sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

«Os anos doces» de Hiromi Kawakami :: Opinião


Depois de ter ficado rendida ao ambiente que a escrita de Kawakami é capaz de criar em «Manazuru» (opinião aqui) tive de ler «Os anos doces» e perceber que a autora consegue criar todo um outro ambiente mas na mesma em torno de uma mulher e dos laços que cria. 

"Talvez porque com ele tivesse a impressão de viver com maior autenticidade...
Era uma impressão curiosa, comparável àquele sentimento estranho que nos leva a não retirar a cinta de um livro recém-adquirido."

Se em «Manazuru» que é um livro cheio de luto, mistério e solidão, conferindo uma aura de enorme fragilidade a Kei, a personagem feminina, que ao se debater com o desaparecimento do marido vive uma maternidade dividida e um regresso à casa materna; em «Os anos doces» Tsukiko é uma mulher independente, mas confusa com as exigências feitas à mulher e com as quais ela não se identifica propriamente, além disso, despreza inclusive algumas delas, talvez aquela que dá todo o ambiente ao livro: o prazer de comer e beber. 

"Felizmente tinham desistido de me pressionar para que me casasse e deixasse de trabalhar. Mas sentia-me pouco à vontade. Era mais ou menos como quando se experimenta roupa feita à medida: há sempre peças que ficam curtas, outras compridas (...) espantada, uma pessoa despe-as, mas constata, ao colocá-las à frente do corpo, que haviam sido realmente talhadas no tamanho certo. Enfim, sentia uma coisa desse género nas alturas em que estava com a família."

«Os anos doces» representam um período de bons encontros comensais entre Omachi Tsukiko e o seu antigo mestre de Japonês enquanto se envolvem numa relação peculiar mas sempre entregue aos prazeres da boca. «Os anos doces» é um livro que faz crescer água na boa.

"Traga-me, por favor, almôndegas de sardinha e fatias de rabanete .
- Eu queria um rolo de pasta de peixe e alcachofras chinesas. E fatias de rabanete também, se faz favor - pedi, sem querer ficar atrás dele. O cliente da mesa ao lado pediu algas..."

Matsumoto Harutsuma é o mestre, um homem mais velho do que Tsukiko e que exerce uma força subtil mas intensa sobre ela, bastava-lhe um sorriso: "(...) Havia algo de diabólico por detrás daquele riso. Algo que lembrava o riso de um miúdo que acaba de esmagar uma formiga." E dessa forma, com trejeitos simples e quase infantis, o mestre prendia-lhe a atenção e o pensamento.

O tempo vai avançando desde a época da apanha dos cogumelos, ao festival das cerejeiras ou à estação das chuvas, entre muitas garrafas de saké, inúmeras formas de comer tofu e uma ou outra iguaria que nos fazem crescer água na boca: "(...) beringelas frescas laminadas e salteadas, cobertas com molho de soja com aroma de gengibre. Couve macerada no miso..."

«Os anos doces» são um retrato delicado de uma relação difícil de definir, onde há, sem dúvida, uma exaltação do prazer de comer e uma comparação entre amor e comida, talvez na complexidade de definir o gosto de cada um.


quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

«Pão de Açucar» de Afonso Reis Cabral - Opinião




"(...) soube que me oferecia tudo o que eu procurava: a colisão de mundos em perigo, o conflito dos intervenientes com ele no centro, a problematização do corpo, as consequências da miséria, essa palavra que já não se usa mas ainda se aplica, o equilíbrio entre o desespero e a esperança. Quer dizer, nada de especial. 
A partir daí, pesquisei os acontecimentos a fundo.
Li o processo judicial sem parar, (...)"

É em conversa com um interveniente das zonas sujas, Rafael Tiago, que Afonso Reis Cabral parte para esmiuçar a ideia central deste «Pão de Açúcar». A morte violenta de Gisberta, facto verídico (Porto, 2006), confere a este romance o lado mais negro de uma sociedade que alimenta e faz crescer crianças que se tornam adolescentes desajustados e desapegados de valores ficam muito aquém dos desejados. 

"(...) A bicicleta ainda não se tornara real, faltava dá-la a conhecer. Assim é com desgraças e felicidades, partilhamo-nas para mediar a emoção. Mas então pensei, qual alegria qual tristeza, era só sucata despejada com outras porcarias. Calei-me porque achei ridículo, angustiante também, que o lixo de um fosse o entusiasmo de outro."

