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quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

«Poeta Chileno» de Alejandro Zambra - Opinião

A forma como chegamos a cada livro é quase tão importante como a leitura em si. Cada vez mais acredito que as expectativas e as histórias em redor de um livro, tema ou autor, podem determinar o rumo de uma leitura. Tanto que por vezes nem lemos o que lá está. Lemos o que achámos que íamos ler. Parece complexo, mas é essencialmente o poder da influência e claro, da auto-sugestão. Quando a coisa começa a correr de outra forma, a opinião enviesa e a leitura sofre com isso.

Quando ouvi falar deste livro, pela voz de Giovana Madalosso em conversa com Mariana Alvim, a forma como a autora brasileira descreveu aquela relação fragmentada entre pai e filho, eu fiz (só pode!) todo um desenho do livro na minha cabeça com o bónus de ter um gato à mistura. Sobre o livro propriamente dito eu não fui ler nada, a recomendação sentida e entusiasta chegou, especialmente porque eu tinha lido há pouco - e gostado muito - de «Tudo pode ser roubado», portanto o livro de Alejandro Zambra só podia ser bom.

E foi! 

Só não foi mais por culpa desta impaciência que eu às vezes deixo que tome conta das leituras, mas que felizmente já se amenizou quando eu vou escrever e quando me deparo novamente com o texto, com detalhes que eu mesma sublinhei, com passagens que eu marquei, toda uma selecção de momentos que me dão um novo olhar sobre o livro. É um olhar melhor. E aí apercebo-me de que gostei mais ainda da leitura e li efectivamente o que lá estava. A citação abaixo é a prova disso.

"Devia ter começado com um balbucio, deveria ter aterrado numa qualquer imagem que lhe permitisse avançar pouco a pouco até às frases radicais e cálidas, compatíveis com a lembrança, que lhes ferviam na cabeça. Mas era como se falassem línguas diferentes. Gonzalo falava numa língua que constava exclusivamente de frases finais, uma língua que causava dano, uma língua obscura e mortífera, ao passo que Vicente falava numa língua incorrupta, de palavras hesitantes e vivas, de frases tateantes que começavam e continuavam indefinidamente."

Esta passagem também espelha bem o outro lado do livro: o da busca pela definição do que é um poeta. Porque o poeta está lá. Em desenvolvimento. Como metáfora para a descoberta da paternidade e com ela uma maturidade que Gonzalo nem sabia que procurava. E o homem-pai vai crescendo, com referências e considerações sobre ser poeta e escrever. Sobre estar à margem, tão mais à margem que o próprio acto da escrita de um romance. Ser poeta no Chile é ser poeta num país de poetas nobelizados e essa preocupação é sentida. Notória. Ser pai é difícil e ser padrasto também. 

Ainda assim o aspirante Gonzalo (a poeta e a pai) tem a coragem de levar o seu nome até à estante dos poetas, como tem a coragem de atravessar o caminho de Carla, de Vicente e da gata Oscuridad e conseguir que formem uma familiastra funcional e feliz, revelando que as relações são um somatório daquilo que cada um tem de seu e só isso pode dar. Mesmo quando parte do que tem é belo, mas esconde-o. Cala-o!

"Deviam ter-se despedido, teria sido perfeitamente possível que a coisa ficasse por ali, como um episódio mesmo à medida de ser arquivado no prontuário das noites loucas, mas Gonzalo disse que vivia três quarteirões mais à frente e ela aceitou ir com ele. (...)
Quando a alvorada o surpreendia em movimento, Gonzalo costumava pensar que havia um qualquer vínculo entre o nascimento da claridade e o próprio facto de andar, como se o caminhante fosse, de certa forma, responsável pela alvorada, ou pelo contrário: como se a alvorada gerasse o movimento dos pés no passeio. Esteve prestes a dizer isso mesmo a Carla - não tinha a certeza de conseguir explicar-lho, temia enlear-se (...)"

E enleados, lá vamos.

As palavras são muitas, as certezas e as angústias também, os livros, os autores, os poemas escolhidos... é até ficarmos perdidos, mais as considerações sobre as bibliotecas, a educação, a paternidade e o amor. Sentimentos que não escolhem se são de raça ou rafeiros, se mais fieis ou mais esquivos como os amigos de quatro patas. O certo é que nem tudo é domesticável: memórias, ressentimentos ou revelações. Certo é também que muito do que somos e trazemos na nossa vida, vem dos outros que passaram por nós e aí também estão os livros, com todas as contradições do que sentimos por eles, antes, durante e depois. 

Deste livro ficam-me ainda mais três ou quatro coisas: um poema de Carlos de Rokha e algumas palavras de Jorge Teillier, a vontade de ler «Parece uma Tolice» entre outros contos de Raymond Carver em «A Catedral» e a melhor e mais criativa explicação sobre a existência do Pai Natal.

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