deixou um imenso rasto. Eu não sabia que a extração do tumor eram mais simples. É única coisa simples."


sábado, 13 de maio de 2023

"O alegre canto da perdiz" de Paulina Chiziane - Opinião

 

“Um grito coletivo. Um refrão”

Eu acrescentaria, uma litania, uma ladainha que no seu tom poético pretende converter a dureza de temas tão vastos e intermináveis como o racismo, a colonização, a guerra, a violência e a violação; a liberdade versus a assimilação e a traição, o jugo da opressão, da guerra de raças e de sexos (e a da religião) - a escravatura - os conflitos interiores e a luta desmesurada pela sobrevivência, num misto complexo e contraditório de sofrimento e destruição, sem esquecer a que é autoinfligida. E ainda há lugar para narrar a Mulher, essa raiz mais profunda e extensa de África, o seu corpo, o seu papel, a sua sexualidade, toda a sua complexidade e sofrimento.

“Quantas forças uma mulher deve ter para carregar a tortura, a ansiedade e a esperança, quantas palavras terá a oração da eterna clemência a um deus desconhecido, cuja resposta jamais virá?”

Quantas forças um escritor deve ter para narrar as dores de uma terra que o viu nascer?

E quantas forças mais terá que ter sendo mulher que quis encontrar as palavras que são chuva fresca e têm “o poder das ondas mansas embalando as embarcações na valsa da brisa”.

Desengane-se o leitor, «O alegre canto da perdiz» nem sempre é alegre e nem sempre é fluído como uma valsa. O batuque por vezes impõe-se, caótico e na tensão de cada batida há uma subversão que quer romper a noite, rasgar quem derruba a esperança que às vezes já não vem com cada nascer de cada dia.

Por isso, as mulheres e os homens que aqui encontramos seguem de sorriso aberto e o peito fechado, muitas vezes “frustrados como abelhas embatendo nas vidraças frias de uma janela” porque “há parcelas do organismo que não se alimentam de arroz, nem de remédios ou palavras divinas” precisam de sonhos realizados e não de miragens. Ainda assim, o ingrediente que mais abunda é o da complexidade contraditória que habita todo o ser humano, balanças ao vento, aguardando a acalmia.

“Nas cidades humanas a liberdade é proibida. O ser humano tem que andar sempre vestido, documentado, calçado. Por andar sem rumo, a polícia prende por vadiagem, como se alguém conhecesse de facto o rumo de cada passo. Por que é que tem de se andar num rumo exacto se todos os lugares são lugares para andar?”

E caminhando até ao final do livro, lê-se nas entrelinhas a mensagem de esperança, acreditando numa humanidade capaz de se reinventar, já purgada de que ainda reste por denunciar e perdoar.


sexta-feira, 28 de abril de 2023

"Sangue Derramado" de Asa Larsson :: Opinião


Perante a morte da pastora protestante, Mildred, adentramos em Kiruna. Conhecemos o gene policial de Asa Larsson na personificação de várias personagens fortes. Mulheres fortes. Eu diria até, mulheres fortes protegidas por uma loba solitária e fugidia e é dessa forma que as árvores ganham mais vida, os ruídos espessura e o enredo um outro tom que eleva este policial nórdico. 

Foi uma bela estreia no universo de Asa Larsson! Tanto, que mesmo com o rabo sentado na areia e entrevalando as leituras com banhos de mar e sol, cheguei a sentir o frio e a escuridão daquelas terras nórdicas, silenciosas e misteriosas.

Embora tenha sido uma estreia, a história de Rebecca Martisson arrancou num livro anterior, mas as pistas estão todas nas entrelinhas e é como se existissem dois crimes por desvendar, não obstante, eu estar mais preocupada em saber da loba e querer saber que continuava intocável. Portanto, neste "Sangue Derramado" apanhamos uma Rebecca meio fugida, meio perdida, para quem as coisas ultimamente só lhe entram na cabeça à força. Depois os últimos acontecimentos, sente o seu mundo de pernas para o ar, mas observa com muita lucidez que todos à sua volta andam «com a fita métrica a postos nos bolsos». 

Sente-se observada, analisada e medida por tudo o que diz, mas essencialmente pelo que não faz ou não diz. Para além de estar rodeada de uma equipa onde todos lutam por protagonismo, estão todos à espera que se passe novamente da cabeça e resvale, dando sentido à opinião de alguns que acreditam que ela não é a melhor escolha para ir a Kiruna. Assim sendo, este «Sangue Derramado» pode muito bem ser o cenário ideal para isso, já que Kiruna é precisamente a terra que a viu nascer.