É no meio do lixo e da doença que uma amizade frágil e intermitente se dá, satisfazendo necessidades de atenção de ambas as partes e reciclando os restos de uma bicicleta, entretanto, entre visitas, a violência e os ânimos exaltam-se e resultam na morte de um transsexual seropositivo e sem abrigo.

"Ela meteu a ponta do indicador no arroz, experimentou um bocado, e depois já punha a mão inteira, já dizia «Está quente!», engolindo com gozo e fazendo os gemidos de quando o ser humano é bicho. (...) Ávida de limpar o lado dela, não reparava na minha cautela. 
Apesar de contente por vê-la satisfeita, a imagem da doença babada para a panela fez-me nojo. (...)
Contudo, o nojo persistia como as tareias que se apanham na infância e nos deixam o corpo dorido até ao fim da vida."

O cenário não podia ser mais degradante e é em si uma personagem que sublinha a critica social, alertando para um problema que persiste em tantas cidades de norte a sul do país; prédios abandonados aos quais os interesses económicos ou os imbróglios jurídicos não deram seguimento e que são focos promotores de miséria. 

"(...) O esqueleto não dava hipermercado. (...)
As ratazanas foram as primeiras. Ainda as obras decorriam e já elas se aninhavam nos cantos. (...)
À noite, os ocupantes dormiam em barracas improvisadas com caixotes, toros, cartões, plásticos e colchões. Melhor dito, dormiam em lares com toques de luz a conquistar o cimento. A ruína sobrevivia à frustração e sublinhava-se: era só gente a dormir.
(...) Para ser útil, não bastava abrigar pedintes, segredos, porrada, troca de seringas, orgasmos e gestos brandos. Não, para ser útil, havia que inaugurar um parque de estacionamento."

O livro é rico nas cenas de convívio entre os jovens e no Pão de Açúcar com Gisberta, mas também dá saltos temporais que levam o leitor a conhecer as duras realidades que ali chocam. Os capítulos oscilam entre o presente de Rafael como mecânico, o lar/abrigo onde os jovens foram criados e a pensão onde Gisberta se prostituía, bem como momentos específicos de algumas daquelas vidas. 

"A determinado momento, a Gi passou-lhe a mão pelo cabelo e ele aceitou a carícia com uma naturalidade que eu nunca igualaria. A naturalidade de quem lida desde pequeno com travestis. Para mim foi como levar uma flechada na cabeça: ser assim afagado era mais do que muita gente podia esperar da vida."

Entre alimentar Gisberta e auxiliar Rafael no arranjo da bicicleta, outros episódios acontecem entre os restantes jovens, ainda assim, e mesmo o leitor sabendo o fim, não parece existir nada de decisivo para que a violência ocorra e persista dia após dia. Talvez as circunstâncias, o acaso, a revolta, a desesperança e a solidão... Talvez. Mas isso e muita falta de carinho.

"Dali veríamos as coisas de outra maneira, os problemas ficariam na cave. Os dela, a morte que a comia por dentro, que a obrigava a abdicar a cada dia; os meus, saber que a necessidades de a ajudar só fazia sentido por ambos não termos mais ninguém."



terça-feira, 18 de dezembro de 2018

«O coração é um caçador solitário» de Carson McCullers :: Opinião



«O coração é um caçador solitário» de Carson McCuller é um livro carregado de solidão!

Ao longo de mais de trezentas páginas acompanhamos a tristeza e a solidão de John Singer, mudo mas ouvinte e confessor de um leque vasto de outras personagens, entre elas: Antonapoulos, o grego, também ele mudo; Mick, uma rapariga em debate com a chegada da idade adulta; Jake, bêbado e reaccionário laboral; o doutor Coupland, um médico negro ou Biff Brannon proprietário do New York Café.

"(...) alguns homens optam por se distanciarem dos seus sentimentos, e assim evitam ser consumidos pelos mesmos. Projectam-nos noutro ser humano ou mesmo numa ideia ou num conceito."

