«Duas mulheres em Praga»
é um reencontro com toda a estranheza, mas também toda a autenticidade que
povoam cada livro de Millás. É certo que nem sempre é fácil encontrar as
palavras que dão forma aquilo que se sente a cada leitura, pois talvez precise
de vivenciar o mundo mais com o lado esquerdo, especialmente em dias em que sou
atacada pelo lumbago. ;) Estranho? Não! É só o mundo Millás a tomar conta do
texto.
Estranhas são as
coincidências entre leituras e a forma como dialogam e se interceptam, neste
caso, entre este e o livro de Edith Wharton. É quase como se lhe respondesse ou
assim quis eu lê-lo quando aceitei este périplo por entre filhos órfãos, pais
adoptivos, mulheres que se completam e homens em dúvida acossados pela própria
genialidade. Ou a genialidade é das mulheres e eles simplesmente alimentam-se
delas?
“- Estou de baixa, por
depressão. Sou funcionária pública e decidi nunca mais voltar ao escritório,
nunca mais, mas para não voltar tenho de me deprimir mais ainda. O médico nota
quando se fica boa e, por isso, estive dois meses a fazer exercícios de depressão
para continuar de baixa. Mas dois meses sem falar com ninguém é demasiado. É de
enlouquecer. Então vi o anúncio das biografias, liguei para os Ateliers
Literários e marquei a entrevista.”
Garanto que o leitor em
nada vai deprimir, mas de vez em quando gargalhará como um louco perdido nesta
“geografia sem mapa”, ao que se deve acrescentar: aparentemente sem mapa, já
que a habilidade de Millás é precisamente essa, não só compõe o mapa como as
instruções para lê-lo e tudo em pouco mais de 170 páginas, descrevendo a
vontade de cada uma destas personagens em ter uma vida mais plena, mais
saldada, porém a vida teima em ficar a dever-lhes sempre alguma coisa.
- É como se fosse.
- Não te preocupes, eu também não sou órfão.
- Olha que é um alívio. A que te dedicas?
- Sou escritor – disse Álvaro, e inexplicavelmente saltaram-lhe as lágrimas como a Luz Acaso quando lhe disse que era viúva.
- Conheço outro escritor que também chora por tudo e por nada. Vocês são uns fracos.
- Não é que sejamos fracos – respondeu ele, reprimindo o pranto -, é que a vida deve-nos qualquer coisa que não nos dá.”
Esta realidade
constantemente em dívida, compõe um novelo a desfiar-se numa dimensão
paralela, sob a qual o leitor vai levitando inocentemente e incólume aos nós e
penitências de cada um deles. Uma penitência ensaiada ou um delírio acarinhado.
Calculista também. Ainda assim, o leitor compadece-se como se fossem assuntos sérios e
perturbações reais
Pensei, então, que cada um de nós tem dentro um «o que não», quer dizer, algo que não lhe aconteceu e que no entanto tem mais peso na sua vida do que «o que sim», o que lhe aconteceu.”
Diria até que a mestria de Millás é fazer com que as suas personagens se afastem sempre de si mesmas enquanto nunca se afastam um milímetro sequer dos seus dramas, criando conflitos e duplicidades maravilhosas, ficcionando muito bem a vida que nada tem de plana ou linear e basta ajustar o retrovisor para nos convencermos disso mesmo.
Ou como o próprio narrador nos diz, que um Ninguém se torna alguém porque o escrevemos com letra grande 😉 E que as mentiras, quando biografadas, tornam-se verdades, sempre carentes de mais um capítulo, porque a realidade nem sempre sabe escrever-se e precisa de mão habilidosa.
- O que é um livro Canhoto?
- Não sei. Um livro escrito com o lado que não se sabe escrever.
Álvaro sentiu que Luz Acaso acabava de verbalizar com uma simplicidade surpreendente, uma ideia sua (…)
Fui tomando consciência de que estava a ser vítima de uma ficção que o meu próprio desejo contribuíra para construir. Era tudo mentira, de acordo, mas as peças dessa quimera começavam a encaixar tão bem que precisava de me repetir continuamente, é mentira, é mentira, porque à medida que os minutos passavam, era cada vez mais verdade.”
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