terça-feira, 30 de abril de 2024

«Três» de Valérie Perrin :: Opinião

Quando nos dizem que um livro tem uma personagem que é parecida connosco a curiosidade fervilha e a leitura é inevitável, certo?

Foi o que aconteceu com «Três» de Valérie Perrin e também por ser um livro que vem com banda sonora e ter música faz toda a diferença. 

Ainda assim, para as aventuras de Nina, Adrien e Étienne e claro Virginie 😉 faltaram algumas como, «She lost control», uma ou outra incontornável dos Depeche; ou então, basta colocar a masterpiece dos Nirvana, «Nevermind» e deixá-lo em repeat.

“And for this gift I feel blessed
Our little group it's always been
And always will until the end”


Ainda assim, desde o início, a minha cabeça cantarolou muitas vezes a eterna «Le Temps De L'amour» de Françoise Hardy, muito por culpa desta introdução:

“Há as lembranças, o presente e as nossas vidas anteriores que mudam de cheiro. Quando se muda de vida, muda-se de cheiro.
A infância tem o do alcatrão, de uma câmara de ar (…) do desinfetante das salas de aula, (…) da cola que faz fios nos dedos…
A adolescência tem o odor da primeira passa (…) do uísque-cola e das caves transformadas em salas de baile, (…) de restos de detergente numas calças de ganga.
(…)
E depois há o verão. O verão pertence a todas as lembranças. É intemporal. É o seu cheiro que é mais duradouro. Que se agarra às roupas. Que se busca toda a vida (…) O verão pertence a todas as idades”

É com esse cheiro a verão e tardes de piscina, cervejas ao cair do sol e as primeiras descobertas, que mergulhamos nesta história que decorrerá ao longo de mais de 30 anos e que Perrin muito bem engendrou para agarrar o leitor, a querer conhecer mais do Arsène Lupin da cábula, da miúda com os dedos negros do carvão e do miúdo franzino, “um cartucho de tinta vazio” receoso do novo ano lectivo. E é precisamente com o arrancar das aulas e os desafios que isso coloca aos miúdos que nos apaixonamos pelas peripécias dos Três Bês 😉


“- Eu só vou fazê-lo quando estiver apaixonada…
- Tu és rapariga. Não é a mesma coisa – declara Étiene.
- Porque é que não é a mesma coisa? – admira-se Adrien.
- Porque as raparigas são românticas. Sobretudo a Nina.
- Ela veio-se? – pergunta Nina.
Étiene enrubesce. É a primeira vez que os três falam de sexo. A primeira vez que Nina faz uma pergunta tão frontal, que lhes parece mesmo brutal.
- Não sei muito bem… Mas estava a arfar.
Rebentam de riso em uníssono. Um riso de crianças que já não desejam muito ser crianças. Mas, apesar de tudo, a infância é boa.
Apanhados entre rebuçados e o futuro. Entre as patetices e a mudança de voz. Entre os raios de bicicleta a que se colam pedaços de cartão para fazerem barulho e os sonhos de grandes distâncias percorridas de mota.”

É entre estas sonoridades tão próprias da infância e da entrada na juventude, tão agradáveis recordar que, é-nos impossível não sorrir e sentirmo-nos perto destes três. Mas mesmo sem sentir esta identificação geracional, a escrita e a sensibilidade ao contar que Perrin domina, não deixará ninguém indiferente.

“Até ao dia em que conheceu Nina e Étiene, Adrien era alguém que não deixava marcas no papel. Um cartucho de tinta vazio. Tinha sempre a sensação de ter nascido sem cor, completamente transparente. Até Nina e Étiene, por muito que premissem os botões, a folha de papel permanecia virgem. Nina e Étiene devolveram-lhe os seus cinco sentidos. E mais o sopro. E seguramente a esperança. Eis porque lhes era tão ligado.”

Um sopro e a esperança, é Louise. Tal como são o ar que se respira, uns para os outros, pelo menos até o acaso lhes saquear as ilusões e redefinir as vidas: “por vezes vivemos coisas que imaginámos ou receámos tanto que, quando ocorrem deveras, não as vivemos, ficamos fora dos acontecimentos.”

