Carla Pais venceu em 2016 o Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís, com este romance «Mea Culpa», agora publicado pela Porto Editora. O júri qualifico-o como “um romance realista e telúrico”, o que só por si já me chama à atenção. Sou fã desse lado telúrico e da linguagem que traz agarrada a si, a terra e as suas gentes, mais simples, talvez mais sombrias, mas também mais carregadas de matéria literária. Sou por isso fã de José Riço Direitinho ou Carlos Campaniço, que nos trazem enredos em torno da terra, da gente e das histórias que sentimos saírem da boca de velhotes que se amparam na bengala e ajeitam a boina. É dessa mesma casta que me parece que Carla Pais conseguiu tecer o seu primeiro romance e nos dá a conhecer Amadeu Jesus, homem nascido do lado de lá da ponte, o lado errado.
No mesmo ano, a autora candidatou-se à Antologia de Contos do Centro Mário Cláudio, com o conto «O Búzio do meu pai» que integra a Colectânea «A Criança Eterna» publicada em Outubro de 2017. Esse conto foi lido primeiro que este romance e deixou-me logo com um bom prenúncio para a capacidade da autora em levar o leitor até às dores dos personagens. A forma como apela ao lado mais emocional do leitor é feito através de descrições incisivas, escolhendo muito bem as palavras com que espeta o leitor e o faz avançar dentro da acção.
As dores dos personagens são, a meu ver, o principal enredo deste livro. Todos eles sufocam nos males que os condenaram a vidas cheia de segredos e ocultações. Uns por nojo, outros por medo, outros por condição social... A história tem contornos conhecidos e já ouvidos em muitas aldeias. Os abusos que os perpetuadores julgam escondidos pela geografia mais recôndita são, infelizmente só ao fim de muitos anos, revelados pelos medos mais próximos do julgamento final. O julgamento e a condenação, muitas vezes fruto da opinião e olhares alheios, alteram as vidas drasticamente. São esses injustiçados que Carla Pais acolhe e poetiza.
"O vento é uma mão que guia os pés cegos
A esposa do senhor presidente vem outra vez nua pela rua. Traz um lenço de linho branco suspenso na ponta dos dedos, abre muito a boca, mas o grito não sai, não se ouve nada para além do vento que bate na bainha do lenço e sacode a mágoa dos olhos. A cobardia da boca pede silêncio e ela cede, fica presa naquele longo refreio que se instala na contracurva do medo. Desta vez a rua está deserta e a taberna fechada, porém há uma enorme sombra a cobrir a praça, uma sombra que fuma charuto e envenena o ar, mas ela já não tem medo, nem frio, nem nada. Tem apenas o nojo a subir a garganta e então tosse, tosse para que as palavras e os gritos embolados na vesícula biliar se escapem na debilidade de um soluço, na contracção de um músculo que a faça chorar."
*
Uma aposta PORTO EDITORA.