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quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

"Bairro sem saída" de Fernando Ribeiro - Opinião

 


O convite de Fernando Ribeiro é que entremos no Bairro da Verdade (ou na Brandoa) no virar da década de 70 e o façamos pela sua mão poética e gótica a que já nos habituou, seja em tons mais ou menos melódicos, nas letras e poemas de que é autor. Chegada a vez do romance, o leitor é convidado a recuar a um dos bairros mais clandestinos das Europa e conhecer tanto aquilo que tombou, como a geração que vingou, com personagens peculiares e bem caracterizadas, numa linguagem e um traço de humor negro que fazem logo metade do enredo que acompanha Rogério Paulo desde que fez estremecer as paredes pela primeira vez.

"Dentro de um quarto de um hospital na capital, entre tremores e rebentamentos de águas, eu tentava nascer. Rogério Paulo. O crucifixo na parede agitava-se. Parecia que até Cristo queria sair dali para fora, enjoado com o marear desta frágil jangada. (...) a cada grito da minha mãe, os médicos recuavam um passo, como se no útero dela radicasse o epicentro que rachava o branco das paredes. (...) O seu Ai! era um eco distante, pequenino entre as vozes que invocavam uma agonia preocupada."

Entre o entulho dos assustados, uma jangada meio à deriva, abre caminho entre tremeliques da terra enlameada, assim nasce Rogério Paulo e perde-se Fernando, o primo que dará uma aura ao romance.
E, na agonia preocupada, que sempre ocupou as mentes e os dias de muitos dos habitantes da Brandoa, fossem essas preocupações fruto da época social e política que o país atravessava, e obviamente todo o impacto económico que isso tinha na vida em geral, havia ainda a própria precariedade do bairro e o quanto isso foi alimento para a criatividade necessária à sobrevivência diária. E parte deste livro é isso mesmo, um relato dessa criatividade entre miúdos. E graúdos.

"Eu lá crescia, imitando o Bairro.
Como um casaco aos buracos, o Bairro lá se ia remendando. Desengane-se quem pensar que a brisa da prosperidade já por ali soprava. Era preciso mais que água e sabão para desinfectar o charco. (...) Nos arredores da capital, o Bairro apresentava-se como um espantalho vestido de retalhos de louça, azulejo e cimento ao sol. Cá de baixo da estrada, os carros tiravam-lhe a fotografia enquadrada pela aritmética do desprezo. (...)
O ar incompleto das suas ruas era parecido ao daquela manga de camisa que não chega a dar a volta ao punho (...) Estava feito à imagem das pessoas que o habitavam por dentro, cabeças de milho arrancadas à força do êxodo rural, lançados nas pressas ao vento soprada através da clandestinidade das noites."

Na clandestinidade e à força, na boleia dos biscates entre passadas apatetadas, a Brandoa e a Buraca cresciam, desarmando a inocência das primeiras idades e fazia-os crescer um tanto desencantados com a vida. No entanto, muitos fizeram-se às ruas sem sinalização e deram com a saída!

"A caspa descia para os autos, como naqueles globos artificiais de neve com figuras natalícias, e, às vezes, por passar a mão na bochecha, o polícia de turno ficava com tinta na cara. Conferia algo de cómico à confusão das liberdades interrompidas pela voz de prisão que amontoava pessoas ao pé da esquadra, impelidas pelo tal arfar das esquinas."

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