As palavas são do próprio Achak Deng sobre a forma que David Eggers encontrou para biografar grande parte da vida deste «lost boy» vítima da guerra civil e da ebulição étnica que vem assolando o Sudão, especialmente o Sudão do Sul, desde 1972 com a quebra do acordo de Addis Abeba, dividindo ainda mais a região e as suas diferenças étnicas e fundamentalismos religiosos e daí o título, porém, pode até ser uma metáfora para tudo o que aqui é contado, tornando difusa a linha que separa a realidade da ficção, não obstante, a violência, o abandono, o medo e as dificuldades e a enorme miséria por que qualquer povo passa perante a perseguição; ficando por vezes confuso saber quem persegue quem e porquê.
"Diz-me, onde está a tua mãe, Michael? Alguma vez a viste aterrorizada? Nenhuma criança devia ver tal coisa. É o final da infância quando vemos o rosto da nossa mãe sem expressão, os olhos baços, mortos. Quando fica derrotada ao ver simplesmente a ameaça a aproximar-se. Quando não acredita que é capaz de nos salvar."O desenvolvimento do conflito (que na década de 90 é já a 2ª guerra civil sul-sudanesa) e o enfraquecimento da autonomia do Sul perante Cartum, a Norte e de governo muçulmano, que quis impor a lei da Sharia aos dinka e aos neurs, as maiorias étnicas, gerou um movimento de guerrilha, Exército Popular de Libertação do Sudão (EPLS), um movimento fundamental mas que também gerou as suas vítimas, essencialmente crianças-soldado.
Fazer esta pequena e simplória introdução histórica é importante, pois ao longo de mais de 500 páginas, os detalhes históricos são imensos e é dessa forma que o relato sobre a vida de Deng ganha sentido e o cenário adensa o que é narrado, no entanto, é feito em flashbacks enquanto vive a sua vida já nos Estados Unidos e por diversas vezes, e sem conseguir controlar, os episódios do presente puxam-no para os traumas vividos entre a fuga de Marial Bai, a Etiópia e o Quénia e os seus campos de refugiados. E mesmo a vinda para os EUA tem os seus episódios traumáticos.
"Naquele momento, algo em mim se quebrou. Senti-o, não podia estar enganado. Era como se houvesse uma mancheia de fios esticados dentro de mim, segurando-me, segurando o meu cérebro e o coração e as pernas, e naquele momento, um desses fios, delgado e delicado, partiu-se."
É deste lugar, onde muitas coisas quebra e de muitos momentos de fragilidade que «O que é o quê» é feito, sem esquecer os momento de partilha, de crescimento e aprendizagem e claro, de esperança. E vemos a Natureza em bruto, cheiros e cores e o lado mais que selvagem, com os seus leões e crocodilos, também eles famintos. E as hordas de mosquitos que se banqueteavam em todos eles. A chuva e os rios. A lama. A terra sem nada até aonde a vista alcança. A solidão! A fome! A doença!
"Nunca vimos realmente o que é a escuridão até vermos a escuridão do Sul do Sudão, Michael. Não há cidades à distância, não há iluminação pública, não há estradas. Quando não há lua, enganamo-nos a nós mesmos. Vemos formas perante nós que não estão lá. Queremos acreditar que conseguimos ver, mas não vemos nada."
O medo é o alimento principal destas crianças em fuga, muitas vezes completamente sozinhas. Muitos adultos morreram, outros estão nas fileiras do ELPS, outros tentam salvar o pouco que lhes resta. A luta é constante e por vezes descamba de tal forma que a violência escalava dentro dos próprios grupos de rapazes, por motivos tão simples, mas de tamanha importância para se protegerem.
