Li com muito interesse, sofreguidão e até sofrimento o livro, «Menina» de Edna O’Brien, e fui em busca desse efeito quando agarrei em «Raparigas da Província», talvez porque a menina-mulher na capa, no seu ar frágil, mas de expressão forte, ao mesmo tempo ausente e misterioso, captou logo o meu interesse. E sim, ainda vou a muitos livros pelo magnetismo de uma boa capa, mesmo quando se trata de um livro de início de carreira, como é o caso deste que data de 1960.
Ambas as leituras têm quase 60 anos de diferença. 60 anos de produção literária 😉 mas o génio de O’Brien já lá está, com cerca de 30 anos.
O brilhantismo de em poucas palavras, criar imagens fortes, as personagens com valores, mas que se questionam no seu moralismo (e o dos outros), as preocupações com grandes temas, felizmente posicionando as mulheres no centro das narrativas, mesmo que expondo as suas fragilidades e condicionantes, sem que para isso os homens sejam demonizados. Muito por isto, mas por tantas coisas mais, será para breve o regresso à escrita desta irlandesa e dessa vez será com o aclamado «Pequenas Cadeiras Vermelhas».
“«Fica connosco», disse Baba, atirando a casca da banana para cima de uma bosta de vaca fresca e fazendo dispersar uma chusma de moscas em todas as direcções. Olhei para Hickey suplicando ajuda, mas não o convenci. Ninguém falou. Inclinei a cabeça e vi as moscas regressarem à bosta e instalarem-se nela, como passas queimadas sobre um bolo castanho.”
Com aparente simplicidade de rapariga do campo
Caithleen Brady tem um pensamento que é um resumo do que se pode passar à volta
dela e da sua amiga Baba e os homens que virão a cirandá-las. E O’Brien
consegue-o várias vezes com a sua capacidade de criar cenários em pequenos
parágrafos cheios de vida. Descrições vigorosas, ora contidas ora totalmente
apaixonadas e primitivas que relevam muito sobre cada personagem. Sobre cada
rapariga.
“Por ali cortava-se caminho para casa de Baba. Quando passei pela seara mais afastada parei um instante a admirá-la. Estava crescida, madura, dourada, e aqui e além, onde o cereal fora batido, as gralhas alimentavam-se. Tinha uma luz própria.»
Lembremos que é um livro mesmo do virar da década 50/60 e
num ambiente rural, mas a apreciação da Natureza é metáfora para o desabrochar
destas raparigas, a forma como podem vir a ser tocadas, admiradas, mas
também usadas. Até mesmo entre elas, numa disputa nem sempre saudável.
É na perspectiva de Caithleen que vemos esta província, um local “à espera de que alguma coisa acontecesse naquele silêncio mortal e infeliz”, onde as estrelas ou desmaiavam ou desapareciam.
Quando brilhavam era por pouco tempo!
Pareciam condenadas a desaparecer e a levar consigo os melhores momentos, como os curtos encontros com Gentleman (sim, é mesmo assim que ele se chama) ou outros homens que definirão a amizade das duas e o decorrer das suas vidas.
“Ela olhava lá para fora, para a horta, a chorar. Era aquela época do ano em que a horta não tem vida. A triste terra molhada e revolta tinha um ar desolado, e nada nela sugeria que ali voltasse a crescer alguma coisa.”
Felizmente que de muitos punhados de terra revolta, nascem
coisas, como se detivessem pequenos segredos sobre a vida, segredos que só a
terra conhece. E desses pequenos retalhos de emoção, O’Brien cria tensões que
fazem a história avançar e causa urgência no leitor para ler este «Raparigas da
província» de cabo a rabo.
Ah! Convêm dizer que por aqui ciranda um cão, Bull's eye. E
isso faz muita diferença numa narrativa 😉 porque uma mulher sozinha nunca é só uma
mulher sozinha se tiver um cão!
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