sábado, 16 de outubro de 2021

«A Casa» de Emma Becker :: Opinião


“Falo de um mundo onde as prostitutas podiam escolher ser princesas, elfos, fadas, sereias, meninas ou mulheres fatais. Falo de uma casa que ganhava as dimensões de um palácio, a doçura de um porto de abrigo. Agora, o resto do mundo é, para estas raparigas, um matadouro.”
“Dois anos imersa num mundo onde elas se farejam da cabeça aos pés, e continuo a corar quando uma rapariga me beija o rosto.
(…) E, contudo, quando estava mergulhada entre as pernas dela a lambê-la, com um apetite pouco fingido, pensava naquela carícia banal na perna e imaginava o que poderia levá-la ao orgasmo e se ela tivesse sabido como o fazer comigo, que sítios tocar, que linguagem inventar para insuflar de novo esse arrepio de vida na carne."

Emma Becker, vinte cinco anos, recentemente chegada a Berlim, é a francesinha de serviço num bordel aconchegante que protege as suas mulheres e que elas carinhosamente apelidam de A Casa. Becker é autora e narradora desta experiência na primeira pessoa, já que por curiosidade e gosto por sexo, decidiu prostituir-se na Alemanha a fim de expor este mundo pela perspectiva mais pessoal de cada uma das suas companheiras. Desse trabalho sob disfarce resultou um livro, quase como um herbário: uma forma de as alfinetar como borboletas para mais tarde as contemplar. Um livro que é uma declaração de amor às mulheres, aos seus corpos e às suas vontades e a tudo o que a experiência lhe permitiu aprender.

“Antes de mais, há os saltos: ninguém conseguiria andar naquilo, eu certamente não. Contudo, parecem uma extensão tão natural da sua perna como um pé descalço. E aquele barulho, aquele estalido langoroso, ao longo dos dez passos, para lá e para cá, que lhe delimitam o território... ouvindo-os, sabemos que aquele ritmo sábio não pode ser produzido por uma rapariguinha cambaleante, ameaçando torcer os calcanhares - por detrás daquele som há sem dúvida uma mulher agressivamente sedutora, cheia de si própria.”

Percebemos desde cedo a fascinação de Emma pela Casa, seja por comparação à prostituição de rua, seja por outras casas, mas sempre mais pelas mulheres que lhe dão corpo e os objectos que compõem os quartos, tal cenário de uma peça, previamente encenada. Tudo terá um certo valor sentimental, embora o que mais interesse sejam os episódios que penetram nesses cenários.

“Penso sempre: eis mulheres que são verdadeiramente mulheres, que mais não são, de facto, do que isso. Eis seres eminentemente sexuados, passíveis de serem definidos sem qualquer problema. Se houvesse nelas o que quer que fosse de ligeiramente ambíguo, tal duplicidade ficaria imersa no excesso de ornamentos e feromonas com que saturavam aquele canto (…).”

“A junção destes dois aromas perenes tem algo de infantil e obsceno, como se farejássemos a roupa de um bando de colegiais, escondidas na casa de banho para fumar… e, nos espaços que elas enchem de gritos, pulverizou-se uma essência um pouco ordinária, entre o detergente e o desodorizante barato, queimaram-se cinco incensos diferentes numa tentativa infrutífera de dissimular o fumo, as axilas húmidas e os dedos pegajosos de homens que estão sempre de passagem; é uma nota um pouco acre, quase indiscernível.”

O sentimentalismo é posto de lado, tudo assume um tom prático, mas o êxtase vem da forma como é descrito, sempre bastante visual, sensorial e até luxuriante. No entanto, o enredo fica um pouco a dever ao ritmo, pois para além de alguns episódios que oscilam entre recordações de amores antigos e situações com clientes no bordel, o que o leitor mais experimenta são manifestos de afirmação, usando o tom explícito a favor daquilo que defende: o valor das escolhas a que cada uma tem direito e a exaltação (e compreensão) pelo desejo que se alimenta em corpos que não as alugam à hora. Ou seja, há desejo para além da prática daquela actividade profissional.

“Aquele que não fode. Aquele que vem apenas beijar religiosamente aquela coorte de vaginas morenas, loiras, ruivas, rapadas ou hirsutas, que enche o seu herbário de mil clítoris com desenhos sofisticados de catedrais, cheiros de vaginas e de rabos, e do qual nem suspeita que se alivia nas casas de banho com uma dança febril de punho.”

Um arrepio sente o leitor em alguns capítulos, que mesmo retirados do contexto, funcionam muito bem como pequenos contos, brindam à lassidão, às mulheres e à diferença, mas também contêm análise sociológica à profissão, aos clientes e aos motivos que sustentam uma das profissões mais antigas, nunca escondendo uma indolência, um tom de humor e o respeito pelo tema; o fio condutor é a qualidade literária de um enredo que pretende humanizar a prostituição e fazer pensar sobre grandes questões, a da motivação de ambos os lados.

“Será que alguma vez se para de verdade? Que acontece a esta sensação na boca do estômago, quando ouvimos alguém pronunciar, seja por que razão for, a palavra puta? Deixamos de ser capazes de discutir objetivamente sobre prostituição… e, de resto, trata-se de uma discussão a evitar, se não nos queremos trair graças a uma veemência irreprimível.”

“O verdadeiro problema é o tempo. Que se pode, contra o tempo? Talvez face a esse inimigo supremo, invisível, invencível, os homens saquem da arma do bordel como um pecado menor, mais desculpável, do que uma história de amor paralela, mais desprezível também, porventura. O bordel é a parte da humildade inexorável da sociedade… o homem e a mulher reduzidos à sua mais estrita verdade… a da carne, que saboreia, sente e estremece.”

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