Dono dessa ansiedade de ilhéu, um homem condenado e à
espera de ser “polvilhado de balas” faz uso de técnicas que remontam às 1001
noites, oscilando entre condenado, biografo e contador de estórias. Ou
encantador… Pois enquanto conta, encanta e narra a vida e um prodígio, o Língua.
Tal qual Xerazade vai atrasando o seu destino ou melhor dizendo, recriando
destinos enquanto cria uma utopia na falésia.
“Sei que o falesiano é um povo brando e habituado ao
desapego, pela nossa própria origem, porque este povo nasceu pendurado da vida
de alguém que estava por um fio, mas sei que temos a debilidade de um bicho
destroçado, sei que a porta da saudade nos deixa como cão que perdeu o dono.
Agora só nos resta o consolo.”
E o consolo era a palavra!
O tempo passa e ele não morre nem de balas, nem de fome. E
se mais não conseguir, consegue a proeza de converter os seus verdugos numa
turma de escuteiros à volta da fogueira, ansiosos pelo próximo capítulo. Pelas
rotinas.
E capítulo a capítulo, a mensagem espalhou-se e a aldeia
trepou a falésia para ouvir contar uma estória que em pouco tempo se
transformou na história de uma nova comunidade com qualidades mágicas: a de
saber ouvir, em silêncio.
“O silêncio, para quem escuta, é uma multidão sábia.”
Uma comunidade que se juntou apenas pelo prazer de escutar, tanto que até viravolteavam em silêncio para não atrapalhar a magia que testemunhavam na falésia, numa azáfama cativa à palavra do condenado que já não falava do frenesim da fuga, mas do dilema e do enigma que era o amor que desabrochava no peito do Língua. E quem vê o amor desabrochar, ama melhor, quem sente e vê a confiança, “entra no mundo, muito diferente de vir ao mundo.”
“(…) não era vontade, era coragem. De modo que todas as
perguntas foram dadas por respondidas e o mistério passou a fazer parte do
grande património das coisas que os escravos nunca disseram, nuca dizem, nunca
dirão.”
Mas “os anos têm olhos na nuca” e o biografo era um homem
com alguns anos a somar aos anos que foi perdurando na falésia e uma comunidade
não se faz sem memória e sem o relato das experiências que fazem uma história
colectiva. A história de um país, um continente, a humanidade.
Na falésia, “cultiva-se a prática da devoção ao outro”, o
que todos querem é que se queiram bem e se sintam bem, porque “o homem é de
onde se sente bem.”
“Nós não queremos fazer história, queremos ouvir história.”
E mesmo só a ouvir, é possível fazer história e pertencer à
história, porque quem ouve aprende e já faz história se não repetir o que me
gostou de ouvir.
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