“A morte é a condição real que ofende a fantasia.” Harold
Brodkey, The Runaway Soul
Uma alma que foge à morte, nas suas mais variadas formas, pode ser o resumo deste «A Ofensa» que valeu
a Menendez Sálmon as luzes da ribalta da ficção espanhola nos idos de 2007.
“O heroísmo foi inventado para os que carecem de futuro e melhor não podia ser introduzido o homem deste relato, Kurt. Um homem
em transformação desde o primeiro momento. Em homem em fuga.
“(…) Kurt abraçou Rachel durante longos, suados e
comovedores minutos em que ambos conjugaram os dois verbos mais antigos que
homens e mulheres reiteram na intimidade: amar e temer.”
“O mundo era um teatro de exaltações e de ruído envolto no
grato celofane da velocidade, da exactidão, da mecânica da sedução.”
A guerra estava à porta e os homens montavam insólitos
cavalos mecânicos, seduzidos pela potência que resfolegava campo afora,
parecendo imunes aos corpos horrivelmente mutilados, corpos que outrora
contracenavam em abraços e despedidas, promessas e desejos e agora não passavam
de escombros.
“Ao fim e ao cabo, até a filosofia mais trivial ensina que a
vida se parece mais com um quadro de Bosch do que com um bucólico almoço na
relva.”
É esse quadro de Bosch que encontramos numa linguagem
acelerada que introduz e resume manobras de guerra e artilharia, posições e
detalhes geográficos, mas que embate em pequenas coisas, réstias de
luminosidade (ou humanismo?) que comprometem a engrenagem de virilidade, posse
e sentimento de violação infinita.
“(…) todo aquele estrondo não fez mais do que atirar
baforadas de frio sobre o seu peito e extremidades, de modo que receou não
conseguir dar um passo sem desabar como um boneco de neve.”
Não obstante, o lirismo enternecedor não suplanta a estranha
dignidade que os homens em guerra precisam de manter, um sentido que parece não
ter local de inversão e os faz esquecer os seus e a sua própria língua. Os faz
esquecer de si, do seu corpo naquele combate sem fronteiras para a
desumanização.
Será esse esquecimento uma forma de desmaio? Uma forma de viver sem estar realmente naquela realidade da guerra?
“O homem convive com o seu corpo, mas não o conhece. Pelo menos não de uma forma exaustiva. Um homem e o seu corpo são realidades distintas. É isso certamente que permite compreender a essência última da dor, que não é mais do que a ruptura que provoca a indiferença do corpo face a nós próprios (…) E é também isso certamente o que permite a um ser humano conservar o seu nome, a sua dignidade, aquilo que mais intimamente possui, quando o seu corpo, da doença, na mutilação ou na velhice, já não lhe pertence. Para compreender o que é um homem não basta tomar nota das partes que o compõem (…) Há qualquer coisa no todo do homem que resiste a ser observado através da mera adição das partes que o compõem. (…)
Dessa forma, o corpo leva, até certo ponto, uma vida independente da inteligência que o habita (…) Um homem sem corpo pode saber-se a si mesmo. Um homem que vê o seu corpo desmembrar-se, queimar-se, apodrecer, nem por isso deixa de ser homem.Não é menos óbvio, no entanto, que o corpo, na vida prática, é a fronteira que se levanta entre qualquer homem e os seus iguais, ou entre qualquer homem e o lugar onde o seu tempo decorrer: o mundo. Porque o homem sente e conhece o mundo, fundamentalmente, através do seu corpo.
Face às agressões do mundo, o corpo protege-se. (…) O espectro de respostas geradas no corpo pelo horror é muito amplo. O corpo surpreende então pela sua plasticidade.
Mas pode um corpo demitir-se da realidade?
Pode um corpo esquecer-se de si próprio?”
Decerto que pode, especialmente numa época em que o
terror era o mais notável arauto da história de uma Europa em que a maioria
não tinha outra pátria nem outro credo que não fosse o sofrimento,
afinal o inferno era um lugar cheio de vivos.
E esse inferno, embora com diferentes escalas de dor, resume
vencedores e vencidos a uma mesma coisa: corpo, carne e medo. O corpo, essa verdadeira
memória do tempo.
“(…) e compreendeu que o assombro, ao fim e ao cabo, é uma categoria do quotidiano, e que só há um deus, o acaso, e que só existe uma religião, a casualidade, e que qualquer outra interpretação da vida e dos seus acidentes está não só a um passo do fracasso, como condenada à mais absoluta cegueira.”
«A Ofensa» é realmente um assombro e nessa perseguição, o
leitor aproxima-se da «Derrocada», pensando que vai encontrar um outro desfecho
para o enigmático final de Kurt; sem saber que Trilogia do Mal tem com
personagem principal o terror. O terror iminente em todas as sociedades,
pejadas de pessoas à beira do precipício – um prenúncio de derrocada -
voltando novamente à premissa de «A Ofensa», vítimas e carrascos confundem-se
porque o “terror é a maldição do homem.”
E é nestas palavras de Dostoievski, em Os Demónios, que
nos abeiramos dos três jovens em total derrocada, cheios de vocação para a
violência, que beleza nenhuma pode salvar e para quem qualquer reconciliação
com a vida é inútil perante tal atracção pelo mal
Mas mais uma vez, o autor nos diz que o mal e o medo andam
de mãos dadas.
“- No dia em que eu vim ao mundo (…) a minha mãe pariu
gêmeos: eu e o medo.”
E mesmo que não despertem ao mesmo tempo, o tempo tudo
resolve. O medo instala-se em pequenos detalhes e o mal pode dar-lhes
imortalidade.
Embora, a narrativa seja fluída e a escrita continue intensa, interessante e crua, ao despir crenças e moralidades ocas, tem um enredo bizarro e fragmentado não me cativa a atenção como aconteceu no primeiro livro, por isso, fico na incerteza se «O Revisor» vem dar a redenção pelo poder do amor, nas suas mais diversas formas, como é referido na sinopse do desfecho desta trilogia.
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