terça-feira, 21 de junho de 2022

«Cai a noite em Caracas» de Karina Sainz Borgo :: Opinião

 


“(…) continuo a pensar que às palavras há que arrancar-lhes a pele. Não há outra maneira para perceber de que são feitas.”

A frase pertence a Saramago, mas encontrei-a enquanto relia este fabuloso (mas um tanto assustador!) «Cai a noite em Caracas» e fez-me todo o sentido, pois é exactamente o que se passa com as palavras que Karina Sainz Borgo encontrou, ou escolheu cirurgicamente, para aprisionar o leitor, trespassá-lo com um dardo de medo, tal como Adelaida Falcon vive os seus dias à beira de cair nas mãos dos algozes.

Um relato de sobrevivência que cruza escuridão, medo e silêncio com a desumanização bruta que gera força, coragem e engenho tudo na mesma medida gritante de violência, desenraizamento e luto.

“«Lá» era um passado. Um lugar do qual pareciam ter saído na condição de nunca mais o mencionarem. Uma palavra que ardia como o coto de um braço amputado.”

Um romance feito furacão distópico que com a força bruta do tom profético, lança um alerta sobre o quão ténue é a linha que nos separa de um passado esgaçado pela guerra e do quanto a história se repete. E olhar para trás afunda e Adelaida larga tudo, tudo o que é mais seu, os seus mortos, mas também os vivos, a quem a sobrevivência morde com os dentes afiados da culpa. Uma culpa que luta por migalhas onde até os afectos são racionados.

“Os vivos lutam às dentadas pelas sobras.”

Num país triturador, munido de uma infantaria violenta e impune, colocando todos em perigo e numa espécie de antecâmara do além-túmulo, seres na iminência de apodrecer lutam sem sequer ter direito a gritar. Tiram-lhes tudo, até o direito a enterrar os seus mortos. A ocupação chegou até aos ossos e não o inocente já não se distingue do carrasco. Por isso, abatida, desenraizada e numa demolição em espiral, Adelaide Falcon, filha, enterra Adelaide Falcon, mãe. Não há renascimento possível, nem na fuga nem nas chamas, restar-lhe-á a vocação para as palavras para conseguir firmar memórias, numa biografia fragmentada entre identidades separadas por um Oceano coberto pelo cinzentismo da História que castiga meninas e mulheres, mulheres-rocha que cimentam o mundo.

“Mulheres infelizes que, às pancadas, (…) que rebentam as suas dores contra um almofariz (…) uma linhagem de fêmeas a quem o mundo só deu braços para alimentar a prole que manava da genitália, sempre estafada de tanto parir. Mulheres rochosas, com coração de pão duro e a pele curtida (…)
sem braços nem coxas tão fortes como os daquelas negras, essas catedrais de carne preta que cantavam de pé diante de uma chapa de ferro. Maneiras de chorar semelhantes aos incêndios do campo. (…)
Fechei os olhos e inspirei com força os restos de uma biografia feita à paulada. A vida foi aquilo que aconteceu. Aquilo que fizemos e que nos fizeram. O tabuleiro onde nos abriram ao meio como um pão prestes a crescer.”

Karina Sainz Borgo conseguiu espelhar uma realidade dura (e assustadora) e ainda assim homenagear as mulheres numa Venezuela triturada e dilacerada, mas também qualquer mulher, unindo-as por uma ancestralidade que é transversal a todas, sem esquecer o lado de denúncia que qualquer cenário de ditadura e guerra exige, para assim cumprir com a militância que o testemunho de qualquer exilada, refugiada e migrante traz consigo e com a sua luta.  


2 comentários :

redonda disse...

Adorei este livro pelas descrições e pela força da personagem. Quando terminou queria que continuasse, queria saber o que lhe ia acontecer depois.

Efeito Cris disse...

Vamos ter essa hipótese agora! ;)