«nas tragédias, quando os golpes são muito fortes, o espírito defende-se, concentrando-se num pormenor insignificante» (em «Rua Katalin» de Magda Szabo)
A frase não pertence a este enredo, mas podia. Encontrei-a numa leitura seguinte, mostrando-me que os livros, mesmo aqueles que não aprecio tanto, ficam a pairar e estabelecem traços entre eles, que os unem e explicam, dando-lhes mais sentido. Neste caso, perante esta frase compreendi o grito de revolta que se encerra nos pormenores insignificantes deste «Um detalhe menor», que são as repetições, as descrições e a monotonia (e alguns piscares de olho), quase como últimos redutos para um povo que se viu em escombros perante uma ocupação e uma expropriação que ainda hoje tem persiste, divide e oprime.
"(...) o que parece uma aranha começará a tecer os seus fios em meu redor, apertando-os de tal maneira que pouco a pouco se transformarão em algo semelhante a uma barreira, que nenhuma pessoa, sendo tão frágil, consegue trespassar. É a barreira do medo, cuja a origem é o medo da barreira do posto de controlo. (...) ou se disser abertamente que vivemos sob ocupação. (…) O que acontece diariamente num lugar onde prevalece o tumulto de ocupação e a matança permanente”
Por isso, enquanto um homem de patente cumpre os seus rituais de higiene, mas continua a apodrecer - detalhe nada menor - com um ritual monótono, como a paisagem dunar e a canícula longa e prolongada, uma mulher é vítima do crime hediondo da violação. Uma violação repetitiva e duradoura, onde toda um regimento se satisfaz. No entanto, esse parece um detalhe menor, não pela ausência descritiva, totalmente dispensável, mas por só lhe der dado destaque vinte cinco anos depois quando uma outra mulher tem conhecimento desse crime e decide percebê-lo melhor. Embora sem saber muito bem como ou porquê, metáfora para a guerra sangrenta que afunda um povo num «abismo de inquietação».
E chamar-lhe inquietação é pouco. A paz é uma miragem, mesmo para quem continua a empurrar o corpo e a querer com ele saltar e quebrar fronteiras, mesmo que por vezes o faça de forma irracional, fruto de um desassossego que atormenta quem vive uma liberdade furtiva e fragmentada. Metafórica.
"O único movimento agora é o da miragem, que faz as estradas e as colinas tremerem nervosamente, nelas aparecendo espectros que, quando uma pessoa os encara directamente, se desvanecem num piscar de olhos (...)"
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