"O restaurante ainda não estava cheio. Àquela hora, os homens que haviam passado a noite a pé cruzavam-se com aqueles que tinham acabado de acordar (...). Não se ouvia barulho, nem as pessoas a conversar, pois toda a gente estava sentada sozinha. A desconfiança mútua entre os homens (...) conferia a todos a sensação de alienação."

É entre projecções e desconfianças que vamos conhecemos as histórias tristes destes personagens, todos eles sós, taciturnos e fechados sobre seus dramas, que normalmente são os dramas comuns e intemporais, mas a extensão de dada a cada drama e a densidade que McCuller confere a cada personagem é feita com descrições breves mas extraordinárias; capazes de viciar o leitor naquele enredo, onde cada personagem parece entrar numa competição pela vida mais miserável. 

"O proprietário leu o bilhete e lançou um olhar atento e cheio de tacto a Singer. Era um homem de estatura mediana, com uma barba escura e espessa que a parte inferior do seu rosto parecia de feita de ferro. (...) Todas as noites, o mudo passeava sozinho pelas ruas da cidade (...). Gradualmente, a sua agitação foi dando lugar ao cansaço (...).
O seu rosto revelava a paz taciturna típica das pessoas profundamente tristes ou profundamente sábias."

No entanto, noutras breves descrições McCuller eleva a importância de pequenos gestos que salvam o quotidiano desses mesmos personagens tristes. Não os priva do sofrimento, mas fá-los acreditar, a eles e a nós leitores, na possibilidade de redenção pela amizade, mesmo que por breves momentos. Exemplos disse são as descrições dos carroceis ou das noites em que Mick procura escutar a música que sai das outras casas. E o melhor é que McCuller cria estes cenários em uma, duas frases breves. 

"Essas noites eram secretas e eram o período mais importante do Verão inteiro. Na escuridão, Mick caminhava sozinha como se fosse a única habitante da cidade. (...) Quando ia até às zonas mais abastadas da cidade, todas as casas tinham rádio. As janelas estavam abertas e ela escutava a música na perfeição. (...) escondia-se na escuridão à escuta."

Distinguir entre pessoas tristes e sábias ou revoltadas e sábias e se são pequenas ou não as conquistas diárias de cada um (quando as há) torna-se irrelevante quando compreendemos o que preocupa cada um e vemos problemas sociais de hoje: exploração laboral, racismo, desigualdade de género e a solidão que é uma doença tão potente quanto as outras, mas muito mais difícil de identificar, e aí o livro é ainda melhor e dá às personagens as várias máscaras que a solidão pode ter: revolta, insegurança, melancolia, luto ou até a homossexualidade. 

"(...) o mudo era o seu único amigo. Passavam imenso tempo juntos, sentados no quarto silencioso a beber as cervejas. Ele falava e as palavras reflectiam as manhãs escuras passadas na rua ou sozinho no seu quarto. As palavras ganhavam forma e eram proferidas com alívio."

Já tendo referido tanto do que este livro aborda ainda falta referir a alienação própria e inerente a cada personagem, o peso da deficiência ou a violência contra os negros e a fé na palavra de Deus como única salvação. Mesmo assim tudo isto é pouco. Há mais, muito mais, camuflado nas palavras depositadas uma amizade silenciosa com o surdo-mudo Singer. 

"Ela falava e ele não compreendia. (...) Era como se a sua cabeça fosse a proa de um navio e os sons fossem a água que batia contra o mesmo, para depois seguirem em frente. Ele sentia necessidade de voltar atrás, à procura das palavras que já haviam sido proferidas."

Mesmo que neste livro tudo seja dramático, escuro, sofrido, miserável e cheio de arrependimentos, a mestria com que Carson McCuller escreve, cura qualquer ressentimento deixado no leitor pelo destino das personagens. É um retrato duro, mas poderoso, da condição humana. 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

«A história de uma serva» de Margaret Atwood :: Opinião



«A história de uma serva» livro que deu origem à tão badalada série televisiva que em 2017 ganhou um Emmy na categoria de Drama foi escrita em 1985 e, perante tal galardão Margaret Atwood afirmou que a sua narrativa especula sobre um futuro assustador é ainda mais assustador se assumirmos que a mesma tem contornos de documentário pelas circunstâncias sociais asfixiantes que marcam a actualidade. 

