quarta-feira, 6 de setembro de 2023

«O Relatório de Brodeck» de Philippe Claudel :: Opinião

«O Relatório de Brodeck» é um inventário da tristeza, da desumanização, da traição, do medo e da solidão, mas é também um inventário da beleza, da esperança, da luta e da crença na palavra. Palavra após palavra, pouco a pouco, o nada ganha conteúdo, dimensão, profundidade, memória. O Relatório é isso mesmo, um compêndio de pequenos nadas que compõem memórias fortíssimas (muitas vezes duras de serem lidas), recordações que não se podem perder, porque cada homem é uma soma de pequenos nadas que justificam tudo!

“Cada homem encontrava-se curvado sobre o seu próprio silêncio, mesmo havendo quase quarenta pessoas no albergue. Estávamos comprimidos como hastes de salgueiro num feixe, asfixiando, respirando o cheiro uns dos outros, os hálitos, os pés, a viscosidade ácida do suor, da, da roupa húmida, da lã velha e do algodão., sujos da poeira, da floresta, do estrume, da palha, do vinho e da cerveja, sobretudo do vinho. O que não significa que estivessem todos embriagados, não, seria demasiado fácil acusar a embriaguez. Apagar-se iam de uma penada as atrocidades. Demasiado simples. Mesmo, muito simples. Vou tentar não abreviar o que é muito difícil e complexo. Vou tentar. Não prometo que consiga.”

E não conseguiu abreviar porque lhe vieram à cabeça, à boca, às noites e à palavra, os pesadelos a que as atrocidades do campo de concentração o condenaram. Voltou tudo, envolto naqueles cheiros e sensações, naquelas ordens que o sentenciaram perante a urgência e a obrigação de relatar. Relatar para ilibar pela palavra. Pela mesma palavra com que falava para si mesmo, descrevendo a beleza, igualmente esmagadora e aprisionante, da aldeia e a Natureza envolvente e só por aí entram alguns raios de luz na narrativa, pois o O Relatório, esse, é pior que o Inverno da sua aldeia.

“No Inverno que, na nossa Terra, é longo como séculos espetados uns atrás dos outros, numa grande espada e durante o qual, à nossa volta, a imensidão do Vale, asfixiado pelas florestas, desenha uma extravagante. Porta de prisão.”

Nos dias seguintes ao Ereigniës (palavra em dialecto usada para descrever a noite do evento) nada mais será quente para além dos ânimos da população, as braseiras ateadas por boatos e as coxas de Boulla, que é talvez das poucas vezes que nos faz rir, embora todos os habitantes sejam peculiarmente descritos, como o velho Diodème que Brodeck achava digno das epopeias e desconfiava ter sido enviado pelos deuses, mas com que intuito?

Entre questões sem resposta e memórias que caem, Brodeck reaviva o medo, sempre o medo. O medo é personagem deste romance, juntamente com o mal.

“Sinto que não fui feito para esta vida. O que eu quero dizer é que a minha vida transborda por todos os lados, que não foi talhada para um homem como eu, que se enche de muitas coisas, muitos acontecimentos, muitas misérias, muitas falhas. Talvez a culpa seja minha? Talvez eu não seja capaz de me revelar um homem? De pegar ou largar, de seleccionar. Ou talvez a culpa seja deste século em que vivo, e que é uma espécie de grande funil no qual se vasa a sobra dos dias, tudo o que corta, esfola, esmaga e retalha. Recordo o meu medo, como se o medo, doravante, fosse uma peça do meu vestuário. Uma peça que, de resto, nunca consegui despir, muito pelo contrário, e que me comprime como se me encolhesse de semana em semana. O mais estranho é que, quando eu estava no campo de concentração, quando me chamava Cão, Brodeck, não tinha medo. No campo de concentração, o medo não existia. Eu estava para lá do medo. Porque o medo ainda pertence à vida.”

Brodeck fez parte dessa marcha de cadáveres, regressou de onde não se regressa e afirma várias vezes que a morte não é difícil, difícil é tentar sobreviver perante a constante ameaça de morte, a ideia, o foco, a concentração numa única sensação, a de morrer. E o ser humano não foi talhado para viver assim. Por isso o Inverno lhe era tão doloroso, memórias como mancheias de neve entre a roupa e a pela. Um frio cortante que queima.

O Relatório vai continuando e pouco é revelado sobre o seu verdadeiro alvo, o Outro, o Estrangeiro, O Estranho, O Forasteiro, ou seja, O Anderer, o homem que foi morto pela população cega de desconfiança, porque o desconhecido é uma ameaça, mas uma multidão é uma ameaça maior, especialmente quando confrontada com o boato, a desconfiança ou o que é puro. Como a pureza dos animais fortemente atacados e usados, embora Brodeck avance e recue na história e nos faça, ora detestar ora compreender cada uma daquelas pessoas.

O que é certo, é que a guerra devastou e os seus horrores não têm fronteira, não precisam de país ou idioma, os traumas têm extensões mais altas que as montanhas e efeitos mais desconhecidos que as entranhas da terra, sempre adensados pelo isolamento e a escuridão

“Releio as páginas já escritas da minha narrativa, apercebo-me de que sigo pelas palavras como um animal acossado, que corre veloz, aos ziguezagues, procura despistar os cães e os caçadores lançados em sua perseguição. Há de tudo nesta confusão. Ostento a minha vida. Escrever alivia-me o coração e o ventre.”

Já o leitor não segue nem sai de coração ou ventre mais aliviado, antes sim num novelo, mesmo quando Brodeck cruza as suas palavras com as de Nösel e nos diz, à laia de dúvida ou de esperança que «o homem é um animal que recomeça sempre», não obstante, afirma que o autor nunca respondeu sobre o que é que o homem recomeça e o acuse de ter esquecido o verdadeiro mundo por se ter dedicado aos livros. Mas também ele, Brodeck se dedicou aos livros, desde cedo pela mão do padre Peiper.

“Alguns devorarão, outros, esventraram-nos, violaram-nos, conspurcaram-nos. E o que é justo nem sempre triunfou sobre o que é sujo.

O que me obrigou, como milhares de outros homens, a carregar uma cruz que não escolhera, a sofrer um calvário que não fora feito para os meus ombros e que não me dizia respeito?

Quem decidiu, então, remexer a minha obscura existência, desenterrar a minha parca tranquilidade, o meu anonimato cinzento, para me lançar como uma bola tresloucada e minúscula para o meio de um imenso jogo? Deus? Mas então, se Ele existe, se Ele existe realmente, que se esconda. Que erga as mãos à cabeça e a curve. Talvez, como dantes nos ensinava Peiper, muitos homens não sejam dignos Dele, mas hoje também sei que Ele não é digno da maior parte dos homens, e que se a criatura pôde gerar o horror, foi unicamente porque o seu criador lhe forneceu a receita.”

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