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quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

«Desenhos Ocultos» de Jason Rekulak - Opinião


ONDE METI EU O PAPELITO COM O TEXTO SOBRE ESTE LIVRO?

Podia ser a introdução a esta opinião ou antes a história dos meus últimos tempos com esta mania que se instalou, a de rabiscar opiniões em pedaços soltos de papel e depois perder-lhes o rumo. Um saga sem fim à vista!

Desabafos à parte, «Desenhos Ocultos» - que eu teimo em apelidar de Obscuros - foi um leitura por impulso. Abri o livro e gostei dos desenhos, tanto os mais infantis como os mais cuidados e fiquei curiosa como evoluiria a história para partirmos de uns e chegarmos a outros. 

Jason Rekulak conduz-nos até um casal para desde cedo percebermos que algo vai mal e ficarmos de olho naquela relação. A voz de Caroline é paciente e conciliadora; as respostas de Ted são curtas e duras, preciso e com as palavras bem marcadas. «É como ouvir um violino a dialogar com um martelo-pneumático». Ainda assim, enquanto dialogarem, a vida vai fluindo e são capazes de decidir a contratação de Mallory Queen.

Mallory tem apenas vinte e um anos, mas a sua história já traz um disclaimer: 

"AVISO: É fácil resvalar, mas não se cai sozinho!"

E se juntarmos a história de Mallory com a que se vai desenrolando sobre Annie Barrett está montado o enredo obscuro possível de se cruzar com ensinamentos dos melhores livros, tal como Adrian lhe dá a perceber quando recorda as palavras de Spock, parafraseando Shelock Holmes:

"Quando eliminamos o impossível, o que resta, por muito improvável que seja, deve ser verdade."

Mesmo com os sábios conselhos dos livros, a cabeça de Mallory tem o hábito de criar impossíveis, de fazer cenários e driblar entre histórias sem sentido, nem que seja para esquecer que está à distância de uma pedrada em Filadélfia, portanto ela tem de compreender o que de oculto se esconde nos desenhos obscuros 😉 que substituíram os rabiscos e as figuras-palito inocentes e típicas das crianças da idade de Teddy.

"Nunca consegui encontrar as palavras exactas para descrever a sensação - a estranha impressão - de qualquer coisa a esvoaçar na periferia dos meus sentidos, por vezes acompanhada por um zumbido agudo."

Entre estudos científicos sobre «detecção de olhares» e tábuas de espíritos, oscilamos entre tentativas da ciência explicar o que as sessões espíritas caseiras confundem, mas o mais engraçado é o humor que os diálogos com o pequeno Teddy assumem, mostrando-se tão perdido quanto o leitor.

"Eu tento inventar histórias (...) mas o príncipe Teddy só quer falar de tábuas dos espíritos. Precisam de pilhas? Conseguem encontrar qualquer coisa morta? (...) espero que ele perca o interesse, mas em vez disso pergunta se é possível fazermos uma."

O interessante do livro é a forma como o autor capta diversos universos mentais em função das idades e experiências de vida, fazendo-os conviver a todos na casinha rústica de subúrbio até colidirem e com isso dá um ritmo em crescendo à narrativa, conseguindo imagens bastante interessantes: «somos como bolas de sabão com que o Teddy gosta de brincar - mágicas, flutuantes, mais leves que o ar - condenadas a rebentar a qualquer momento», tal como o desfecho que rebenta na cara do leitor, completamente inesperado.


segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

«A Vida não é aqui» Milan Kundera - Opinião



“O poeta necessita de uma metade mágica para fazer poesia.” Otávio Paz

Será essa metade a mãe? A vida ou a morte? A guerra? Ou a resistência?

Ao poeta não podemos exigir que evite a guerra. Mesmo palavras poderosas que ferem e separam. Mesmo essas, não matam. Por isso, ao poeta, só podemos pedir que resista e reconstrua os vazios da guerra, num diálogo alimentado a ausências.

Em “A vida não é aqui”, Kundera “deixa” escorregar do corpo de uma mulher, para os lençóis manchados do mundo, um poeta. Um bebé primaveril e por isso de nome Jaromil ;) Com o bebé nasce uma mãe, experimentando a poesia abrupta do corpo, uma animalidade que até ali a repugnava.

“Tratava-se de uma coisa completamente nova, porque a mãe experimentava desde a infância uma repugnância relativamente à animalidade, tanto dos outros como sua; achava degradante sentar-se no assento das sanitas (…), e havia mesmo alturas em que tinha vergonha de comer diante de gente, porque a mastigação e a deglutição lhe pareciam repugnantes. E eis que estranhamente a animalidade do seu filho, erguida acima de toda a fealdade, purificava e justificava aos olhos dela o seu próprio corpo.”

Talvez a metade mágica seja o amor, nas suas mais variadas formas e lutas e Jaromil teve a sorte de começar a vida com o amor materno, bem como o da restante família, porém se a falta de amor causa danos, tê-lo não o isentou de dissabores.