Como se isso não bastasse, o enredo envolve um crime na paróquia, uma mulher à frente desse posto de comando. Coisa rara! E ainda por cima uma feminista e defensora de que já é mais do que tempo de contrariar o sistema e fazer as coisas avançar. Mudar. E a mudança assusta muita gente. Pior, a mudança sugerida (ou imposta) por uma mulher. Aliada a outras mulheres.

Larsson não poupa a sociedade escandinava, a religião, as comunidades pequenas e tacanhas e os atentados ambientais mesmo naqueles que parecem ser paraísos de gelo, lugares sagrados, recônditos e intocáveis. Ou assim se esperava.

Larsson lança pedradas, umas atrás das outras, como que a avaliar a que distância está o fundo do poço. 

O que de lá se ouve? Ou reluz? 

A sua escrita e capacidade de saciar o leitor, fazendo-o querer avançar, capítulo a capítulo, enquanto ela vai afogando os seus personagens em mentiras, ódios, crimes e segredos. E claro, o amor! Servindo-se de diferentes tipos de amor, mas essencialmente um muito grande à Natureza e aos Animais. E arriscaria dizer: às pessoas, que na sua solidão, isolamento e bondade tantas vezes abusada, comentem crimes; a sua literatura não os exonera, mas tenta mostra que a linha é ténue e qualquer um pode cometê-los.

domingo, 23 de abril de 2023

«Atelier de Noite» de Ana Teresa Pereira – Opinião

“Não podemos pôr nada inteiro, mas no meio dos pedaços temos uma visão enovoada do que existia antes (…)”

Enovoada surge-nos uma mulher, Teresa, uma Agatha Christie que se reinventa, embora seja uma mulher cheia de pensamentos intermitentes e dúvidas. Ela foge, sem dizer muito bem do que foge. Talvez para um último amor, talvez para se reinventar e se amar a si mesma, uma última vez, por isso nos diz: “Há um tempo para as últimas coisas, o último relógio de pulso, a última gabardina, o último cão, o último amor. A última beleza intermitente. Por vezes é assim que penso naqueles onze dias. A última vez que fui bonita.”

Talvez um amor platónico. Sabemos que havia um homem; «nota-se na boca» diz-nos ela a determinada parte. Seria uma antiga paixão? Uma paixão sempre capaz de se reacender, como as boas histórias que «começam uma e outra vez, mesmo depois de já termos ido embora.”

Ficamos na dúvida, mas supomos que essa é claramente a intenção da autora, o seu traço característico, o de criar «alguém que pudesse habitar», reescrevendo-se como um poema cujos versos andam soltos e só se unem dançando. É preciso dançar, embalar e namoriscar a noite, pois «nada é seguro. Uma manhã podemos acordar num quarto de hotel, e não encontrarmos a nossa personagem». Há um medo em perder-se de si e não mais se encontrar ou encontrar-se sozinha, quebrada, já sem ninguém, já sem nada que a ponha inteira de novo.

«O Atelier de Noite» é um livro carregado de fragmentos e incertezas, mas que transparece uma preocupação: um medo enorme pela desordem do que pode ser o fim, quando se esgota o que a caracteriza e lhe dá sentido. As camadas.

É um romance que vive mais de forma do que enredo, é cheio de referências e fluxos de consciência, mais do que de uma história concreta, com princípio meio e fim, mas até nisso cruza bem com a personagem de Agatha Christie, que queria fugir desse registo, já que o policial, por norma, mesmo que enredado, negro e complexo, tem uma estrutura regrada, expectável e testada. Por isso, a ideia de Ana Teresa Pereira em cruzar um episódio verídico ainda sem uma explicação concreta (facto que eu desconhecia) com esta possibilidade também ela pouco nítida e que casa muito bem com o “desfecho”: o escritor escreve sempre a mesma história e de tanto escrevê-la haverá de acertar, quase como se isso corrigisse a vida 

domingo, 16 de abril de 2023

«No jardim do Ogre» de Leila Slimani :: Opinião


Eu não sei se Adèle é a nova Bovary, mas um certo tédio e desvario instalaram-se na vida desta mulher, que “em união” com uma patologia de distúrbio sexual, lhe condiciona os dias e as noites em busca de sexo. Ela está insaciável!

“Não mantém um livro de registo, não retém os nomes e, muito menos, as situações. Como poderia ela lembrar-se de tantas peles, de tantos cheiros? Como poderia guardar na memória o peso de cada corpo sobre o seu, a largura das ancas, o tamanho do sexo?”.