“O meu corpo está morto há anos. Uma pele que não é tocada morre. Um corpo que não é observado torna-se invernal. As camadas de frio sobrepõem-se. Neves perpétuas. Deixa de haver outras estações. Deixa de haver desejo. Deixa de haver esperança no regresso. Fica imobilizado no passado, fixado algures. Não sei onde. Tem medo. Tenho medo. O meu corpo já não tem presente.”

Parte da beleza deste livro, é ter descrições que, embora sejam de uma determinada fase da vida de um deles, podem aplicar-se a todos, mais tarde ou mais cedo, e esse entendimento de que os três passam por coisas iguais, mesmo a acharem-se totalmente diferentes, acontece perante os olhos do leitor com uma mestria delicada e hábil, acrescentando sempre mais profundidade às personagens. E arrancando uma risada ao leitor.

“Étiene poderia tê-los denunciado, dar um soco a Adrien e um tabefe à sua irmãzinha, mas não fez nada (…). Pelo menos Louise não andava a sair com parvos. E não lhe parecia descabido que aqueles estivessem juntos (…). Sempre calados ou a falarem baixinho, a lerem sem ninguém os obrigar, a nunca perderem as estribeiras, a pousarem os seus olhos de pescada frita sobre a «beleza do mundo».

Boas leituras, minhas pescadas fritas 😉

terça-feira, 16 de abril de 2024

«Amor estragado» de Ana Bárbara Pedrosa :: Opinião

"Um dia, depois de um bagaço, desabafei com um amigo, que tinha sido burro e era padre. Coitado, aquilo dava-me pena. Passava os dias no meio de velhas beatas e nunca ia saber que o único milagre que existe está num corpo de uma mulher a dizer que não quer mais."

Que se sublinhe "num corpo de uma mulher a dizer que não quer mais"

Embora seja uma premissa mais do que errada, abusiva, violenta, tóxica e transtornante, essa é a premissa para se entrar na cabeça do Manel, e por sua vez, na voz que a Ana Bárbara tão acutilantemente criou para nos destabilizar com esta história desestruturante e destruidora de tudo o que pode ser uma relação e uma família, menos amor, desejo, compreensão, empatia, cumplicidade ou sequer intimidade. Tudo o que aqui nos surge perante os olhos e nos assome à garganta como asco e vómito, é uma dura e triste realidade. É a realidade de muitas famílias, mulheres e filhos. Uma realidade que pode estar debaixo do nosso nariz, na porta ao lado, no quarto por baixo do nosso, na nossa família, na casa do nosso irmão. É a realidade e nós fazemos parte dela. Por isso, metade do asco, da aspereza e da realidade está-nos debaixo das unhas e isso é feito com uma mestria brutal e desarmante, conseguida nesta escrita crua e estragada de Ana Bárbara.

terça-feira, 2 de abril de 2024

«Lições de Grego» de Han Kang - Opinião

Não aprendi grego, mas como se costuma dizer, vi-me grega para chegar ao fim deste romance labiríntico e enigmático de Han Kang. Não chegam a ser duzentas páginas, mas o leitor fica perdido entre as aulas, o mutismo, as ideias complexas, a dificuldade de apanhar o fio à meada. Chega a faltar o ar!

É que as vozes mudam e o leitor tem alguma dificuldade em perceber quem é quem, embora se perceba que o peso do outro e de outras fases da vida sejam tão ou mais importantes que o presente, em que um homem, o professor de grego, está a cegar e uma mulher, a aluna, encerrada no seu mutismo, não toma a palavra. 

Nesse aspecto, a narrativa está bem conseguida, ela não fala e quer sumir-se para dentro de si e da escuridão das suas roupas negras, então a narração é assumida por um narrador que tudo sabe. Que fala por ela.

“A única pessoa que sabia que a sua vida estava violentamente dividida em duas era ela própria. As palavras que anotava na parte de trás do diário contorciam-se por vontade própria, formando frases estranhas. De vez em quando essas palavras metiam-se no sono como espetos…”

No caso do professor, ele quer falar, precisa falar, então é-lhe dada voz enquanto recorda a fuga para Alemanha e o regresso à Coreia do Sul, um pai, uma mulher…