A história que a Serva narra é a pouca que lhe é permitida numa sociedade onde quase tudo é proibido às mulheres, até o uso do seu próprio nome. Porém, os patamares sociais distanciam muito as mulheres desta sociedade totalitária e fortemente religiosa. O regime instituído espartilha um quotidiano resumido às tarefas domésticas e a certas práticas sociais restritas, onde cabe às mulheres o papel que os homens interpretam das escrituras: casamento, manutenção do lar, procriação e obediência ao marido. 

Atwood criou assim um casulo preso a raízes puritanas e cerimoniosas, onde as Servas vivem mais restringidas do que as demais mulheres; são elas as responsáveis pela descendência, são elas as mães da nação de Gileade. Porém, não são elas as mães que darão colo ou afecto, elas são as Servas, a sua missão é parir, até lá, são o depósito da semente (e esperança) dos comandantes, os grandes senhores e líderes de Gileade. As Esposas zelam pela família, controlam Servas e Martas (basicamente criadas) e organizam pequenos festins comensais para celebrar sementes bem lançadas e partos com nados vivos, para além de tomarem parte na Cerimónia mensal. Rituais que chegam a ser chocantes aos nossos olhos de hoje, mas que, com traços verdadeiros, têm origem em tradições do fanatismo religioso. Assustador é o mínimo que se pode pronunciar e que o leitor sente em certas passagens mais descritivas.

A narrativa assume o pensamento fragmentado de June, a Serva protagonista, com saltos temporais tão necessários para a sua saúde mental, como para o leitor perceber como se chegou aquela sociedade tóxica e recente. Ao mesmo tempo mostra a luta quotidiana de uma mulher, outrora livre e independente, numa tentativa de se adaptar a esta nova realidade e provar o seu valor de mulher fértil, ou seja, engravidar do Comandante a quem serve. 
Provar ou não o seu destino: engravidar; faz a sua vida ter valor e continuar integrada na sociedade ou ser desterrada para as Colónias: um local envenenado pelos erros (ambientais?) do passado, onde só se vai para trabalhar e morrer vítima de radiação. 

Todo este relato tem um silêncio constrangedor e de falsa resignação e dele resultam inúmeros códigos e significados partilhados entre as Servas e as Martas. Nos seus olhares, cheios de desconfiança mas também de empatia, desenvolve-se um sistema paralelo e secreto que visa salvar estas mulheres e contrariar a profunda estratificação da sociedade.

No resguardo que é obrigatório a estas mulheres vê-se o quanto este livro é anti-utópico e com uma voz reivindicativa, contrariando teorias de felicidade máxima e concórdia entre os cidadãos de um regime totalitário. A denúncia que aqui se faz é feroz e reduz o totalitarismo a um único termo: primitivo. E faz dele estandarte para denunciar igualmente como é primitiva e bárbara a violência e os condicionalismos exercidos sobre as mulheres. Para além disso, há um traço ténue mas sempre presente, de uma critica social pesada e facilmente transferidas para os dias de hoje. E assim se justifica a intemporalidade da escrita de Atwood.

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«A história de uma serva» de Margaret Atwood é uma das melhores leituras de 2018!

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

PASSATEMPO 1 -- "Natal vegan e saudável"


PASSATEMPO 1 

"Natal vegan e saudável" em parceria com Um Curso em Sabores


Oferta de 2 livros com mais de 250 receitas vegan: 

sopas e entradas; molhos, marinadas e temperos 
saladas, massas e quiches
sumos e smoothies 
veggie burgers 
indiano e mexicano
superalimentos
doces e sobremesas 

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REGRAS PARA PARTICIPAR
Siga o link para o post no facebook 


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O passatempo decorre até ao final do dia 16/12/2018.
Os livros serão enviados por Um Curso em Sabores.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

«O Poder» de Naomi Alderman - Opinião



«O Poder» parte do pressuposto de inversão do poder institucionalizado, ou seja, a transferência do poder dos homens para as mulheres. Mas não só. As mulheres têm uma energia electrizante, capaz de alterar o significado mais alargado que atribuímos ao poder. «O Poder» que aqui lhes brota das mãos, talvez metáfora para a forma como Jesus fazia milagres, é uma força extrema capaz de torturar, invocando uma dor excruciante capaz de levar à morte. 

