«NADA» de Carmen Laforet narra o despertar de Andrea numa Barcelona enegrecida e depauperada pelos anos do regime franquista que se entranhou desmedidamente na parte da família que a recebe e que é suposto educá-la.
"Sem pensar duas vezes, lancei-me na escuridão das ruelas que a rodeiam. Nada podia acalmar e maravilhar a minha imaginação como aquela cidade gótica. Naufragando entre húmidas casas construídas sem estilo no meio das suas veneráveis cantarias, mas às quais os anos tinham dado uma pátina de um encanto especial, como se tivessem sido contagiadas pela beleza. (...) O frio mais intenso, engavetado entre as ruas sinuosas (...). Havia uma solidão impressionante como se todos os habitantes da cidade tivessem morrido."
Entramos neste belo e terrível romance, como o caracterizou Mário Vargas Llosa, e somos desde cedo confrontados com uma assumida tristeza que quebra a energia inicial com que Andrea chega e percorre uma Barcelona nocturna e húmida, mas que ainda assim a conquista e liberta, uma liberdade que demorará até voltar, já que o desalento com o cenário familiar bizarro, que a recebe é composto por pessoas em ruínas, destruturadas e tóxicas que nos recordam os ambientes confusos, violentos e de terror dos enredos de Shirley Jackson ou os mais melancólicos e pesarosos de Carson McCullers.
A decrépita casa da Rua de Aribau é tal como a tia Angústias, “um bocado vivo do passado que estorva a marcha das coisas.” e “Os dias sem importância (…) pesavam como uma quadrada pedra cinzenta no cérebro.” de Andrea, que se entregou à inércia dos dias inúteis. E são precisamente nas descrições dos dias inúteis e povoados de Nadas que Laforet domina as emoções dos leitor e nos cerca com esse ambiente. A atribuição de cheiros à nostalgia e à solidão ou até à humilhação conseguem uma dimensão ainda maior para a dor e o abandono, que desafiam a "sombra gelada da tarde (…) uma tarde de luz muito triste.", como muitas tardes em que Andrea vagueia, salvando-a apenas um reduto de Natureza e a amizade com Pons e Eva.
Já os tios são personagens em constante devaneio, seres soezes, ordinários e agressivos, que encontram na violência e na humilhação, uma forma de expiarem dos demónios que os corroem, ainda assim são dignos de uma incompreensível estima e até carinho que gera uma repulsa, extensível à tia Angústias no que toca à capacidade de ferir os sentimentos alheios. Até a avó, essa última folha* de uma árvore já extinta, cujo os ecos ainda ressoam e vibram nos sentimentos de todos, sobretudo em Glória.
*”(…) tive a sensação de estar perante uma daquelas últimas folhas de Outono, mortas na árvore, antes de serem arrancadas pelo vento.”
Arrancados, desenraizados e desbragados são tanto os personagens como as discussões bafientas que alimentam esta estranha relação familiar, que vive de argumentos já gastos: “(…) como pássaros envelhecidos e escuros, com os peitos palpitantes por terem voado muito num pedaço de céu muito pequeno.”
Um pedaço de céu muito pequeno é a casa, também ela personagem. Acozinha, a sala, as escadas ou até o quarto-orelha, todo "funciona" como um conjunto desconexo e grotesco em que tantos os rostos vazios habitam a casa, como a própria casa os habita a eles e os ocupa com a revolta e o esforço que sobrou de um passado recente e marcante. A casa, a rua e a própria cidade, outrora como eles, seres dignos de destaque, sobrou em escombros e sombras, sendo metáfora para a critica social que se lê nas entrelinhas.
Contracenam com a desolação dos trastes inúteis, acabrunhados sob uma carga de desvario, uma amizade propícia a novos despertares dessa mulher-menina que é Andrea ainda que mergulhada em ilusões e sonhos do campo e que reverdece a cada reencontro com pedaços soltos de natureza naquele poço gótico que era Barcelona.
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