quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

«A contraluz» de Rachel Cusk - Opinião


 

"Perde-se tanto, observou ele, no naufrágio. O que permanece são fragmentos e, se não nos segurarmos a eles, o mar também o leva."

Neste primeiro volume da trilogia de Faye, Cusk pode em certa parte narrar um naufrágio, ou vários. E o mar talvez seja metáfora para o tempo. Esse instrumento que dizem, na literatura e não só, curar tudo. 
Como mar ou como tempo, funcionam também algumas viagens, distâncias que nos mantêm em apneia face a alguns problemas ou pessoas, sentimentos e memórias. E Faye está em viagem à Grécia. Mas nessas viagens, quando nos cruzamos com outros parece existir uma necessidade de nos explicarmos, relatando contradições, como que se as viagens fossem uma busca por respostas. E não será por acaso que Beckett é referência tanto no início como no final do livro. Há aqui uma busca pelo sentido?

O que buscam estas pessoas, incluindo Faye, a narradora? Revelar-se por antidescrição, assumindo-se o contrário daquilo que os outros descrevem e contam das suas vidas? Vendo nas vidas que se resumem diante dos seus olhos, "polos opostos", conclusões daquilo que a sua não é?

"É como passarmos por uma casa onde vivemos em tempos: o facto de ela ainda existir, tão concreta, faz com que tudo o que aconteceu desde então pareça de alguma forma forma insubstancial (...)
É como se não se conseguisse inteiramente recordar do que o conduzira em primeiro lugar até às palavras (...). 
(...) apercebo-me que não faz sentido nenhum tentar regressar a esse lugar (...) a vida leva-nos numa direcção e nós afastamo-nos noutra, como se estivéssemos a discordar do nosso próprio destino (...)"

Dentro destas reflexões surgem, nas entrelinhas, comentários ou sugestões sobre como escrever determinados episódios, dando-lhes o enfase e a perspectiva necessárias para que ganhem mais personalidade, ou não fosse a narradora, uma escritora a braços com um curso de escrita, motivo pelo qual está na Grécia, onde uma das aulas se assume como o capítulo mais desafiante e viciante para o leitor que quase se sente transportado para dentro daquela aula, querendo participar. 

Nos vários encontros que tem, seja com o vizinho de voo, velhos amigos e outros escritores ou alunos, vão existindo diversas considerações, onde a realidade se mistura com a ficção, analisando vidas que se cruzam com os livros, numa constante interpretação e resignificação dos acontecimentos. E se cruzarmos fragmentos desses discursos dispersos talvez possamos evitar o naufrágio.

"No meu romance, a personagem encontra-se dividida (...). Tudo o que ela deseja para a sua vida é ser integrada, ser uma coisa só, e não uma sucessão infinita de oposições que a baralham (...)
(...) Não há ninguém com quem ela possa falar, ninguém a quem possa contar (...) retoma ele, (...). O livro é claramente sobre ela própria, afirma. (...) Os escritores precisam de se ocultar (...) do mesmo modo que as carraças precisam se ocultar no pelo de um animal: quanto mais profundamente se enfiarem, melhor."

"Ela até conseguiu infetar o romance, embora talvez o romance nos esteja agora a infetar em retaliação, e por isso esperamos das nossas vidas o mesmo que nos habituamos a esperar dos nossos livros: mas essa noção de vida como uma progressão é algo pelo qual já não tenho desejo."

Será isso ou apenas "a capacidade humana para a autoilusão"?


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