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quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

«Temporada de Furacões» de Fernanda Melchor :: Opinião

«Temporada de Furacões» de Fernanda Melchor é uma narrativa gargantuesca que se desenrola a um ritmo frenético, não só pela forma como os eventos acontecem (pelo menos até certa parte), mas pela escrita de Melchor, uma escrita de tirar o fôlego, como se subíssemos uma escadaria enorme. Interminável. Onde cada degrau é bem maior que o anterior e precisamos sempre de balanço para continuar a subir. As frases – e sim, as frases – muitas delas são de mais de uma página e narram uma enorme miséria, sofrimento e violência, mas ao mesmo tempo demonstram a riqueza bruta da escrita da autora.

A escrita é o furacão!

“(…) com os cabelos despenteados e as faces rosadas pela emoção, as mulheres da terra benziam-se porque podiam imaginá-la nua, a montar o diabo e a afundar-se na sua verga grotesca até à empunhadura, com o sémen do diabo a escorrer-lhe pelas coxas, vermelho como lava, ou verde e espesso como as mistelas que borbulhavam no caldeirão em cima do lume e que a Bruxa dava a beber às colheradas para as curar dos seus males…” 

É entre Bruxas e descendentes de bruxedos que o leitor andará perdido, entre vilarejos espremidos pelas agruras do progresso e mitos, tradições e flagelos, tantos flagelos que castigam cada personagem desde o ventre até à cova. Por isso não é de admirar que a banda sonora deste livro possa ser «La Llorona», podemos pô-la em repeat e em todas as versões possíveis. Aliás, recordada a letra desta canção intemporal, encontramos quase um resumo deste livro.

O desespero e o suplício de alguns é tão permanente que mesmo a escrita de força ciclónica da autora não chega para descrevê-los, por isso ela reforça-o com descrições da natureza que os rodeia e influencia.

“Porque de repente o céu ficou negro, encheu-se de nuvens que um vento súbito atirou contra os montes, fustigando o canavial contra o chão, e ele pensou que já não tardaria a cair a chuva, e até viu muito bem como das nuvens escuras surgia de repente um raio mudo que caía sobre uma árvore que ficou queimada em absoluto silêncio, um silêncio tão espesso que por momentos ele até pensou que tinha ficado surdo porque a única coisa que conseguia ouvir era uma espécie de zunido seco…”

Zunido esse que ecoa na cabeça do leitor e tem um efeito ensurdecedor quanto mais o livro avança e com ele paira o prenúncio de uma tragédia. A tragédia. Uma muito maior que todas as que vemos acontecer, como pequenos fogos por todo o lado que acabarão por se unir.

E somos testemunha das várias versões, por isso antecipamos diversas vezes o horror. Repetimos diversas vezes o desfecho, os abandonos agigantam-se e derramam-se a tudo.

“(…) ou pior ainda, o frasco se partiria e a beberagem derramar-se-ia sobre a terra sedenta, ou ainda mais terrível, que da escuridão surgiria um desses seres malignos que habitavam os bosques das histórias, um chaneque de rosto enrugado e cabelos ralos que lhes lançaria um esconjuro para as enlouquecer, ou para as fazer caminhar em círculos por aquele caminho escuro por toda a eternidade, entre o zumbido enlouquecido das cigarras…”

Não sabemos se foi chaneque, se a beberagem ou uma granada acabada de despoletar, mas o zunido permanece mesmo depois de fecharmos o livro. Saímos moídos. Vimos a história engordar a espinhos, calor, álcool e muita droga, vimos também o desamor, a desconfiança, a violência… as pessoas. Vemos mesmo as pessoas e é assustador ver tantas vidas desperdiçadas naquele que é um retrato que revela raiva, mas também muita angústia de quem se pergunta se a escuridão dura para sempre.

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