o tal capítulo 7 de Rayuela
"Toco a tua boca.
Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.
Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água."
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A transcrição deste excerto visa apenas demonstrar a beleza e a perfeição de um capítulo que, só por si, é um livro inteiro; um livro que se lê sem se saber muito bem o que se está a ler, como se deve ler, quem é quem e qual é o seu papel, qual é o sentido de tudo aquilo... numa época "lá" e outra "cá", que é como quem diz Paris e Buenos Aires, respectivamente, acompanhamos um homem que se desdobra, caminha, ama, divaga e convive.
E talvez o que mais nos fique são as suas angústias, o amor e considerações afectivas e claro, divagações. Quase uma centena de divagações que o autor isenta o leitor da necessidade de lê-las para ter o livro como completo.
Claro está que esses 99 “capítulos prescindíveis” são provavelmente aqueles que vamos logo atacar, como quem pica e debica e vai provando para saber se fica ou não cortazado.
Rayuela é um puzzle com capítulos-peça cujo arestas estão em falta ou dobradas e nem sempre encaixam. Ou encaixam! Já que a sua composição experimental deixa em aberto todas as direcções possíveis, apelando à interpretação (e criatividade?) de cada leitor, exigindo-lhe que participe e decida.
Um romance interminável que marca uma viragem na forma de fazer literatura e que está carregado de simbolismo, metáforas, jogos narrativos e de linguagem, expondo ideias e reflexões ainda bastante actuais ou até premonitórias; a própria metáfora do título/jogo da macaca como forma de estar - e ir andando na vida - é brilhante e até muito acertada!
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Este livro foi lido no seguimento de «O Avesso da pele» de Jeferson Tenório que faz referência, especificamente, ao memorável capítulo 7
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