“«Somos livros gastos, sem capa, do lado de fora ninguém vê do que tratamos», diz a Hanna, e rimo-nos da nossa noção de insignificância.”
“«Um dia quero viajar para mim mesma», digo baixinho e carrego no pionés para dentro da carne macia do umbigo. Mordo o lábio a fim de não fazer barulho, um fio de sangue sai em direcção ao elástico das cuecas, penetra no tecido. Não ouso retirar o pionés, com medo de o sangue esguichar para todos os lados e em casa ficarem a saber que não quero ir ter com Deus mas comigo mesma.”
A atmosfera que a escrita de Rijneveld cria é imediata, capturando
o leitor para a imaginação prodigiosa e telúrica de Cas, mas também para o evento
tenebroso e infindável que é a morte e o luto por um irmão e a forma tentacular
como isso vai sugando a vida desta família: “(…) só conhecíamos a faina da
terra e não a que existe em nós.”
“Olhei para as minhas mãos, para as suas linhas irregulares. Ainda eram demasiado pequenas para as usar sem ser para agarrar. Agora ainda cabiam nas mãos do pai e da mãe, mas as do pai e da mãe não cabiam nas minhas, era essa a diferença entre eles e eu: podiam pô-las à volta do pescoço de um coelho ou agarrar num queijo acabado de virar no banho de salmoura. As mãos deles eram ávidas, mas, se já não conseguissem segurar carinhosamente uma pessoa ou um animal, mais valia largarem-nos e focarem-se noutras coisas.”
Mas o desassossego do luto é tal: "(…) de momento, os buracos
de gelo situam-se sobretudo nas nossas cabeças.” que o foco familiar se desvia
para as vacas e o revolver da terra, enquanto Cas e os irmãos, Hanna e Obbe, se
tentam amanhar: "(…) os Reis Magos voltaram a montar os camelos sozinhos, apesar
de a sela já ter desaparecido há muito, cavalgamos sobre o pelo áspero e temos
o rabo esfolado do terreno acidentado.”
Acidentada talvez seja a palavra de ordem para
descrever o dia-a-dia destas crianças que vão desabrochando, entre metáforas da
vida agrícola e o descortinar dos salmos, tudo narrado habilmente por Cas
enquanto tenta compreender como aumentar o prazo de validade da sua família,
surpreendo o leitor com as comparações de que é capaz nos seus (ainda)
ternos doze anos, referindo-se ao mutismo da mãe, que fica com os lábios
cerrados como duas lesmas quando acasalam ou o pai, que cego de raiva tem os
olhos pretos e contraídos como caganitas duras de coelho. Ou ela mesma, Cas,
que se sente como uma lista de compras usada e amarrotada, à espera que lhe
voltem a tocar e alisar.
“Tal como no Velho Testamento, também eles repetem infinitamente as mesmas palavras, o mesmo comportamento, os mesmos padrões e rituais. Mesmo quando nós, seus seguidores, nos afastamos cada vez mais deles.”
São muitas as questões que esta narrativa levanta, mas acima
de tudo questiona a fé no abstracto, quando o que é palpável e próximo se
afunda mesmo diante dos olhos. Questiona o peso da morte e da culpa, do quão
frágeis e vulneráveis são os que “sobram” a essa morte e que ficaram com as
recordações e o dever de honrar. Mas “sobra” também o direito a um futuro,
ainda por construir e para o qual precisam de amparo. Questiona-se tanto ou
mais o corpo e a sua necessidade de proximidade, afecto e respeito; ou o
direito a chorar, a lembrar e a falar do que se sente.
“Na perda encontramo-nos e somos quem somos: seres vulneráveis como filhotes de estorninhos nus, que caem do ninho e esperam ser apanhados. Choro pelas vacas, choro pelos Reis Magos, por pena, e depois choro por mim, ridícula, vestida com um casaco de angústia, mas depressa volto a limpar as lágrimas. (…) Se as lágrimas tivessem cheiro, ninguém mais choraria às escondidas.”
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