Esta força devastadora, como todas as forças, abre possibilidades para os seus detentores, que abençoados por esse poder podem praticar o bem e atribuir papeis mais justos ou decidir-se pelo mal e provocar uma reviravolta total na natureza das coisas. E é precisamente essa reviravolta e inversão que é o mote do livro. O poder total está do lado feminino e também anos de revolta e desigualdade, resta saber se o Mal, antes de erradicar a desigualdade, irá antes provocar um certo caos e violência, às vezes necessárias para despertar mentalidades. 

"A forma do poder é sempre a mesma; tem a forma de uma árvore. Das raízes às pontas, o tronco central ramificando-se e voltando a ramificar-se, alastrando sempre com dedos cada vez mais finos e exploradores."

A forma como esta distopia é desenvolvida e o recurso que faz a algumas imagens, levou-me a pensar em outros livros. Acho-o inseparável do «A história de uma serva» de Margaret Atwood (os traidores de género ou os homens necessitarem de uma guardiã feminina), quase um livro-resposta, vingando a submissão a que as mulheres são expostas como servas. Mas o lado que remete ao ancestral, à origem de certas gravuras que vão sendo reveladas, fez-me pensar em «A Fenda» de Doris Lessing, livro esse cheio de feminismo e de como as mulheres devem ter sempre papeis decisivos. 

Claro que todo o enredo é uma típica luta entre o Bem e o Mal e o livro assume essa luta de forma muito actual e cinematográfica recorrendo para isso a personagens bastante jovens e de diferentes meios sociais. Facilmente conquistará uma adaptação para série televisiva. No entanto e talvez pelo tom juvenil ou por estar constantemente a ligá-lo a outras referências tive dificuldade em apreciar a leitura e em acabá-lo. As gravuras e o lado de possibilidade histórica tribal captaram a minha atenção, mas o enredo em si não. Deverá ser um livro bastante interessante e desafiante para ser lido pelos mais jovens e até em contexto escolar.


«Salvação» de Ana Cristina Silva - Opinião


"Não grito menos, talvez grite mais baixinho, não choro menos, mas talvez as minhas lágrimas se tenham tornado menos silenciosas. Pela aritmética passaram seis meses desde a morte de Sofia, pelas minhas contas não passou nem um dia."

"Salvação" é um livro de recolhimento na morte e de superação pela escrita. Ou do processo de criação de personagens com as quais se reconstrói um sentido para a perda, o luto, mas também o perdão.

"Eu e David Negro recolhemo-nos na morte da mulher amada e tornámo-nos um só. Esta absorção de um no outro explica que tenha conseguido escrever um capítulo num único mês como se a minha personagem tivesse pegado na minha mão e redigisse por mim as frases."

Colonizado pela dor, o narrador deste livro dedica-se a preencher os seus dias com a escrita de um romance, um novo livro imposto pelo mulher que acabou de falecer, um pedido feito estratégia para que ele supere o luto.
Dividido em pouco mais de doze meses, acompanhamos os capítulos de "O Livro", escrito também sobre o luto e a perda de uma filha, onde o protagonista David Negro expõe as suas mágoas, memórias e reflexões. Ao mesmo tempo, em capítulos que são as fases de luto do narrador, vamos sabendo mais da sua vida com Sofia e do seu dia-a-dia lutando pela superação.

"Desde que a minha mulher morreu o meu luto tornou-se num dilúvio que não deixa espaço para mais nada. A dor não é um local iluminado (...) Mas neste momento, sinto que a jornada de David Negro se transforma num dever que vai para além do pedido de Sofia, ainda que esse percurso não esteja, nem nunca possa estar, separador dela. Até porque é minha intenção apontar o dedo ao deus a que ela tanto rezou e aprisioná-lo numa rede de acusações."

No longo corredor que é o luto e no qual não é possível passar a correr, o narrador embrenha-se numa complexa rede de memórias, no sofrimento e na culpa, sem esquecer acusações e dúvidas, onde Deus tem um papel decisivo, mas a História e o seu curso também. A forma como "O Livro" percorre séculos, o rumo dos eventos chega até aos actuais e as inquietações ancestrais são equiparadas às de hoje: as crises de fé e de valores e as consequências no ser humano. E assim, desta forma, Ana Cristina Silva cava ainda mais fundo o fosso do abandono e da culpa, retratando muito bem o lado emotivo dessa pressão psicológica.

