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segunda-feira, 23 de outubro de 2023

«Duas mulheres em Praga» de Juan José Millás :: OPINIÃO


«Duas mulheres em Praga» é um reencontro com toda a estranheza, mas também toda a autenticidade que povoam cada livro de Millás. É certo que nem sempre é fácil encontrar as palavras que dão forma aquilo que se sente a cada leitura, pois talvez precise de vivenciar o mundo mais com o lado esquerdo, especialmente em dias em que sou atacada pelo lumbago. ;) Estranho? Não! É só o mundo Millás a tomar conta do texto.

Estranhas são as coincidências entre leituras e a forma como dialogam e se interceptam, neste caso, entre este e o livro de Edith Wharton. É quase como se lhe respondesse ou assim quis eu lê-lo quando aceitei este périplo por entre filhos órfãos, pais adoptivos, mulheres que se completam e homens em dúvida acossados pela própria genialidade. Ou a genialidade é das mulheres e eles simplesmente alimentam-se delas?

“- Estou de baixa, por depressão. Sou funcionária pública e decidi nunca mais voltar ao escritório, nunca mais, mas para não voltar tenho de me deprimir mais ainda. O médico nota quando se fica boa e, por isso, estive dois meses a fazer exercícios de depressão para continuar de baixa. Mas dois meses sem falar com ninguém é demasiado. É de enlouquecer. Então vi o anúncio das biografias, liguei para os Ateliers Literários e marquei a entrevista.”

Garanto que o leitor em nada vai deprimir, mas de vez em quando gargalhará como um louco perdido nesta “geografia sem mapa”, ao que se deve acrescentar: aparentemente sem mapa, já que a habilidade de Millás é precisamente essa, não só compõe o mapa como as instruções para lê-lo e tudo em pouco mais de 170 páginas, descrevendo a vontade de cada uma destas personagens em ter uma vida mais plena, mais saldada, porém a vida teima em ficar a dever-lhes sempre alguma coisa.

“- Não és viúva, pois não? – perguntou ele.
- É como se fosse.
- Não te preocupes, eu também não sou órfão.
- Olha que é um alívio. A que te dedicas?
- Sou escritor – disse Álvaro, e inexplicavelmente saltaram-lhe as lágrimas como a Luz Acaso quando lhe disse que era viúva.
- Conheço outro escritor que também chora por tudo e por nada. Vocês são uns fracos.
- Não é que sejamos fracos – respondeu ele, reprimindo o pranto -, é que a vida deve-nos qualquer coisa que não nos dá.”

Esta realidade constantemente em dívida, compõe um novelo a desfiar-se numa dimensão paralela, sob a qual o leitor vai levitando inocentemente e incólume aos nós e penitências de cada um deles. Uma penitência ensaiada ou um delírio acarinhado. Calculista também. Ainda assim, o leitor compadece-se como se fossem assuntos sérios e perturbações reais

“Colocou o espelho retrovisor de maneira que, em vez de ver o trânsito, se visse a si própria. Deste modo, cada vez que olhava distinguia os seus próprios olhos e imaginava que eram os de uma passageira que viajava nas suas costas, perseguindo-a, embora se sentisse cada vez mais longe de si mesma.  (…)
Pensei, então, que cada um de nós tem dentro um «o que não», quer dizer, algo que não lhe aconteceu e que no entanto tem mais peso na sua vida do que «o que sim», o que lhe aconteceu.”

Diria até que a mestria de Millás é fazer com que as suas personagens se afastem sempre de si mesmas enquanto nunca se afastam um milímetro sequer dos seus dramas, criando conflitos e duplicidades maravilhosas, ficcionando muito bem a vida que nada tem de plana ou linear e basta ajustar o retrovisor para nos convencermos disso mesmo.

Ou como o próprio narrador nos diz, que um Ninguém se torna alguém porque o escrevemos com letra grande 😉 E que as mentiras, quando biografadas, tornam-se verdades, sempre carentes de mais um capítulo, porque a realidade nem sempre sabe escrever-se e precisa de mão habilidosa.


“- Olha, é uma amiga que te admira muito. Agora está a conquistar o seu lado esquerdo, para escrever um livro Canhoto.
- O que é um livro Canhoto?
- Não sei. Um livro escrito com o lado que não se sabe escrever.
Álvaro sentiu que Luz Acaso acabava de verbalizar com uma simplicidade surpreendente, uma ideia sua (…)
Fui tomando consciência de que estava a ser vítima de uma ficção que o meu próprio desejo contribuíra para construir. Era tudo mentira, de acordo, mas as peças dessa quimera começavam a encaixar tão bem que precisava de me repetir continuamente, é mentira, é mentira, porque à medida que os minutos passavam, era cada vez mais verdade.”

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