terça-feira, 16 de abril de 2024

«Amor estragado» de Ana Bárbara Pedrosa :: Opinião

"Um dia, depois de um bagaço, desabafei com um amigo, que tinha sido burro e era padre. Coitado, aquilo dava-me pena. Passava os dias no meio de velhas beatas e nunca ia saber que o único milagre que existe está num corpo de uma mulher a dizer que não quer mais."

Que se sublinhe "num corpo de uma mulher a dizer que não quer mais"

Embora seja uma premissa mais do que errada, abusiva, violenta, tóxica e transtornante, essa é a premissa para se entrar na cabeça do Manel, e por sua vez, na voz que a Ana Bárbara tão acutilantemente criou para nos destabilizar com esta história desestruturante e destruidora de tudo o que pode ser uma relação e uma família, menos amor, desejo, compreensão, empatia, cumplicidade ou sequer intimidade. Tudo o que aqui nos surge perante os olhos e nos assome à garganta como asco e vómito, é uma dura e triste realidade. É a realidade de muitas famílias, mulheres e filhos. Uma realidade que pode estar debaixo do nosso nariz, na porta ao lado, no quarto por baixo do nosso, na nossa família, na casa do nosso irmão. É a realidade e nós fazemos parte dela. Por isso, metade do asco, da aspereza e da realidade está-nos debaixo das unhas e isso é feito com uma mestria brutal e desarmante, conseguida nesta escrita crua e estragada de Ana Bárbara.

"De copo vazio, lá falou de novo:

- A missão de um homem é só amar uma mulher.
Para mim ficou claro que a paz entre pais e filhos não valia nada e que ele nem tinha noção de que um homem se mede pela impressão que a sua mulher deixa nos outros."

A voz é do Manel, mas o conselho é do seu pai. Podia ser do Zé, a outra voz este romance é do Zé, ele é irmão do Manel e entre estas vozes distintas, mas da mesma família, vamos construindo um entendimento destas vidas: "só no casamento é que se entende que a vida em casal se faz de irritações pequenas..."

Mas mesmo pequenas, fazem do quotidiano uma luta, e Manel decidiu que o seu maior adversário era Ema, a mulher que escolheu para se medir. E dessa medida, marca e impressão que cresce uma pegada irreversível, uma sombra maior que o tamanho de uma família. Uma sombra pesada que acaba com a morte de Ema, espancada fatalmente por Manel. Uma herança que bagaço nenhum apagará.

A ideia de desresponsabilização corria nas veias de Manel como o álcool que ele achava que o fazia mais homem, que o salvava de uma mulher estúpida e estragada, a única culpada por terem a vida num buraco, no lodo. O extremo da sua toxicidade percebe-se pelo ódio que alastra nos seus discursos à medida que a narrativa avança e que vemos que o melhor foi mesmo ele a ter matado, a impotência perante os factos é tanta que chegamos a desejar que ele o tivesse feito antes, reduzindo assim o calvário por que Ema passou.

"Em flashes, foi isto a vida dela: viver entre freiras loucas, lavar escadas, casar, irritar-me, levar porrada, beber, não saber agradecer-me por tê-la impedido de ser uma mulher sem homem, levar-me aos extremos e enfim morrer, deixando o caos na minha família. Filha da puta."

Impressionante é também a dualidade entre o suposto amor e código de honra que Manel diz ter perante a sua família: "a família não é escolher porra nenhuma, é o sangue. Não é o sítio para onde vamos, é de onde vimos, e o lugar de onde vimos não nos larga." Mas Manel nunca se refere a Ema como parte da sua família, antes pelo contrário. Embora ela tenha sido sangue. Foi sempre sangue, quando ele fez dela um objecto onde expiava raiva e frustrações. Nem a morte de um irmão e de uma cunhada o fez equacionar a sua dependência do álcool, a sua procura por colo e aconchego no fundo de um copo.

«Amor estragado» é um relato muito duro. A capacidade narrativa da autora a isso ajuda, desarma-nos e faz de nós testemunhas. Vemos um homem que se destrói, uma mulher batida sem voz nem espessura, que se some diante de nós, um irmão a enterrar numa das passagens mais duras mas mais bonitas de todo o livro, uma outra mulher, aliás duas, mães, mulheres e amigas que se perdem na doença e no luto e a dureza que é ficar no meio de tudo isto sem palavras, sem saber o que dizer, pois não se sabe que frase pode salvar o outro. E nós!

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