Hector Abad não é uma sombra é antes a sombra que Hector Abad (o filho, o escritor) queria ter sempre consigo, mas quis a vida de um país e as lutas ideológicas sem fim, retirar-lhe essa sombra quando ainda lhe fazia tanta falta o amor exagerado de pai, mesmo que o narrador e protagonista fosse já um homem adulto. Uma falta que levou vinte anos a ser macerada e digerida em forma de declaração de amor, de testemunho e de documento que revela um país, uma luta, um homem e um crime que passou impune.
"Somos o esquecimento que seremos" é primeira estrofe de um poema de Borges e um axioma que Hector Abad, pai e Hector Abad, filho, sabiam precisar de combater pelo acto da luta e da escrita. Isso e denunciar todo um outro tipo de sombras que durante décadas assombraram uma Colômbia que não quis saber dos seus melhores cérebros.
Ainda assim, quero crer que o leitor (não colombiano) retirará mais do lado afectivo e emocional que é ver a dedicação e o amor entre pai e filho, assim exposto como a mais bela poesia se oferece aos amores eternos e espelha uma inocência, tão própria, dos amores incondicionais.
"Eu participava nessas procissões, mas, à tarde, o meu pai contrabalançava com a enciclopédia e com as suas palavras e leituras as minhas práticas diurnas. Como numa luta surda por se apoderar da minha alma, eu passava das tenebrosas cavernas teológicas matutinas para os reflectores iluministas vespertinos. Nessa idade em que se formam as crenças mais sólidas, as que provavelmente nos acompanharão até ao túmulo, eu vivia açoitado por um vendaval contraditório, embora o meu verdadeiro herói, secreto e vencedor, fosse esse nocturno cavaleiro solitário que, com paciência de professor e amor de pai, me esclarecia tudo com a luz da sua inteligência, ao amparo da escuridão."
Se a mão e a voz do pai eram formas de amparo contra a escuridão e a dúvida, as mãos da mãe e a sua determinação sagaz eram a garantia de segurança e retidão familiar, embora mais pelo lado de cuidadora empenhado do que só boa cristã.
"A minha mãe, pelo contrário, era e continua a ser mística, embora sempre repita que tem falta e gostaria de ter «muitíssima mais fé». (...) A sua religiosidade, no entanto, tinha uma componente animista muito forte, quase pagã, pois os santos em que ela mais acreditava não eram os do santoral, mas as almas das pessoas mortas da sua própria família, que ela santificava assim que morriam (...) e se algum de nós adoecia, ela encomendava o assunto à alma do tio Joaquím (...), a da minha irmã (...) e, finalmente, á do meu pai, desde que o mataram. Mas, ao mesmo tempo, embora sempre estivesse atenta a estas imateriais presenças (...) era - e continua a ser - a pessoas mais realista que já conheci e com os pés bem assentes na terra (...) e muito mais capaz que o meu pai de resolver os problemas práticos, tanto os nossos como os dos outros, se tivesse tempo para isso."
Percebe-se desde cedo que a fé do homem e do escritor que aqui encontramos nestas páginas, está voltada para dentro de casa, para a família que sempre o acolheu e amou e para os livros, esse refúgio que encontra em cada palavra e pela qual sabe demonstrar a sua crença no amor, mas também a tristeza, a solidão e a dor. Palavras tão comuns à história da sua família e do seu país.
"A cronologia da infância não está feita de linhas esbeltas, mas de sobressaltos. A memória é um espelho opaco que se fez em cacos ou, melhor dizendo, é feita de intemporais conchas de recordações dispersas numa praia de olvidos. (...) recordá-las é tão desesperante como tentar recordar um sonho, um sonho que nos deixou uma sensação, mas nenhuma imagem, uma história sem história, vazia, da qual apenas resta um vago estado de ânimo. As imagens perderam-se. (...) no entanto, de repente, ao revermos o passado, qualquer coisa volta a iluminar-se na obscura região do esquecimento. Trata-se, quase sempre, de um misto de vergonha e alegria, e quase sempre aparece a cara do meu pai colada à minha como a sombra que arrastamos ou que nos arrasta."
Cronologia da memória e registo detalhado de uma vida que terminou abrupta, Faciolince traça uma ode ao pai em palavras que são pranto sem lágrimas, uma dor interior que não parece comovida, mas paralisada, uma quieta inquietação. E nessa inquietação que também é uma forma de amor, comove e desassossega quem o lê.
*
Aqui. Hoje. Já somos o esquecimento que seremos… Jorge Luis Borges
Aqui. Hoje.
Já somos o esquecimento que seremos.
A poeira elementar que nos ignora
e que foi o rubro Adão, e que é agora
todos os homens e que não veremos.
Já somos na tumba as duas datas
do princípio e do termo, o esquife,
a obscena corrupção e a mortalha,
os ritos da morte e as elegias.
Não sou o insensato que se aferra
ao mágico som do meu nome:
penso com esperança naquele homem
que não saberá quem fui sobre a Terra.
Sob o indiferente azul do céu
esta meditação é um consolo.
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