“Concluía por vezes que as pessoas desejam aquilo que não
têm a certeza de poderem vir a possuir, outras vezes, a coisa parecia-lhe mais
complexa.”
Dito quase nas primeiras linhas, esta frase tornar-se numa
sentença que se estende como conclusão de diversos episódios ocorridos na vida
da narradora protagonista, Faye, que em busca de mudança, que já haviam sido
iniciadas em «Contraluz»,
a levam desta vez a procurar estabelecer-se por Londres.
Os desejos estão aqui em trânsito, e essa noção é de
confluência, quase de engarrafamento, onde uma série de coisas empancam, umas
atrás das outras, num curto espaço de tempo, tudo afazeres necessários aquando de
uma mudança. Como a casa. O foco desta narrativa.
Por outro lado, são também todas as coisas que surgem a quem
corre atrás de um tempo que parece ainda mais acelerado. E mais uma vez o
título funciona muito como metáfora para as ocorrências e encontros. Ela está
em trânsito entre duas realidades: a do eu unitário e solitário e a de
um eu mais universal, mais partilhado que comunga com uma realidade mais
sinérgica.
“(…) ao fim de tanto tempo, parecia ter criado um acordo
tácito de que, até estarmos ambos seguros do chão que pisávamos, deveríamos
permanecer em terreno neutro e orientarmo-nos por balizas públicas.”
Neutro é muitas vezes o terreno literário que se estende ao
logo de todo o relato, neutro pela ausência, quase total, de enredo, já que os
instantâneos da vida de Faye, embora narrados na primeira pessoa, parecem
isentos de avaliações sentimentais. Não o são, mas surgem de forma muito inteligente
e com um humor peculiar, expondo uma análise pelas atitudes de terceiros,
talvez até como forma de não acrescentar mais itens à lista de pecados que
Faye afirma possuir.
“Esta ideia de dois cães a partilharem a tarefa de decifrar
os sinais do falcão, achava-a muito empolgante. Sugeria que a realização
suprema de um ser consciente residia não na solidão, mas numa partilha tão
elaborada e cooperante que quase podia dizer-se que representava o entrelaçar
de dois eus. Esta noção, do eu unitário a ser rompido, da consciência, não de
um aprisionamento nas suas próprias perceções, mas, antes, como alguma coisa
mais íntima e menos dividida, uma universalidade.”
Da universalidade é compreendermo-nos pelo outro. Conclusões
encontradas no discurso alheio. Afirmando o poder restaurador que é escutar,
Faye, expõem-se menos, mas compreende-se nas revelações dos outros, que de
forma brilhante narra ao leitor, abrindo apenas pequenas brechas sobre si
mesma, como quem exercita e reforça, apenas em doses homeopáticas, o sistema imunitário.
E por isso afirma: “talvez seja só nas nossas feridas que o futuro pode criar
raízes.”
Ainda assim, a dualidade desempenha um papel importante, e
talvez por andarmos em busca dela se consiga encontrar um certo enredo, fruto
da natureza esgotante “(…) muitas vezes as pessoas se revelam,
involuntariamente, por aquilo que notavam nos outros.”
“(…) se não pode ser interpretada, então pela concretização
ao menos de um olhar humano admirativo, tal como uma pintura suspensa numa
parede, aguardando.
Embora com passagens muito bem conseguidas, há uma certa
redenção e um tom menos cáustico com que pincelou «Contraluz». E uma
agressividade mais contida e até contemplativa.
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