terça-feira, 4 de junho de 2024

«Cem anos de perdão» de João Tordo :: Opinião

Se «Águas Passadas» não movem moinhos, ladrão que rouba ladrão tem «Cem anos de perdão». E estivessem certos os provérbios, o ritmo dos thrillers de João Tordo teriam por certo outro tom e embora este «Cem anos de Perdão» ainda comece com algum humor, rapidamente o cenário do crime anula qualquer risada que pudéssemos dar com um dupla de polícias trôpegos, no meio de uma ilha remota algures ao largo de Inglaterra. Aliás, Cícero está preso e o cenário na prisão está pejado de predadores e Pilar sobrevive na fria Helsínquia, rodeada de homens feios e pesadelos que adensam os seus traumas.

"(...) os pesadelos persistiam. O clarão. A memória dos dias no hospital. Os ossos do rosto desfeitos, os dentes perdidos. A recuperação lenta, morosa. Alguém lhe dissera que uma pessoa precisava de oito anos para resolver um trauma, se fosse assumido e tratado. Quanto tempo demoraria daquela maneira - oitenta anos?
(...)
O desejo, o sexo, o jogo do gato e do rato, a adrenalina que, temporariamente, lhe mitigava a ansiedade. O regresso, uma e outra vez, ao mesmo ritual perverso. Quando desligou, lembrou-se das <<características», repetidamente lidas nas reuniões: Temendo o abandono e a solidão, ficamos e regressa- mos a relações dolorosas e destrutivas, escondendo a nossa dependência de nós e dos outros, cada vez mais isolados e alienados dos amigos, das pessoas que amamos, de nós próprios, de Deus."


Os traumas estão lá, o grupo de apoio já não. Pilar isolou-se e Cícero está longe. Deus pode estar no meio deles, mas ela ainda não sabe, mesmo que os sonhos já lho digam: "Abre os olhos, disse Pilar a si própria. (...) Abre os olhos, abre-os, e então os olhos abriram-se com a violência de uma rolha arrancada a uma garrafa, e ela viu-o."

Não Deus! Mas um dos irmãos Loar ainda sem saber quem eles eram. Então aí, quem já não tem sossego é o leitor para ver como João Tordo enovela um informador engaiolado e as congeminações das tribos dentro da prisão, os Filhos de Dismas e a fuga de Pilar em direcção ao centro do furacão. E claro, novamente personagens em busca do sentido da vida, a luta pela justiça a braços com a emotividade, onde a razão e a lógica não explicam tudo.

"A superstição, na sua raiz, é um medo excessivo dos deuses. O receio de uma profecia. Em latim, superstitio é algo que sobrou, que ficou de fora. Fora de quê? Da limitadíssima capacidade humana de compreender; como se os deuses tives- sem deixado, aqui e ali, zonas de sombra que atemorizam o humano, propositadamente zombando da nossa finita razão."

É muito interessante a questão religiosa aqui exposta e a forma subtil como a pesquisa surge como parte do enredo, fazendo ligação aos livros que Cícero já mencionara no primeiro livro e aos pecados humanos que são preocupações transversais aos personagens criados pelo autor.

"Sabes qual é a prova de que estamos numa terra santa, Noah? Toda a gente tem medo dela."

Noah é um elemento chave neste enredo, um pouco como o Capitão Garcia. Homens que Pilar deixa entrar no seu círculo. Desafiam-na, admiram-na, temem por ela, mas ainda assim ela insurge-se e resvala ainda mais para o perigo. Há sempre uma dependência que é explorada na perspectiva das relações tóxicas e é isso que dá outra densidade à ex-subcomissária e á sua forma enviesada de terapia.

Seja nesses detalhes sobre os personagens, seja nos temas que compõem os enredos, ambos os livros dialogam muito bem entre si, conseguindo sempre a proeza de ainda dialogar com livros e filmes e por vezes até aspectos que encaixam nas vidas dos leitores, por isso, que o lançamento do próximo tenha os dias contados 😉

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