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sexta-feira, 7 de junho de 2024

«O que é o quê, a história de Valentino Achak Deng» de David Eggers - Opinião


"(...) o mundo que conheci não é muito diferente do retratado nestas páginas. (...) sabíamos que as nossas histórias tinham de ser bem contadas (...) nenhuma privação ou perda era insignificante."

As palavas são do próprio Achak Deng sobre a forma que David Eggers encontrou para biografar grande parte da vida deste «lost boy» vítima da guerra civil e da ebulição étnica que vem assolando o Sudão, especialmente o Sudão do Sul, desde 1972 com a quebra do acordo de Addis Abeba, dividindo ainda mais a região e as suas diferenças étnicas e fundamentalismos religiosos e daí o título, porém, pode até ser uma metáfora para tudo o que aqui é contado, tornando difusa a linha que separa a realidade da ficção, não obstante, a violência, o abandono, o medo e as dificuldades e a enorme miséria por que qualquer povo passa perante a perseguição; ficando por vezes confuso saber quem persegue quem e porquê.

"Diz-me, onde está a tua mãe, Michael? Alguma vez a viste aterrorizada? Nenhuma criança devia ver tal coisa. É o final da infância quando vemos o rosto da nossa mãe sem expressão, os olhos baços, mortos. Quando fica derrotada ao ver simplesmente a ameaça a aproximar-se. Quando não acredita que é capaz de nos salvar."

O desenvolvimento do conflito (que na década de 90 é já a 2ª guerra civil sul-sudanesa) e o enfraquecimento da autonomia do Sul perante Cartum, a Norte e de governo muçulmano, que quis impor a lei da Sharia aos dinka e aos neurs, as maiorias étnicas, gerou um movimento de guerrilha, Exército Popular de Libertação do Sudão (EPLS), um movimento fundamental mas que também gerou as suas vítimas, essencialmente crianças-soldado. 

Fazer esta pequena e simplória introdução histórica é importante, pois ao longo de mais de 500 páginas, os detalhes históricos são imensos e é dessa forma que o relato sobre a vida de Deng ganha sentido e o cenário adensa o que é narrado, no entanto, é feito em flashbacks enquanto vive a sua vida já nos Estados Unidos e por diversas vezes, e sem conseguir controlar, os episódios do presente puxam-no para os traumas vividos entre a fuga de Marial Bai, a Etiópia e o Quénia e os seus campos de refugiados. E mesmo a vinda para os EUA tem os seus episódios traumáticos.

"Naquele momento, algo em mim se quebrou. Senti-o, não podia estar enganado. Era como se houvesse uma mancheia de fios esticados dentro de mim, segurando-me, segurando o meu cérebro e o coração e as pernas, e naquele momento, um desses fios, delgado e delicado, partiu-se."

É deste lugar, onde muitas coisas quebra e de muitos momentos de fragilidade que «O que é o quê» é feito, sem esquecer os momento de partilha, de crescimento e aprendizagem e claro, de esperança. E vemos a Natureza em bruto, cheiros e cores e o lado mais que selvagem, com os seus leões e crocodilos, também eles famintos. E as hordas de mosquitos que se banqueteavam em todos eles. A chuva e os rios. A lama. A terra sem nada até aonde a vista alcança. A solidão! A fome! A doença!

"Nunca vimos realmente o que é a escuridão até vermos a escuridão do Sul do Sudão, Michael. Não há cidades à distância, não há iluminação pública, não há estradas. Quando não há lua, enganamo-nos a nós mesmos. Vemos formas perante nós que não estão lá. Queremos acreditar que conseguimos ver, mas não vemos nada."

O medo é o alimento principal destas crianças em fuga, muitas vezes completamente sozinhas. Muitos adultos morreram, outros estão nas fileiras do ELPS, outros tentam salvar o pouco que lhes resta. A luta é constante e por vezes descamba de tal forma que a violência escalava dentro dos próprios grupos de rapazes, por motivos tão simples, mas de tamanha importância para se protegerem.