"Continuo a falar com a minha mulher, mas lentamente a morte de Sofia vai deixando de ser a medida de todas as coisas. (...)
Se a dor tivesse assas e batesse, diria que o seu movimento se foi tornando mais suave (...) Porém, o sofrimento do luto não voa, apenas pulsa por dentro (...) tanto assim que só vivo para me afundar na memória dos tempos felizes."

Se retirássemos os capítulos que dizem respeito à escrita de "O Livro", a maneira como a autora relata a perda e a dor é de tal forma emotiva e insistente que traz o leitor para o sofrimento do narrador, tornando a leitura quase aflitiva. E quero com isto dizer que é extraordinária essa capacidade, pois não acho que caia na repetição, mas sim aumentando a densidade psicológica do personagem.

"(...) Em cada intervenção, ele alcança um novo patamar de profundidade, frases empolgadas, quase poéticas - como se existisse uma estética da morte - (...)"

Também seguindo uma estética da morte, associada à própria estética de fé e crença, "O Livro" transforma-se num romance histórico que denuncia e relembra o fanatismo religioso do século XVII e o liga aos eventos violentos actuais para os quais o próprio escritor se sensibiliza quando o luto lhe permita se ligar novamente à realidade que o rodeia: a morte no espectro do fanatismo jihadista.

"Há um momento em que tenho o mais absurdo dos pensamentos: talvez estivesse a ver repetidamente o mesmo grupo de pessoas a sofrer o mesmo atentado (...) Como se aquelas pessoas não tivessem individualidade, como se se tivessem convertido num borrão desfocado de um ecrã, como se a morte se tivesse tornado uma banalidade."



quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

«Jogos de raiva» de Rodrigo Guedes de Carvalho :: Opinião



Rodrigo Guedes de Carvalho escreve como quem atalha pelo mato. Muitas frases curtas como passos decididos mas que a falta de trilho obriga a recuar e a escolher outro sítio onde pisar. Repetem-se palavras, gestos, passos. Nessas insistências, uns quantos arranhões, dilacerando aqui e ali as pernas com que quer percorrer o resto do caminho. A mata é densa e os obstáculos exigem esforço e persistência. A mente, entregue mais aos pensamentos do que ao que palmilha, avança e reage, conforme o que o terreno pede. E se isto for metáfora suficiente para descrever, pela rama, a escrita do autor, não é suficiente para explicar o tamanho do enredo e das personagens deste livro.

"É tão difícil resistir quando nos elogiam, quando nos querem tudo o que em nós é inteligente e desconfiado se verga por vezes à cauda do pavão."

«Jogos de raiva» fala do mundo inteiro visto da janela jornalística deste externo ocidental, na mesma medida gigantesca que cava fundo um fosso familiar. Raiva, ódio, desenraizamento, memórias ou a incerteza de todas as mudanças e falsidades actuais, são apenas alguns dos grandes motes deste livro; e a forma como esses temas se transformam em sentimentos e nos entram pela casa adentro também. 
O romance expõe um olhar crítico e ácido denunciando como a actualidade afecta e condiciona e claro, molda a vida familiar. Isso tudo sem esquecer a equação complexa que é a vida por si só e o peso do passado. 

"Dividido por secções, para melhor organização do consumidor, o jornalismo só tem verdadeiramente uma área, que engole o mundo inteiro: nós. (...) 
O jornalismo, na verdade, não é realmente necessário para que o mundo gire e progrida, (...) nós viveríamos sem ele. (...) O jornalismo é só um espelho na parede, não é o cimento que sustém a casa. (...) O jornalismo não é água ou comida ou abrigo ou medicamentos. Só existe porque queremos saber do resto de nós. Somos animal de grupo. Queremos espelho e o jornalismo pendura-se à nossa frente."

As reflexões presentes no livro podem ser interpretadas à luz do tema específico ou como metáfora alargada a várias áreas da vida familiar e em sociedade. O tom crítico nunca se perde, bem como a tensão e o enigma em torno da família Sereno: "O problema dos segredos é que não são biodegradáveis. Não desaparecem só porque os amarramos a uma pedra pesada e os lançamos ao rio." 