“O amor materno imprime na fronte dos rapazes uma marca que repele a simpatia dos colegas.”

E talvez alguns dissabores o conduzam a alguma solidão, uma solidão povoada por companhias fantásticas, tornando-a numa solidão produtiva.

“Sonhar com cães tornou-se a paixão da sua solidão (…) e como passava muito tempo à secretária do pai com um lápis e papel (…) de maneira que os seus devaneios e a sua falta de jeito deram origem a um universo estranho de homens cinocéfalos, um universo de personagens…”

Porém, quando as solidões se cruzam abrem brechas que podem virar abismos: “o abismo da intimidade ilícita e da compreensão proibida.”

Um livro sobre o universo interior que se alimenta muito do que não é dito, embora o que é dito e dado a entender nas entrelinhas seja suficiente para de uma história tecer várias, enredando-lhe os fios com os da literatura, da guerra, da filosofia, da poesia, da traição, da obscuridade, da loucura e da depressão, do amor e da solidão. Ou seja, a vida a enredar-se na vida. Nas vidas! Quando uma se esconde, outra se revela.

“Xavier não vivia uma vida só estendendo-se do nascimento à morte como um longo fio sujo; não vivia a sua vida, mas dormi-a; nessa vida-sono saltava de um sonho para outro sonho; sonhava; adormecia a sonhar e sonhava outro sonho, de tal maneira que o seu sono era como uma caixa na qual entre uma outra caixa, e nesta uma outra caixa ainda, e nesta outra, e assim por diante.”

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

«A Ignorância» de Milan Kundera :: Opinião


Lido pela primeira vez em 2010, «A Ignorância» é um pequeno livro cheio de grandes questões como é hábito conterem os livros de Milan Kundera. Nessa primeira leitura foquei-me na nostalgia, memória e regresso e desta não foi muito muito diferente, embora seja curioso ver a diferença entre os trechos selecionados. 

Um homem, Josef, vê-se a braços com um regresso e as indagações que daí advêm, quando se confronta com a pátria e uma mulher. Irene, da qual não se lembra, mas com o que ele mais se confronta é com a memória e a certeza de que o regresso é a reconciliação com a finitude da vida, caso contrário, seria alimentar a eterna fuga, «habitar o infinito», que foi precisamente do que fugiu quando deflagrou a guerra e o comunismo. 

E a dúvida instala-se! Atormenta-o. Aliás, atormenta-os a ambos, numa fraternidade nocturna, cujo sonho comum expõe os mesmos medos.

“Também a memória não é compreensível à falta de uma abordagem matemática. O dado fundamental é a relação numérica entre o tempo da vida vivida e o tempo da vida armazenada na memória. Nunca se tentou calcular esta relação e não existe de resto qualquer meio técnico de o fazer; no entanto, sem correr grande risco de me enganar, posso supor que a memória não guarda mais que um milionésimo, um bilionésimo, em suma uma parcela perfeitamente ínfima da vida vivida. Também isto faz parte da essência do homem. […] 

Nunca acabaremos de criticar os que de forma o passado, ou reescrevem, ou falsificam, que dilatam a importância de um acontecimento, e calam a de outro (…) À margem da nossa vontade e dos nossos interesses. Nada se compreenderá da vida humana enquanto se persistir em escamotear a primeira de todas as evidências: a realidade, tal como existia quando existia, já não existe; a sua restituição é impossível.”

 Atormenta-os também, a necessidade tão grande de catalogar e medir a dor e sofrimento, entre quem partiu e quem ficou, explorando uma ideia de hierarquia da dor, juntamente com os sentimentos de traição e amputação, dividindo novamente quem foi e quem resistiu, restituindo-se o reconhecimento como vítimas. Restituindo-se direitos. 

“Primeiro, com o desinteresse total pelo que ela viveu no estrangeiro, amputaram na de vinte anos de vida. Agora, com este interrogatório, tentam voltar a coser o seu passado antigo e a sua vida presente. Como se a amputassem do antebraço e lhe fixassem a mão diretamente no cotovelo, como se a amputassem das pernas pelo joelho e lhe prendessem aos joelhos os pés ponto siderada por esta imagem, não é capaz de responder nada às perguntas delas (…)”

Questionando a deformação da memória, essa «memória que o detestava, que não fazia outra coisa que não fosse caluniá-lo; esforçava-se por isso por não acreditar nela», por manter a sua «insuficiência de nostalgia» e «à medida que trechos da sua vida caem no esquecimento, o homem desembaraça-se daquilo de que não gosta e sente-se mais leve, mais livre», ainda assim, para se apaixonar, é preciso estar presente e no presente. E a paixão é a exaltação do presente, da vontade de viver, mas como poderia conhecer o sentido do presente quem não conhece o futuro?