terça-feira, 25 de janeiro de 2022

"A Ocupação" de Julián Fuks :: Opinião


"Todo o homem é a ruína de um homem (...) 
Não pensei se o homem era a ruína do homem quando cheguei para ver o meu pai. Não pensei em nada. Vi o seu corpo (...) Estava crescido o meu pai, como se o mal que sofria expandisse os seus contornos, como se o infortúnio aumentasse o espaço que ele ocupava no mundo

Um homem narra a ocupação que pode ser a doença e a gravidez. Um evento trágico em contraponto com um evento puro de alegria, ilógico e pleno de desconexão com todos os males que ocupam tantas outras existências, ocupações tóxicas, como a política que vai degradando tudo à sua volta ou como a própria vida que se esgota, à frente dos nossos olhos, adensando a impotência da qual somos feitos perante a doença e a morte. Perante a solidão que nos sobra.

Entrar em "A Ocupação" é quase como continuar em "A Resistência", mantendo vincada a temática do quanto o lado pessoal é político e o político afecta a esfera do íntimo. Um pouco também como «O avesso da pele» de Jeferson Tenório, livros que lemos seguidos como se as personagens pudessem - e estão! - no mesmo Brasil. Alguns familiares de Pedro podiam ter estado no hotel ocupado, Sebastián podia ter tomado parte em manifestações pelas mesmas causas que Pedro e ambos poderiam encontrar-se e discutir o quanto ter filhos é um acto de resistência. E assim, os livros dialogariam para além do que já dialogam na cabeça do leitor. 

"Sim, porque o mundo é feito de infinitos trânsitos, do movimento contínuo de seres. (...) uma infinidade de deslocamentos em sua génese. Toda a humanidade é feita desse movimento incessante, e só existe tal como a conhecemos graças a esses deslocamentos. (...) cada um de nós fez o seu caminho, mas que somos todos descendentes de um mesmo ancestral absoluto e longínquo. Esse raciocínio tem (...) algo de incestuoso, será sempre um amor entre irmãos (...) e toda a violência contra o outro é uma violência contra nós mesmos, fadada a destruir a um só tempo cada um se nós e a humanidade inteira."

"A Ocupação" narra a violência, a opressão, a política e as causas mais variadas, mas narra mais ainda a ocupação feita pela família, pelo outro. O que nos é querido e o que nos é estranho. 
Quanto da nossa ocupação mais íntima é herança do outro? E é aí, ainda mais, que os livros referidos se cruzam e a história de cada indivíduo se cruza com a de qualquer outro e talvez essa seja a ocupação maior a que Fuks se refere.

"Por mais de uma década fomos dois na mesma casa, apenas dois (...) uma intimidade maior do que aquela que cada um experimentava quando só, quando abandonado. (...) parecia impossível que não compuséssemos uma enciclopédia comum de ideias, um receituário de actos, um atlas de gestos, um dicionário de palavras particulares. Com essa bibliografia nunca impressa* (...) íamos nos ensinando a ser semelhantes (...)
E então quisemos ser três (...). Só de querer ser três já sentíamos a visita de um terceiro, um intruso entre nós, um estranho, um segredo."

*Ler este "A Ocupação" é também para o leitor a oportunidade de dar mais designações às palavras que já conhece, por exemplo:
- alegria: privilégio de distracção e desconexão 
- literatura: abertura para o diálogo
- escritor: alguém que soma fugas
- dúvida: partir a tranquilidade
- filho: ampliar o sentido da vida
ou
- ocupação: como chega fundo a raiz do desterro

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