«A Porta» é um relato enigmático, metafórico, desconcertante
e desconcertado, no quanto releva a inadequação das relações humanas quando falha
a comunicação. Podemos até dizer que a comunicação é mesmo uma porta, metáfora de fronteira, linha
ténue e frágil, cheia de sombras: a das classes, a do binómio urbano-rural e a do
fosso entre o que é braçal e intelectual, sem esquecer o tanto que não pode ser
dito com todas as palavras e que é político e militante. A critica apelida-a de
uma obra corajosa e confessional e nós leitores não somos capazes de ficar indiferentes
aos mundos de Magdusca e Emerence (e ao de Viola) que colidem contra diversas portas. A da violência e a da
sensibilidade (ou falta dela!) talvez sejam as que mais apoquentem o leitor, no
entanto, Szabó consegue redenção pelo brilhantismo com que escreve, empregando
a narrativa de inúmeras camadas.
“O que eu vira, Viola à mesa, talvez só aos meus olhos fosse
uma imagem idílica, e o festim de Emerence devia representar outra paixão
mitológica, pois, pensando melhor, não os via à mesa como um bravo cão
recompensado e a sua dona mas como dois convivas de um terrível banquete da
mitologia, e a carne engolida pelo animal não passava, acaso, de uma aparência
de assado, não era comida, mas invisíveis fibras e vísceras, uma espécie de
sacrifício humano, como se Emerence, com as suas lembranças e as suas boas
intenções, quisesse servir ao cão a pessoa que não tinha vindo à tarde (…)
beliscando o que havia de mais importante nas profundezas de Emerence, de que
ela nunca falava com ninguém.
(…). Voltara, enfim, à casa o silêncio, e, uma vez mais, nem
me dei conta de que este silêncio era tão falacioso como a calmaria antes da
tempestade, comprazia-me nele, quando as orelhas baixas de Viola e a sua atonia
deveriam ter-me feito compreender que alguma coisa estava para acontecer.”
É fácil compreender que este triângulo encerra parte do
enigma para toda a acção, porém, qualquer uma das mulheres é mais difícil de
entender que qualquer animal, embora dotadas da capacidade de fala, pouco fazem
uso dessa ferramenta. Emerence é secreta, desapegada (das pessoas) e noir. Tem episódios grotescos nos rasgos
de violência que profere ou tenta; e Magda não se torna menos grotesca e
chocante por “apenas” assistir. Também ela é enigmática nesse seu lado calado e
de consentimento, para o qual a intelectualidade não lhe confere nenhuma
vantagem. São duas mulheres sabedoras e vividas de realidades e cruezas
distintas e exercem, uma sobre a outra, uma toxicidade que oscila, mas alimenta
a amizade. Amizade essa que flui, aos repelões, como um cão que passeia à trela
nas mãos de um dono teimoso que não entende que o passeio é do cão e não o
deixa ir olfatar tudo o que precisa.
“Não me foi fácil admitir que (…) a sua existência
tornara-se uma das componentes da minha vida, e, no início, fiquei apavorada
com a ideia de a perder, se eu lhe sobrevivesse, o que aumentaria o meu exército
de sombras, cuja presença imanente e intangível me perturba e mergulha no
desespero. (…) por vezes, ela tratava-me de um moto tão rude que um estranho,
se assistisse, se espantaria por que razão eu tolerava isso. Tal não contava:
há muito que eu já não prestava atenção aos movimentos tectónicos que agitavam
a superfície de Emerence; ela deve ter descoberto o mesmo, e, por mais que não
quisesse arriscar o coração, (…), também ela não podia escapar à sua afeição
por mim.”
A insólita e dramática amizade que as mulheres mantêm terá repercussões
ao longo dos anos. São aprendizagens e partilhas, autênticas catarses, e
poderão ter efeito idêntico no leitor.
«A Porta» é um livro para se ler as entrelinhas, para se reflectir
no não dito, nos gestos que morrem à beira de uma mão que não se enlaça noutra.
É um relato que se espelha em nós e nos nossos, para se crescer e chorar, para
se espantar - espantando fantasmas - e revoltar-se com a inércia, mesmo sabendo
que não agir é em si uma acção, uma tomada de posição. É um relato para
despertar compaixão, fé e cumplicidade, para se saber que até a mais forte das
portas pode ser abalada e pisada, até mesmo quando as vontades são do Bem.
“- Há-de matar. Ainda há-de matar (…). Saiba que não se pode
prender aquele para quem chegou a hora, porque nada lhe pode oferecer no lugar
da vida. (…) O melhor presente que se pode dar a alguém é impedi-lo de sofrer.”
“(…) não analisara a fundo até que ponto a paixão é um
sentimento ilógico, mortal, imprevisível, e, contudo, conhecia a literatura
grega, que não representava mais do que as paixões, a morte, cujo o machado
cintilante é sustido pelas mãos enlaçadas do amor e da afeição.”
“Ora, ora! Viverá eternamente, isso não me preocupa. Agora, ao escrever estas linhas na máquina, sinto como se tivesse decidido pela segunda vez, e definitivamente, o seu destino, porque, nesse momento, lhe larguei a mão.”
«A Porta» é um livro cheio de contradições. Como a vida!
Quem o ler não lhe ficará indiferente.
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