Também muito presente no livro, são as referências constantes a Virginia Woolf, Oscar Wilde ou Tim Burton, talvez como pedras-de-toque para reforçar a qualidade e o sentido das revelações que conferem reviravoltas na vida das personagens. Ou para aferir a necessidade das obras de artes na nossa vida. Farão falta as pinturas, os livros, a música ou filmes? Fará falta o livro «O Fantoche» que Francisco Sereno irrompe a escrever? 
São essas reviravoltas que podem estar imiscuídas nas brechas que o jornalismo tem e onde esconde meias verdades, ou nas redes sociais, cheias de zonas cinzentas que dificultam a divisão entre o bem e o mal ou na relação entre pai e filho, que discutem como se a vida não fosse finita e o fim não chegasse de forma inesperada.

O inesperado acontece várias vezes ao longo do livro, com pequenos retornos ao passado, precipitando o leitor em conclusões que saberá logo a seguir serem erradas. E esse é um jogo ainda maior que Rodrigo Guedes de Carvalho estabelece com os seus leitores. Joga com perspicácia, aguçando a curiosidade do leitor. No entanto, existe uma passagem, quase logo ao início que espelha muito bem o que o autor engendrou para este livro: "Há uma brutal exigência na psiquiatria e são poucos os que a antevêem quando se decidem pelo ramo. Ser, entre todos, um curador de almas. Vestir uma túnica e abrir os braços. Deixai vir a mim os depressivos, os dementes e esquizofrénicos, os ansiosos e os bipolares. Pretende-se do que resgata almas um primado de razão rodeado por irrazoáveis."

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

«Se esta rua falasse» de James Baldwin :: Opinião

Alfaguara, 2018


Com mais de 40 anos desde a publicação original, «Se esta rua falasse» (1974) é a primeira obra de James Baldwin (1924-1987) a ser publicada em Portugal, um ano depois de termos tido a possibilidade de assistir ao documentário "Eu Não Sou o Teu Negro" e a obra do autor ganhou projecção bem como os temas por ele abordados: o racismo e a complexidade das classes sociais, juntamente com questões de homossexualidade. 

"A mente é como um objecto que apanha pó. O objecto não sabe, tal como a mente não sabe, por que razão o que se agarra a ele se agarra a ele. Mas, quando algo te atinge, não desaparece..."

A crítica refere-se a este livro como um romance-manifesto, expondo a injustiça, o racismo e a desesperança de uma família negra quando um dos seus é preso injustamente. Falsamente acusado de violação, Fonny é encarcerado e a sua namorada adolescente, Tish, descobre estar grávida. A prisão separa-os e impede-os de prosseguir as suas vidas. No entanto, há mais a separá-los, o racismo e a discriminação social numa Nova Iorque da década de 70 que talvez pudesse ser a de hoje e isso confere ao romance a intemporalidade dos grandes livros, seja por esse ambiente social ou pelo eterno enredo amoroso de amor incondicional.

"Acho que deve ser raro duas pessoas conseguirem rir e fazer amor ao mesmo tempo, fazer amor porque riem, rirem porque estão a fazer amor. O amor e o riso vêm do mesmo lugar: mas poucas pessoas lá chegam."

Ambas as famílias lutam, cada uma à sua maneira e com os seus próprios demónios, para entender a seu papel na sociedade, na família e até na segregação mascarada de tolerância e integração igualitária, no entanto, a acusação e a dificuldade de defender Fonny prova-lhes que a luta pelos Direitos Civis está na ordem do dia. Tal como hoje continua e é denunciada por movimentos como Black Lives Matter, para os quais o nome do autor tem sido chamado, especialmente depois da adapatação de alguns dos seus textos para o cinema.

No entanto, Baldwin não expõe, de maneira usual, o tema do racismo, interessa-lhe antes expor a magnitude da família e demonstrar a igualdade dessa forma; nos relacionamentos que todos estabelecemos, nos pensamentos e memórias ou preocupações que todos temos; fazendo um retrato do íntimo , semelhante a qualquer um de nós, independentemente de cor, origem ou patamar social.

