Eu não sei se Adèle é a nova Bovary, mas um certo tédio e
desvario instalaram-se na vida desta mulher, que “em união” com uma patologia
de distúrbio sexual, lhe condiciona os dias e as noites em busca de sexo. Ela está
insaciável!
“Não mantém um livro de registo, não retém os nomes e, muito
menos, as situações. Como poderia ela lembrar-se de tantas peles, de tantos
cheiros? Como poderia guardar na memória o peso de cada corpo sobre o seu, a
largura das ancas, o tamanho do sexo?”.
Posto desta forma, como Slimani o descreve, parece quase
poético. Não o é! É bruto, é visceral, fragmenta e destrói esta mulher.
Corrói-lhe corpo e alma. E o respeito por si mesma, torna-a numa «boneca no
jardim do ogre». E com as bonecas, brinca-se. Até o marido brinca.
A paz pobre que cobre o tom de respeitabilidade do matrimónio
com Richard, um médico reconhecido e socialmente bem inserido (fruto do
casamento, de um filho e de uma mulher bonita) ajudam a que ela viva
desenfreadamente os capítulos tóxicos de uma sexualidade de risco, onde o
desejo não rima com luxúria ou prazer, mas antes com um êxtase que se chega ao
abismo. Há até uma certa repugnância e angústia que acaba a espalhar-se a tudo.
“Não se tocam. Beijam-se pouco. Os seus corpos nada têm a
dizer um ao outro. Nunca sentiram atracção, nem sequer ternura, um pelo outro
e, de certa forma, essa ausência de cumplicidade carnal reconforta-os. Como se
isso provasse que a sua união estava acima das contingências. Como se já
tivessem feito o luto de algo de que os outros casais só se conseguirão
desligar a contragosto, com gritos e lágrimas.”
Controla esses gritos e lágrimas, mas nem sempre Adèle
controla o que lhe vai no pensamento: «apetece-lhe arranhar aquele rosto
descontraído e meigo, esventrar aquele colchão reconfortante», no entanto, vai
esventrando-se a si mesma num planeamento que a consume, mas que é inverso ao
planeamento de Richard, dono de um colchão cada vez maior, mais alto,
antecipando ao leitor a queda de proporções implacáveis.
“Não é dos homens que ela tem medo, mas sim da solidão. Já
não ser alvo de olhares, ser desconhecida, anónima, um peão na multidão.”
Não obstante a audácia do enredo, julgo que a força está na
forma sucinta e cirúrgica como Slimali usa a linguagem para demonstrar ao
leitor a mulher-peão numa doença que a torna em pouco mais que um corpo anónimo,
consumido, usado, abusado.
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