Posto desta forma, como Slimani o descreve, parece quase poético. Não o é! É bruto, é visceral, fragmenta e destrói esta mulher. Corrói-lhe corpo e alma. E o respeito por si mesma, torna-a numa «boneca no jardim do ogre». E com as bonecas, brinca-se. Até o marido brinca.

A paz pobre que cobre o tom de respeitabilidade do matrimónio com Richard, um médico reconhecido e socialmente bem inserido (fruto do casamento, de um filho e de uma mulher bonita) ajudam a que ela viva desenfreadamente os capítulos tóxicos de uma sexualidade de risco, onde o desejo não rima com luxúria ou prazer, mas antes com um êxtase que se chega ao abismo. Há até uma certa repugnância e angústia que acaba a espalhar-se a tudo.

“Não se tocam. Beijam-se pouco. Os seus corpos nada têm a dizer um ao outro. Nunca sentiram atracção, nem sequer ternura, um pelo outro e, de certa forma, essa ausência de cumplicidade carnal reconforta-os. Como se isso provasse que a sua união estava acima das contingências. Como se já tivessem feito o luto de algo de que os outros casais só se conseguirão desligar a contragosto, com gritos e lágrimas.”

Controla esses gritos e lágrimas, mas nem sempre Adèle controla o que lhe vai no pensamento: «apetece-lhe arranhar aquele rosto descontraído e meigo, esventrar aquele colchão reconfortante», no entanto, vai esventrando-se a si mesma num planeamento que a consume, mas que é inverso ao planeamento de Richard, dono de um colchão cada vez maior, mais alto, antecipando ao leitor a queda de proporções implacáveis.

“Não é dos homens que ela tem medo, mas sim da solidão. Já não ser alvo de olhares, ser desconhecida, anónima, um peão na multidão.”

Não obstante a audácia do enredo, julgo que a força está na forma sucinta e cirúrgica como Slimali usa a linguagem para demonstrar ao leitor a mulher-peão numa doença que a torna em pouco mais que um corpo anónimo, consumido, usado, abusado.

«Rua Katalin» de Magda Szabo :: Opinião

 

"Hoje tenho a noção da importância daquele momento; contudo, na altura, não cheguei a percebê-la. Muitas vezes só tardiamente nos apercebemos de como teria sido importante, enquanto é possível, prolongar e reter o tempo. Mas eu não tentei retê-lo. Estava com pressa. (...) Naquela altura, ainda sabia que se podia morrer bem antes da morte verdadeira. (...) Mas agora, isso já pouco importa; os sentimentos e as recções, tal como os factos, são irreversíveis, não se pode revivê-los nem mudá-los."

Em menos de três páginas, três pequenos excertos que podiam saltar do livro para a vida. Imitando-a. Salva-nos uma nuance: o livro, esse, podemos reler, mas mesmo assim não anulamos o que já conhecemos, o enredo, o desfecho. Podemos reinterpretar, saborear e usufruir o que não soubemos fazer à primeira, mas será impossível alterar a expectativa (e a pressa!) com que o atacamos na leitura inicial. E isso é uma metáfora da vida. É preciso saber dar a cada coisa o seu lugar e o seu tempo e não fazer comparações. Mas como fazer isso bem feito quando as expectativas vão elevadas?

A "culpa" foi da experiência arrebatadora provocada pela leitura de «A Porta» e a vontade de querer, às primeiras páginas, ficar assoberbada, inebriada e rendida e uma personagem que pudesse equilibrar a balança ao lado de Emerence. Mas os livros, como a vida, têm personagens irrepetíveis, ainda assim, todas têm o seu lugar e o seu efeito sobre nós. Basta deixarmos!

Em «Rua Katalin», Szabo mostra-nos o envelhecimento através do processo de rememoração da infância e de episódios que definem para sempre as vidas de Irén, Blanka, Balint e Henriette, crianças de três famílias diferentes que nos são apresentadas num quadro de personagens iniciais (que tanto determinam a experiência de leitura) e num curto capítulo introdutório que, à laia de aviso, nos diz: "Ninguém lhes havia explicado que o desaparecimento da juventude seria alarmante, não por lhes retirar, mas por lhes oferecer algo (...) a consciência da desintegração do Todo (...) o Todo harmonioso fragmentara-se."

