É que as vozes mudam e o leitor tem alguma dificuldade em perceber quem é quem, embora se perceba que o peso do outro e de outras fases da vida sejam tão ou mais importantes que o presente, em que um homem, o professor de grego, está a cegar e uma mulher, a aluna, encerrada no seu mutismo, não toma a palavra.
Nesse aspecto, a narrativa está bem conseguida,
ela não fala e quer sumir-se para dentro de si e da escuridão das suas roupas
negras, então a narração é assumida por um narrador que tudo sabe. Que fala por
ela.
“A única pessoa que sabia que a sua vida estava
violentamente dividida em duas era ela própria. As palavras que anotava na
parte de trás do diário contorciam-se por vontade própria, formando frases
estranhas. De vez em quando essas palavras metiam-se no sono como espetos…”
No caso do professor, ele quer falar, precisa falar, então é-lhe dada voz enquanto recorda a fuga para Alemanha e o regresso à Coreia do Sul, um pai, uma mulher…
enquanto recorda o amor (e a falta dele), cujas imagens lhe fogem e se desfocam. Ele precisa das palavras, elas recompõem imagens. Uma realidade que se esfuma quando abre os olhos. Repete essas palavras, gravando-as num horizonte que se fecha mais cedo a cada dia. Aqui a metáfora do negativo é brilhante. Ou a das primeiras horas da manhã.“Já experimentaste caminhar ao lusco-fusco da manhã?Aquelas horas da manhã em que nos movemos através do ar frio, um pé à frente do outro, com uma sensação real de como o corpo humano é quente e macio. As horas da manhã em que uma luz azulada se infiltra nos corpos de todas as coisas materiais, penetrando nos nossos olhos arrancados ao sono, são milagrosas.”
Como é brilhante a análise que ela
faz, desde muito cedo quando o conhece. Observa-o pela lente de quem sofre e reconhece
beleza nesse sofrimento:
“A mulher olha intensamente para a cicatriz pálida que
descreve uma ligeira curva desde o canto da pálpebra esquerda até à comissura
da boca. Quando a viu na primeira aula, pensou que era uma marca deixada por
lágrimas antigas.”
«Lições de grego» é um romance de sensações e reconheço a mestria com que a autora nos leva até algumas delas, mas mesmo assim não me conseguiu cativar na totalidade.
Eles estão cheios de sensações e isso dificulta o relacionamento. Esse lado conturbado e complexo, de quem até chega a magoar o outro, é o que
encontramos nas restantes páginas. Não obstante, algumas ideias muito bem
conseguidas reflectem a beleza dentro de cada um deles, beleza que parecem
incapazes de partilhar, revelando-a apenas para o leitor:
“Se a neve é o silêncio que cai do céu, talvez a chuva seja
uma frase sem fim.”
Ou talvez chova dentro deles. Tanto, que apenas podem
desejar o silêncio.
“Porque, ao mesmo tempo que o mundo visível teria
gradualmente recuado como uma maré vazante, o silêncio que partilhávamos
tê-lo-ia paulatinamente preenchido.”
“Desde que perdeu a fala, por vezes tem a sensação de que
inspirar e expirar se assemelha à própria fala. Parecem agitar tão
corajosamente o silêncio como a voz.”
E talvez seja isso, em pequenos e insondáveis detalhes
compreende-se no silêncio, num respeito mútuo e sincero, numa intimidade mais
cúmplice do que aqueles que têm ao dispor, palavras e imagens e que lutam com o
silêncio. Como se estar em silêncio acusasse uma falta: a de compreenderem que
têm tudo.
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