A história de Roma ou como foi que o nosso amor aconteceu? Se é que aconteceu mesmo. E quando acontece, o amor é sentido igual? Bate de forma igual?
Aqui, claramente que não!
Chuana (ou Joana) recém-chegada à complexa geografia de
uma Buenos Aires milongueira e perdida na arte de chuchurrear e
compreender os meandros da confecção e degustação do mate, faz um desvio
para conhecer um homem pela arqueologia do seu quarto, sem, no entanto,
perceber muito bem o enigma com o qual anda de mãos dadas na rua, festas e outros
eventos por onde socializam como casal. E mais uma vez, é na caracterização das
personagens e na densidade que lhe dá que a escrita de Joana Bértholo ganha todo
o fôlego e reencontro o que mais gostei em «Ecologia», a forma de descrever os
outros que é logo em si mesma uma relação com o outro.
“Orgulhoso e casmurro: são várias as recordações da tua
fúria a pontuar a mesa com o punho. Tens prazer em exaltar-te. Chamam-Te
conflituoso, mas não possuis a rigidez das pessoas conflituosas, apenas uma
atração genuína pelo confronto. Falas de qualquer desconhecido com fel e de
qualquer camarada com mel. És tribal. Eu penso em termos de planeta e tu em
termos de clã. (…) Casamento da Irene e do Tomazzo, um senhor sentado ao teu
lado, pergunta tu que fazes. Sem pestanejar, respondes que és talhante. Isso
parece surpreender e cativar as pessoas na mesa, que ficam mesmerizadas a
ouvir-te discorrer acerca dos distintos ângulos de corte de carne, o desmanche
de uma peça ou o Segredo de um bom hambúrguer. Passo a refeição esquinar
graçolas por ser a companheira vegetariana do talhante. Vamos embora sem que
desfaças o embuste.
No calor de uma discussão, tu a dizeres que a verdade não
interessa, só importa sermos honestos.”
E é em busca da honestidade para consigo mesma que Joana repesca as memórias e iludida ou não por essas mesmas memórias discorre uma narrativa quase diarística sobre um amor de difíceis contornos e uma Roma que não chegou a existir. Uma quase cidade que foi calcorreada apenas pelas expectativas e reflexões, muitas delas sobre a maternidade ou melhor dizendo, a não-maternidade
“(…) Grávidos, todos.
Alguém filma. Alguém me filma, de pé, a conter o pânico. A câmara persegue-me, eu tento escapar mas esbarro em barrigas. (…) Incapaz de olhar e de ignorar. A ferir-me e a nutrir-me com aquela imagem. Quero acordar, mas não consigo.
(…) Ao centro do círculo aparece um caixão com a forma de um enorme corpo nu de mulher, que se divide em dois como num truque reles de mágico de circo. O interior do caixão-corpo é azul e aveludado. Está cheio de bebés.”
A estranheza de alguns episódios retira o leitor do périplo turístico e do novelo romântico e é com eles que a narrativa ganho o outro fôlego, navega em águas mais turvas, mas os momentos de reflexão social sobre o papel da mulher-não-mãe são muito interessantes, lúcidos e até acutilantes, embora as arestas não apontem de dedo em riste. São reflexões-nuvem, pairam e dão fronteira aos diálogos do casal.
Independentemente de gostarmos ou não do enredo, partilharmos ou não, viagens e reflexões, o melhor deste livro é mesmo a forma como a autora nos apela aos sentidos e como demonstra o quanto as relações nos apuram ou atordoam esses mesmos sentidos.
“Não tenho dúvida de que esta ênfase na alimentação é uma forma de me ancorar e de lidar com a ansiedade que aquele reencontro tinha gerado. Contra essa ameaça, eu saboreio, o que une e arreiga. Cada pinhão, cada talo crocante, cada pedaço de pão chato mergulhado em molho ou coberto de condimentos, me ajuda a ficar na imediatez dos sentidos e a não me deixar apanhar pelos desvarios da mente, da memória ou da expectativa do que irá acontecer a seguir.”
Entretanto, na imediatez da expectativa fica o leitor, tal e qual amor não correspondido perante a impossibilidade de fechar certas histórias, mas até nisso está bem feito, pois quando um casal discute, ambos têm razão, mas nenhum está certo 😉
“Não negoceio: A viagem será sempre a melhor das minhas más decisões.”
E existem muitas formas de viajar!
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