"Tinha de cravar os olhos nas costas do rapaz à minha frente e manter o meu ritmo. Abrandar a marcha mesmo que por apenas uns momentos significaria perder o grupo. Acontecia durante a noite: um rapaz perdia o ritmo ou saía da fila para urinar e tinha de chamar para achar de novo o grupo. Os que o faziam eram desprezados e por vezes esmurrados ou pontapeados. Fazer barulho poderia chamar a atenção para o grupo e tal não era desejável, uma vez que a noite pertencia aos animais."

Claro que os perigos que podiam assaltar estes rapazes não vinham só da Natureza. Os grupos armados, as milícias muçulmanas a cavalo e os próprios soldados do ELPS e até outros refugiados (divididos por castas), representavam perigos. A violações, os espancamento e os roubos, as próprias tarefas inerentes ao dia-a-dia, por comida e água ou abrigo, representavam momentos de tensão. Os raptos, as violações e a escravização das meninas são quase nada aqui mencionadas, mas as duas rapazes sim, pela vergonha associada à religião que condena a sodomia, visto como homossexualidade, embora estes rapazes não tenham qualquer culpa do que lhes acontecia. Ainda assim, o esquecimento das violações contra as mulheres e todos os outros horrores porque que passam às mãos dos grupos armados e das próprias comunidades parece assunto tabu, envolvido em explicações religiosas e de cultura tribal e dentro da questão do casamento arranjado.

"Corri noite fora. Corri porque ninguém me dissera para parar. Corri escutando a minha respiração, estrondosa como um comboio, e corri com os braços estendidos para a frente para me proteger de árvores e arbustos. Corri até ser agarrado por alguma coisa. la a correr à minha velocidade máxima e depois fui travado, encurralado como um insecto na teia de uma aranha. Sacudi-me para me tentar libertar, mas fora perfurado. Senti dores lancinantes por toda a parte. Havia dentes nas minhas pernas, nos meus braços. Perdi a consciência."

Sentiremos várias vezes o coração a saltar, tipo rolha, a ler os relatos tão bem desenhados de Eggers. Sente-se a dedicação do autor a esta história. Revivê-la com Deng e ser capaz de a escrever assim, tornou-a sua para a revelar ao mundo. E o mundo de Achak Deng foi o mundo de 4 milhões de pessoas que viveram em fuga constante das perseguições. Pelo caminho ficaram muitos que simplesmente pararam, encostaram-se a uma árvore e deixaram de lutar. Os que não morreram, desejaram muitas vezes uma morte rápida que findasse todo o sofrimento.

«O que é o quê» é uma saga, também por acompanhar a integração e adaptação de Deng aos EUA, as emoções e as frustrações de quem se sentiu invisível tantas vezes, de quem não compreendia o que o rodeava, nem se sentia compreendido (a forte acção do ELPS dividia a opinião pública e as notícias chegavam ao Ocidente). 

A certa parte tudo podia ser questionado. 

Tudo podia ser resposta ao «quê»!

"Esta consequente guerra dentro da guerra colocou os rebeldes dinka de Garang a combater os rebeldes nuer de Machar. Tantas dezenas de milhares de pessoas se perderam desta maneira e a luta interna no ELPS, a brutalidade que envolveu, permitiu ao mundo olhar com indiferença para a dizimação do Sudão: a guerra civil tornou-se, para o mundo em geral, demasiado confusa para decifrar, uma trapalhada de conflitos tribais sem heróis ou vilões facilmente discerníveis."

"- Acho que devo ir. Não devo? - perguntou-me.

- Não sei. Não sei se faz alguma diferença - respondi. - Não acreditas que a guerra possa ser ganha.

- Não sei. Já se passaram tantos anos. Não sei se alguém perceberia se a guerra fosse ganha. Como haveríamos de perceber?"

*

A partir de 2010, Valentino Achak Deng tem contribuído para a Educação e o desenvolvimento na zona de Marial Bei e foi nomeado ministro da educação em 2015.

Desde Abril de 2023 os conflitos escalaram novamente no Sudão, provocando o maior número de deslocados que o país tem registo e os números são assustadores, tal como a violência. 


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