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quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

«TRÂNSITO» de Rachel Cusk - Opinião

 

“Concluía por vezes que as pessoas desejam aquilo que não têm a certeza de poderem vir a possuir, outras vezes, a coisa parecia-lhe mais complexa.”

Dito quase nas primeiras linhas, esta frase tornar-se numa sentença que se estende como conclusão de diversos episódios ocorridos na vida da narradora protagonista, Faye, que em busca de mudança, que já haviam sido iniciadas em «Contraluz», a levam desta vez a procurar estabelecer-se por Londres.

Os desejos estão aqui em trânsito, e essa noção é de confluência, quase de engarrafamento, onde uma série de coisas empancam, umas atrás das outras, num curto espaço de tempo, tudo afazeres necessários aquando de uma mudança. Como a casa. O foco desta narrativa.

Por outro lado, são também todas as coisas que surgem a quem corre atrás de um tempo que parece ainda mais acelerado. E mais uma vez o título funciona muito como metáfora para as ocorrências e encontros. Ela está em trânsito entre duas realidades: a do eu unitário e solitário e a de um eu mais universal, mais partilhado que comunga com uma realidade mais sinérgica.

“(…) ao fim de tanto tempo, parecia ter criado um acordo tácito de que, até estarmos ambos seguros do chão que pisávamos, deveríamos permanecer em terreno neutro e orientarmo-nos por balizas públicas.”

Neutro é muitas vezes o terreno literário que se estende ao logo de todo o relato, neutro pela ausência, quase total, de enredo, já que os instantâneos da vida de Faye, embora narrados na primeira pessoa, parecem isentos de avaliações sentimentais. Não o são, mas surgem de forma muito inteligente e com um humor peculiar, expondo uma análise pelas atitudes de terceiros, talvez até como forma de não acrescentar mais itens à lista de pecados que Faye afirma possuir.

“Esta ideia de dois cães a partilharem a tarefa de decifrar os sinais do falcão, achava-a muito empolgante. Sugeria que a realização suprema de um ser consciente residia não na solidão, mas numa partilha tão elaborada e cooperante que quase podia dizer-se que representava o entrelaçar de dois eus. Esta noção, do eu unitário a ser rompido, da consciência, não de um aprisionamento nas suas próprias perceções, mas, antes, como alguma coisa mais íntima e menos dividida, uma universalidade.”

Da universalidade é compreendermo-nos pelo outro. Conclusões encontradas no discurso alheio. Afirmando o poder restaurador que é escutar, Faye, expõem-se menos, mas compreende-se nas revelações dos outros, que de forma brilhante narra ao leitor, abrindo apenas pequenas brechas sobre si mesma, como quem exercita e reforça, apenas em doses homeopáticas, o sistema imunitário. E por isso afirma: “talvez seja só nas nossas feridas que o futuro pode criar raízes.”

Ainda assim, a dualidade desempenha um papel importante, e talvez por andarmos em busca dela se consiga encontrar um certo enredo, fruto da natureza esgotante “(…) muitas vezes as pessoas se revelam, involuntariamente, por aquilo que notavam nos outros.”

“(…) se não pode ser interpretada, então pela concretização ao menos de um olhar humano admirativo, tal como uma pintura suspensa numa parede, aguardando.

Embora com passagens muito bem conseguidas, há uma certa redenção e um tom menos cáustico com que pincelou «Contraluz». E uma agressividade mais contida e até contemplativa.

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