“(…) não há nomes próprios mais próprios do que os das
pessoas dos seus livros.” Diz-nos Gabriel Garcia Marques nas breves notas
nostálgicas sobre Juan Rulfo e é com essa enaltação e o entusiasmo da leitura
que o leitor pode começar a embrenhar-se nesse clássico. É claro que é um
clássico e o nobel coloca Rulfo do panteão dos grandes. Um génio na forma e na
estrutura, nos diálogos, nas cenas, na composição de cenários com apenas uma
mancheia de palavras. Não lhe escapa nada. Nem os nomes dos personagens fogem da
sua genialidade. Antes pelo contrário.
Só há um senão em “Pedro Páramo”, as almas penam ou são
penadas?
“- Este mundo, que nos aperta por todos os lados, que vai
esvaziando punhados do nosso pó aqui e ali, desfazendo-nos em pedaços como se
orvalhasse a terra com o nosso sangue. Que fazemos nós? Porque nos apodreceu a
alma?” (pp105)
Avistamos Comala, ainda vivos, embora cambados como um
sapato velho, devido à longa viagem em “tempo da canícula, quando o ar de
Agosto sopra quente, envenenado pelo odor putrefacto.” A visão ao longe é
triste e cinzenta, puro calor sem ar e o Almocreve diz que em Comala ainda será
pior.
Com os diálogos e as descrições do que vê, o narrador
coloca-nos junto dele desde o início. E logo aí há um aviso, desceremos a um
lugar desolado, vazio, assombrado. Os mortos daquela terra, quando chegam ao
Inferno, voltam amiúde a procurar o calor a que estão habituados.
Tudo naquele local é feio, retorcido, fétido, pobre, duro.
Tudo contrasta com as memórias da mãe de Juan Preciado. O verde, os pastos, as
searas… tudo secou. Tudo morreu. Aparentemente como tudo o resto. O que não
pereceu, ensandeceu.
“A cama era de verga, coberta com mantas que cheiravam a
urina, como se nunca tivessem sido arejadas ao sol; e a almofada era um
enxergão cheio de cotão ou de uma lã tão dura ou tão suada que endurecera como
madeira.”
A sujidade, a traição, o medo, a violência, as dificuldades
e os abusos constantes por anos a fio, espremeram as gentes de Comala até ao
tutano. Juan não fugirá à sina dos daquela terra, enrijecerá de medo, mas não
resistirá. Entretanto o leitor, vai emudecendo e ficando sem fôlego, lendo
abruptamente as cenas que sucedem umas atrás das outras, cruzando épocas e
histórias, para se perder e logo a seguir se achar, ou achar que se achou entre
almas perdidas e histórias ainda mais de perdição.
(…)
- Lá fora, o tempo deve estar a mudar. A minha mãe dizia-me que mal começava a chover tudo se enchia de luzes e do cheiro verde dos rebentos. (…)
- Não sei, Juan Preciado. Há já tantos anos que não erguia a cara que me esqueci do céu. E ainda que o tivesse feito, que teria eu ganho? O céu está tão alto e os meus olhos tão sem olhar que vivia contente só por saber onde ficava a terra.”
A brilhar nesta Comala só a escrita de Rulfo, visível em
cada descrição dos seus personagens, embora na maioria seja irreparáveis, mas
arrebatadores. A mudança constante dos tempos em que acção decorre, entre
memórias dos que sofreram às mãos do cacique, desfiguram a imagem de Pedro
Páramo, um príncipe, um conquistador, um Maquievel senhorial, capaz de cometer
as crueldades de um só golpe, mas distribuindo ódio e violência por todos, um
por um, quase ninguém lhe escapou.
“Quisera adivinhar os seus pensamentos e ver a batalha
daquele coração para rejeitar as imagens que ele semeava dentro dela.”
Em batalha andamos nós leitores, descodificando como tudo
desmorona, até mesmo Pedro Páramo.
“Pedro Páramo, a personagem, é uma personagem de epopeia. O seu romance, aquele que tem o seu nome, é um mito que despoja a personagem do seu carácter épico” («Rulfo, o tempo do mito» por Carlos Fuentes)
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