"Tinha de cravar os olhos nas costas do rapaz à minha frente e manter o meu ritmo. Abrandar a marcha mesmo que por apenas uns momentos significaria perder o grupo. Acontecia durante a noite: um rapaz perdia o ritmo ou saía da fila para urinar e tinha de chamar para achar de novo o grupo. Os que o faziam eram desprezados e por vezes esmurrados ou pontapeados. Fazer barulho poderia chamar a atenção para o grupo e tal não era desejável, uma vez que a noite pertencia aos animais."
Claro que os perigos que podiam assaltar estes rapazes não vinham só da Natureza. Os grupos armados, as milícias muçulmanas a cavalo e os próprios soldados do ELPS e até outros refugiados (divididos por castas), representavam perigos. A violações, os espancamento e os roubos, as próprias tarefas inerentes ao dia-a-dia, por comida e água ou abrigo, representavam momentos de tensão. Os raptos, as violações e a escravização das meninas são quase nada aqui mencionadas, mas as duas rapazes sim, pela vergonha associada à religião que condena a sodomia, visto como homossexualidade, embora estes rapazes não tenham qualquer culpa do que lhes acontecia. Ainda assim, o esquecimento das violações contra as mulheres e todos os outros horrores porque que passam às mãos dos grupos armados e das próprias comunidades parece assunto tabu, envolvido em explicações religiosas e de cultura tribal e dentro da questão do casamento arranjado.
"Corri noite fora. Corri porque ninguém me dissera para parar. Corri escutando a minha respiração, estrondosa como um comboio, e corri com os braços estendidos para a frente para me proteger de árvores e arbustos. Corri até ser agarrado por alguma coisa. la a correr à minha velocidade máxima e depois fui travado, encurralado como um insecto na teia de uma aranha. Sacudi-me para me tentar libertar, mas fora perfurado. Senti dores lancinantes por toda a parte. Havia dentes nas minhas pernas, nos meus braços. Perdi a consciência."
Sentiremos várias vezes o coração a saltar, tipo rolha, a ler os relatos tão bem desenhados de Eggers. Sente-se a dedicação do autor a esta história. Revivê-la com Deng e ser capaz de a escrever assim, tornou-a sua para a revelar ao mundo. E o mundo de Achak Deng foi o mundo de 4 milhões de pessoas que viveram em fuga constante das perseguições. Pelo caminho ficaram muitos que simplesmente pararam, encostaram-se a uma árvore e deixaram de lutar. Os que não morreram, desejaram muitas vezes uma morte rápida que findasse todo o sofrimento.
«O que é o quê» é uma saga, também por acompanhar a integração e adaptação de Deng aos EUA, as emoções e as frustrações de quem se sentiu invisível tantas vezes, de quem não compreendia o que o rodeava, nem se sentia compreendido (a forte acção do ELPS dividia a opinião pública e as notícias chegavam ao Ocidente).
A certa parte tudo podia ser questionado.
Tudo podia ser resposta ao «quê»!
"Esta consequente guerra dentro da guerra colocou os rebeldes dinka de Garang a combater os rebeldes nuer de Machar. Tantas dezenas de milhares de pessoas se perderam desta maneira e a luta interna no ELPS, a brutalidade que envolveu, permitiu ao mundo olhar com indiferença para a dizimação do Sudão: a guerra civil tornou-se, para o mundo em geral, demasiado confusa para decifrar, uma trapalhada de conflitos tribais sem heróis ou vilões facilmente discerníveis."
"- Acho que devo ir. Não devo? - perguntou-me.
- Não sei. Não sei se faz alguma diferença - respondi. - Não acreditas que a guerra possa ser ganha.
- Não sei. Já se passaram tantos anos. Não sei se alguém perceberia se a guerra fosse ganha. Como haveríamos de perceber?"
*
A partir de 2010, Valentino Achak Deng tem contribuído para a Educação e o desenvolvimento na zona de Marial Bei e foi nomeado ministro da educação em 2015.
Desde Abril de 2023 os conflitos escalaram novamente no Sudão, provocando o maior número de deslocados que o país tem registo e os números são assustadores, tal como a violência.
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