E é na senda dessa fragmentação que o leitor vai compondo a cronologia possível que, julga ele, lhe permitirá compreender o que aconteceu naquelas vidas e o peso e os fantasmas que carregam, perante a crueldade de determinadas memórias, feridas sempre abertas e emoções demasiado confusas, para se expressarem na simplicidade das lágrimas.    

"Continuámos sentados em silêncio, como dois irmãos e, pela primeira vez na minha vida, presumi que os mortos não morrem, e quem já vivera neste mundo, seja sob que forma de existência, é indestrutível."

A inevitabilidade do curso da História e a dor que daí advém, muda-os e molda-os ao entrarem na idade adulta. Transforma-os em desconhecidos uns para os outros, mas também para si mesmos, porque «nas tragédias, quando os golpes são muito fortes, o espírito defende-se, concentrando-se num pormenor insignificante», tal como logo ao início o narrador nos avisa: «na realidade, os acontecimentos que constituíam as suas vidas só em poucas situações, nalguns momentos e episódios, foram importantes; o resto servia apenas para encher os poros da fragilidade da existência, tal como as aparas de madeira impedem que se quebre o conteúdo de uma caixa destinada a uma longa viagem». 

E nessa longa viagem, composta por aparas que enchem mais de trinta anos, conhecemos vários tipos de amor, de sacrifício, de opressão e de união familiar, mas também a inocência da amizade e dos amores de infância que geram memórias responsáveis por decisões que determinaram as vidas destas três famílias «como um barco que é levado pelo vento, Deus sabe para onde, agarrando-se um ao outro, (...), pois lembram-se das mesmas coisas (...) tinham visto o mesmo céu azul antes de a tempestade se ter desencadeado».

 *

Nota extra: Percebi o quanto tinha gostado deste livro ao reler a opinião sobre os efeitos da leitura de «A Porta». Está cá tudo, igualmente cheio de mestria e desconcerto para o leitor. E também por ter encontrado nas páginas finais, nas revelações impactantes de Irén, ecos de «A Herança de Eszter» e perceber, mais uma vez, quanto tempo os livros, como as memórias, vivem dentro de nós.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

«Um detalhe menor» de Adania Shibli - Opinião


«nas tragédias, quando os golpes são muito fortes, o espírito defende-se, concentrando-se num pormenor insignificante» (em «Rua Katalin» de Magda Szabo)
A frase não pertence a este enredo, mas podia. Encontrei-a numa leitura seguinte, mostrando-me que os livros, mesmo aqueles que não aprecio tanto, ficam a pairar e estabelecem traços entre eles, que os unem e explicam, dando-lhes mais sentido. Neste caso, perante esta frase compreendi o grito de revolta que se encerra nos pormenores insignificantes deste «Um detalhe menor», que são as repetições, as descrições e a monotonia (e alguns piscares de olho), quase como últimos redutos para um povo que se viu em escombros perante uma ocupação e uma expropriação que ainda hoje tem persiste, divide e oprime.

"(...) o que parece uma aranha começará a tecer os seus fios em meu redor, apertando-os de tal maneira que pouco a pouco se transformarão em algo semelhante a uma barreira, que nenhuma pessoa, sendo tão frágil, consegue trespassar. É a barreira do medo, cuja a origem é o medo da barreira do posto de controlo. (...) ou se disser abertamente que vivemos sob ocupação. (…) O que acontece diariamente num lugar onde prevalece o tumulto de ocupação e a matança permanente”

Por isso, enquanto um homem de patente cumpre os seus rituais de higiene, mas continua a apodrecer - detalhe nada menor - com um ritual monótono, como a paisagem dunar e a canícula longa e prolongada, uma mulher é vítima do crime hediondo da violação. Uma violação repetitiva e duradoura, onde toda um regimento se satisfaz. No entanto, esse parece um detalhe menor, não pela ausência descritiva, totalmente dispensável, mas por só lhe der dado destaque vinte cinco anos depois quando uma outra mulher tem conhecimento desse crime e decide percebê-lo melhor. Embora sem saber muito bem como ou porquê, metáfora para a guerra sangrenta que afunda um povo num «abismo de inquietação».

E chamar-lhe inquietação é pouco. A paz é uma miragem, mesmo para quem continua a empurrar o corpo e a querer com ele saltar e quebrar fronteiras, mesmo que por vezes o faça de forma irracional, fruto de um desassossego que atormenta quem vive uma liberdade furtiva e fragmentada. Metafórica.

"O único movimento agora é o da miragem, que faz as estradas e as colinas tremerem nervosamente, nelas aparecendo espectros que, quando uma pessoa os encara directamente, se desvanecem num piscar de olhos (...)"