"Pais e filhos são uma coisa. Pais e filhas, outra.
Não adianta tentar compreender este mistério, tão longe de ser simples como de ser seguro. Não sabemos o suficiente sobre nós mesmos. Acho que é melhor sabermos que não sabemos, porque assim podemos crescer com o mistério, à medida que o mistério cresce dentro de nós. Mas, por estes dias, toda a gente sabe tudo, e é por isso que tanta gente anda tão perdida."

Outra particularidade de Baldwin é o tom da sua escrita, de um encadeamento de frases simples e reduzidas, rapidamente saem parágrafos introspectivos, nos quais facilmente lemos a actualidade da sua escrita: "(...) e a chave para a ilusão é a cumplicidade. O mundo vê o que deseja ver ou, quando as coisas não estão a correr bem, o que lhe dissermos para ver: não quer saber quem, nem o quê, nem porquê."

O que torna mesmo pertinente a publicação de autores como este, é a densidade psicológica da sua escrita. Através de uma linguagem acessível a todos, contribuí para a compreensão do outro, mostrando a pressão psicológica inerente ao ser humano que luta por ser aceite e por se compreender a si mesmo.

"As pessoas fazem-nos pagar pelo aspecto que temos, que é também o aspecto que julgamos ter, e o que o tempo inscreve num rosto humano é o registo desse choque frontal."


sábado, 1 de dezembro de 2018

Opinião "Um dia em Dezembro"

Imaginem uma sala cheia com todas as pessoas que já passaram pela vossa vida. Pensem naquela pessoa, sim aquele tipo especial, aquele que nunca esqueceram, o vosso calcanhar de Aquiles, a vossa pedra no sapato, a primeira cara ou nome que sem controlo vos surge na mente quando confrontados com a ideia do "de sempre e para sempre". Lembram-se do dia em que se conheceram? Lembram-se do dia em que perceberam que nunca iam deixar de gostar dessa pessoa? 
Pois, é assim este "Um dia em Dezembro"



Corria 2008 a passos cansados para o Natal quando Laurie vislumbrou na paragem do autocarro aquele que a fez acreditar que o amor à primeira vista não acontece só nos filmes. A indecisão do momento "vai não vai" fez com que os seus caminhos seguissem sentidos diferentes e foram precisos 12 longos meses de procura por toda a cidade de Londres para encontrar O Rapaz do Autocarro. Onde precisamente ? Com o braço à volta da mais do que amiga quase que irmã de Laurie, a espectacular Sarah.
Ninguém merece!

Num voto de silêncio comum e crente de que o outro não se recorda daquele instante fugaz mas marcante, Jack e Laurie tornam-se conhecidos, amigos, confidentes mas marcam sempre a traço forte a linha limite que não poderiam nunca ultrapassar até ao dia em que a vida os faz baixar a guarda e admitir que aquele momento existiu e que por muito que aconteça ele não desapareceu com os anos, por mais que eles passem.

"Caminhas ao de leve pela vida, mas deixas pegadas profundas que outras pessoas têm dificuldade de preencher"

(Opah lembrou-me o Love, Rosie!)

Uma década de evolução pessoal, de amor, de dor, de lições de vida, de infelicidade e também de grandes alegrias.
Este livro conseguiu agarrar-me com força ao ponto de me esquecer do sono e seguir com a leitura noite dentro.
Tem uma característica que me agrada muito, a escrita tem um cunho humorístico muito bom, especialmente nos momentos contados pelo ponto de vista de Laurie.
Oh e como eu adoro romances de natal. Não sou louca pela quadra mas gosto bastante de histórias que se passam nesta altura, que o diga a Netflix e os filmes natalícios que gosto bastante de ver. Este era perfeito para isso 😍
É verdade que este livro não se passa exclusivamente no natal, na realidade, talvez apele ao meu gosto inexplicável por romances impossíveis, aos amores e desamores que se prolongam ao longo de anos....mas vocês já sabem isso, os meus livros preferidos são sempre assim.

Por falar nisso, ando com tantaaaa vontade de reler "Um dia" :)
Um dia...até lá, vamos lendo as novidades.
Que me dizem desta?

Deixo-vos com música.


It weighs heavier on one's heart 
I could tell right from the start that 
Sweet ones are hard to come across 
Well, there is more than meets the eyes 
Heart like yours is rare to find 
Someone else's gain will be my loss


Uma novidade