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sábado, 6 de maio de 2023

«A Ofensa» de Ricardo Menendez Sálmon :: Opinião

“A morte é a condição real que ofende a fantasia.” Harold Brodkey, The Runaway Soul

Uma alma que foge à morte, nas suas mais variadas formas, pode ser o resumo deste «A Ofensa» que valeu a Menendez Sálmon as luzes da ribalta da ficção espanhola nos idos de 2007.

“O heroísmo foi inventado para os que carecem de futuro e melhor não podia ser introduzido o homem deste relato, Kurt. Um homem em transformação desde o primeiro momento. Em homem em fuga.

“(…) Kurt abraçou Rachel durante longos, suados e comovedores minutos em que ambos conjugaram os dois verbos mais antigos que homens e mulheres reiteram na intimidade: amar e temer.” 

“O mundo era um teatro de exaltações e de ruído envolto no grato celofane da velocidade, da exactidão, da mecânica da sedução.”

A guerra estava à porta e os homens montavam insólitos cavalos mecânicos, seduzidos pela potência que resfolegava campo afora, parecendo imunes aos corpos horrivelmente mutilados, corpos que outrora contracenavam em abraços e despedidas, promessas e desejos e agora não passavam de escombros.

“Ao fim e ao cabo, até a filosofia mais trivial ensina que a vida se parece mais com um quadro de Bosch do que com um bucólico almoço na relva.”

É esse quadro de Bosch que encontramos numa linguagem acelerada que introduz e resume manobras de guerra e artilharia, posições e detalhes geográficos, mas que embate em pequenas coisas, réstias de luminosidade (ou humanismo?) que comprometem a engrenagem de virilidade, posse e sentimento de violação infinita.

“(…) todo aquele estrondo não fez mais do que atirar baforadas de frio sobre o seu peito e extremidades, de modo que receou não conseguir dar um passo sem desabar como um boneco de neve.”

Não obstante, o lirismo enternecedor não suplanta a estranha dignidade que os homens em guerra precisam de manter, um sentido que parece não ter local de inversão e os faz esquecer os seus e a sua própria língua. Os faz esquecer de si, do seu corpo naquele combate sem fronteiras para a desumanização.

Será esse esquecimento uma forma de desmaio? Uma forma de viver sem estar realmente naquela realidade da guerra?

“O homem convive com o seu corpo, mas não o conhece. Pelo menos não de uma forma exaustiva. Um homem e o seu corpo são realidades distintas. É isso certamente que permite compreender a essência última da dor, que não é mais do que a ruptura que provoca a indiferença do corpo face a nós próprios (…) E é também isso certamente o que permite a um ser humano conservar o seu nome, a sua dignidade, aquilo que mais intimamente possui, quando o seu corpo, da doença, na mutilação ou na velhice, já não lhe pertence. Para compreender o que é um homem não basta tomar nota das partes que o compõem (…) Há qualquer coisa no todo do homem que resiste a ser observado através da mera adição das partes que o compõem. (…)

Dessa forma, o corpo leva, até certo ponto, uma vida independente da inteligência que o habita (…) Um homem sem corpo pode saber-se a si mesmo. Um homem que vê o seu corpo desmembrar-se, queimar-se, apodrecer, nem por isso deixa de ser homem.
Não é menos óbvio, no entanto, que o corpo, na vida prática, é a fronteira que se levanta entre qualquer homem e os seus iguais, ou entre qualquer homem e o lugar onde o seu tempo decorrer: o mundo. Porque o homem sente e conhece o mundo, fundamentalmente, através do seu corpo.
Face às agressões do mundo, o corpo protege-se. (…) O espectro de respostas geradas no corpo pelo horror é muito amplo. O corpo surpreende então pela sua plasticidade.
Mas pode um corpo demitir-se da realidade?
Pode um corpo esquecer-se de si próprio?”

Decerto que pode, especialmente numa época em que o terror era o mais notável arauto da história de uma Europa em que a maioria não tinha outra pátria nem outro credo que não fosse o sofrimento, afinal o inferno era um lugar cheio de vivos.

E esse inferno, embora com diferentes escalas de dor, resume vencedores e vencidos a uma mesma coisa: corpo, carne e medo. O corpo, essa verdadeira memória do tempo.

“(…) e compreendeu que o assombro, ao fim e ao cabo, é uma categoria do quotidiano, e que só há um deus, o acaso, e que só existe uma religião, a casualidade, e que qualquer outra interpretação da vida e dos seus acidentes está não só a um passo do fracasso, como condenada à mais absoluta cegueira.”

«A Ofensa» é realmente um assombro e nessa perseguição, o leitor aproxima-se da «Derrocada», pensando que vai encontrar um outro desfecho para o enigmático final de Kurt; sem saber que Trilogia do Mal tem com personagem principal o terror. O terror iminente em todas as sociedades, pejadas de pessoas à beira do precipício – um prenúncio de derrocada - voltando novamente à premissa de «A Ofensa», vítimas e carrascos confundem-se porque o “terror é a maldição do homem.”

E é nestas palavras de Dostoievski, em Os Demónios, que nos abeiramos dos três jovens em total derrocada, cheios de vocação para a violência, que beleza nenhuma pode salvar e para quem qualquer reconciliação com a vida é inútil perante tal atracção pelo mal

Mas mais uma vez, o autor nos diz que o mal e o medo andam de mãos dadas.

“- No dia em que eu vim ao mundo (…) a minha mãe pariu gêmeos: eu e o medo.”

E mesmo que não despertem ao mesmo tempo, o tempo tudo resolve. O medo instala-se em pequenos detalhes e o mal pode dar-lhes imortalidade.

Embora, a narrativa seja fluída e a escrita continue intensa, interessante e crua, ao despir crenças e moralidades ocas, tem um enredo bizarro e fragmentado não me cativa a atenção como aconteceu no primeiro livro, por isso, fico na incerteza se «O Revisor» vem dar a redenção pelo poder do amor, nas suas mais diversas formas, como é referido na sinopse do desfecho desta trilogia.

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