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domingo, 16 de abril de 2023

«Rua Katalin» de Magda Szabo :: Opinião

 

"Hoje tenho a noção da importância daquele momento; contudo, na altura, não cheguei a percebê-la. Muitas vezes só tardiamente nos apercebemos de como teria sido importante, enquanto é possível, prolongar e reter o tempo. Mas eu não tentei retê-lo. Estava com pressa. (...) Naquela altura, ainda sabia que se podia morrer bem antes da morte verdadeira. (...) Mas agora, isso já pouco importa; os sentimentos e as recções, tal como os factos, são irreversíveis, não se pode revivê-los nem mudá-los."

Em menos de três páginas, três pequenos excertos que podiam saltar do livro para a vida. Imitando-a. Salva-nos uma nuance: o livro, esse, podemos reler, mas mesmo assim não anulamos o que já conhecemos, o enredo, o desfecho. Podemos reinterpretar, saborear e usufruir o que não soubemos fazer à primeira, mas será impossível alterar a expectativa (e a pressa!) com que o atacamos na leitura inicial. E isso é uma metáfora da vida. É preciso saber dar a cada coisa o seu lugar e o seu tempo e não fazer comparações. Mas como fazer isso bem feito quando as expectativas vão elevadas?

A "culpa" foi da experiência arrebatadora provocada pela leitura de «A Porta» e a vontade de querer, às primeiras páginas, ficar assoberbada, inebriada e rendida e uma personagem que pudesse equilibrar a balança ao lado de Emerence. Mas os livros, como a vida, têm personagens irrepetíveis, ainda assim, todas têm o seu lugar e o seu efeito sobre nós. Basta deixarmos!

Em «Rua Katalin», Szabo mostra-nos o envelhecimento através do processo de rememoração da infância e de episódios que definem para sempre as vidas de Irén, Blanka, Balint e Henriette, crianças de três famílias diferentes que nos são apresentadas num quadro de personagens iniciais (que tanto determinam a experiência de leitura) e num curto capítulo introdutório que, à laia de aviso, nos diz: "Ninguém lhes havia explicado que o desaparecimento da juventude seria alarmante, não por lhes retirar, mas por lhes oferecer algo (...) a consciência da desintegração do Todo (...) o Todo harmonioso fragmentara-se."

E é na senda dessa fragmentação que o leitor vai compondo a cronologia possível que, julga ele, lhe permitirá compreender o que aconteceu naquelas vidas e o peso e os fantasmas que carregam, perante a crueldade de determinadas memórias, feridas sempre abertas e emoções demasiado confusas, para se expressarem na simplicidade das lágrimas.    

"Continuámos sentados em silêncio, como dois irmãos e, pela primeira vez na minha vida, presumi que os mortos não morrem, e quem já vivera neste mundo, seja sob que forma de existência, é indestrutível."

A inevitabilidade do curso da História e a dor que daí advém, muda-os e molda-os ao entrarem na idade adulta. Transforma-os em desconhecidos uns para os outros, mas também para si mesmos, porque «nas tragédias, quando os golpes são muito fortes, o espírito defende-se, concentrando-se num pormenor insignificante», tal como logo ao início o narrador nos avisa: «na realidade, os acontecimentos que constituíam as suas vidas só em poucas situações, nalguns momentos e episódios, foram importantes; o resto servia apenas para encher os poros da fragilidade da existência, tal como as aparas de madeira impedem que se quebre o conteúdo de uma caixa destinada a uma longa viagem». 

E nessa longa viagem, composta por aparas que enchem mais de trinta anos, conhecemos vários tipos de amor, de sacrifício, de opressão e de união familiar, mas também a inocência da amizade e dos amores de infância que geram memórias responsáveis por decisões que determinaram as vidas destas três famílias «como um barco que é levado pelo vento, Deus sabe para onde, agarrando-se um ao outro, (...), pois lembram-se das mesmas coisas (...) tinham visto o mesmo céu azul antes de a tempestade se ter desencadeado».

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Nota extra: Percebi o quanto tinha gostado deste livro ao reler a opinião sobre os efeitos da leitura de «A Porta». Está cá tudo, igualmente cheio de mestria e desconcerto para o leitor. E também por ter encontrado nas páginas finais, nas revelações impactantes de Irén, ecos de «A Herança de Eszter» e perceber, mais uma vez, quanto tempo os livros, como as memórias, vivem dentro de nós.

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