Chegamos a Gorda e Feia pela mão hábil e minuciosa de Rui
Couceiro que encontrou na voz de um narrador anónimo, o veículo ideal para
fazer chegar aos leitores as peripécias de uma aldeia onde de repente (parece,
mas não é) todos começaram a morrer. Mas este professor-narrador não conta só a
história dos que vão morrendo, conta também a história de uma região, de uma
família – a sua – e de uma comunidade que também se fez família pela proximidade
que o isolamento traz. E nessa família aceitaram este narrador-forasteiro que
com a calma a que o calor obriga e a imensidão dos campos inspira, se fez menos
pacóvio urbano e mais destemido perante a fantasmagoria rural.
Cúmplice nessa transformação estava Baiôa. Joaquim Baiôa, um
homem enrugado, quase tanto como uma uva ao sol. Um homem que vivia na inquietação
de cuidar, limpar, edificar, lutar… era a sua luta por permanecer, por não
deixar morrer a aldeia onde sempre tinha vivido.
“Baiôa vivia consciente de que a inquietação edificava,
sentia-se sabedor de que nada de mais humano existia do que o desassossego. (…)
Vivia em agonia, sentindo o desespero do fim através das mortes dos outros,
torturas permanentes para ele que ficava e não sabia por quanto tempo.”
Não era apenas Baiôa que viva em desassossego, também o
narrador se sentia em desesperos, alguns até os desconhecia.
“Em certa medida (…) valeu-me o rio. (…) O rio, que em rigor
é um ribeiro, será nestas páginas sempre rio, por absoluto merecimento de tal
promoção: não só é entidade viva em terra de mortos (…) No rio, via o meu
reflexo parado sobre as minhas ânsias correntes, duas partes de mim que se
separavam uma da outra e das reflexões deixadas nas margens.”
Não são só as reflexões que o narrador deixa nas margens. Também
lá vai ficando o telemóvel e as incontornáveis redes sociais que tanto
alimentavam os seus dias e as suas insónias, coisa crónica que o apanhava constantemente.
Ou melhor dizendo, coisa que lhe abalroava de todo as ideias e as certezas, de
tal forma que até ouvia a mãe: “Nós não somos nada, filho,”
É entre estes cenários de tormentos e mesmo fustigados pelo
calor que Baiôa e o narrador vão reconstruindo casas na aldeia enquanto compõem
as abordagens oficiais que regem os trabalhos no Observatório da Morte.
«Baiôa sem data para morrer» é isso mesmo, um peculiar
observatório das mortes em Gorda e Feia, uma incrível sucessão de
acontecimentos com a qual o narrador se viu a braços, como quem toma notas
naqueles papeizinhos amarelos com a banda autocolante a ficar-lhe presa em todos
os seus movimentos. Até que, atulhado neles, se decide a escrever este livro,
edificando assim uma homenagem às memórias da ruralidade que atravessa todos
nós.
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