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quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

"Pequenos Delírios Domésticos" (contos) de Ana Margarida de Carvalho :: Opinião




Este livro é um como álbum, composto por várias músicas, começando por esta "Pequenos Delírios Domésticos" de Sérgio Godinho, e se pararmos na estrofe:

"Vou até bater ao fundo
depois venho respirar, o ar
que me coube nesta vida
volto ao ponto de partida
(...)"

É talvez o melhor resumo para quase todos os contos que li.
Desses pego em três deles e escrevo:

Entrei num táxi numa qualquer avenida, esbarrei o olhar numa estranha perspectiva.
Era uma nuca conhecida. Sem confiança no percurso, dei voltas e voltas, estremunhei e sonhei, lá fui misturada em delírios-desvarios, numa aventura centrifuga.
Acordei à terceira buzinadela, havia chegado.
Impaciente. Ele impaciente, ralhando qualquer coisa que não decifrei.
A porta rústica escancarada, como uma cabeça aberta, uma entrada para o sótão das memórias.

Os contos de Ana Margarida de Carvalho são preciosos!

Fazem o leitor divergir da realidade e entrar em momentâneo delírio. O pequeno delírio de querer fazer parte daqueles contos. O lado fabuloso de um bom conto é fazer crer nas possibilidades ilimitadas de o alterar, dar-lhe continuidade, mexer e remexer-lhe nas personagens, inventar-lhes passados, dar-lhes futuros de uma linha ou ligá-los a um outro personagem vinte páginas mais à frente.

Ler contos é divagar em como lhes acrescentar um ponto, pois a mim, um conto parece sempre uma peça inacabada ou com rachaduras, pequenos veio por onde podemos acrescentar uma linha.


«Filho Único» de Rhiannon Navin :: Opinião



Entramos por este drama adentro fechados num armário, escondidos como quem fez asneira ou quem não quer ser apanhado. Tacteamos no escuro, mantemos o silêncio e quase não respiramos. Podia ser uma brincadeira, mas não é. Começamos nesse armário com medo e seguimos por outro armário para combater o luto e a vida que se complica para este menino apenas de seis anos. 
É pelos seus olhos que vamos conhecendo o que lhe aconteceu na escola, mas também em casa, numa luta renhida entre um pai e uma mãe perante a dificuldade de enfrentar o futuro. "Um cego a andar" é o título de um capítulo e uma frase que faz muito sentido nesta forma de colocar um menino a narrar a sua vida e a dificuldade que é encarar os enigmas e as metáforas que são as decisões e as frases dos adultos.

É no descodificar desse mundo que o rodeia que os capítulos ganham imenso e apaixonam o leitor, prendendo-o à acção, perguntando-se o que se seguirá e onde ficaremos especados a olhar, imaginando a situação, ilustrando-a na nossa cabeça e já com uma lágrima a se abeirar, até porque Zach usa algumas referências de adultos para ilustrar as palavras novas que aprende ou as actividades extra que faz na escola. 
Com Matsuo Bâshó ele quer aprender a beleza das pequenas coisas e dos gestos simples. 
Com Frida Khalo aprende a dar tons fortes ou fracos para colorir sentimentos, pois acha que as palavras não chegam.
Com livros que lê sozinho aumenta o seu dicionário pessoal para compreender o mundo dos adultos e de lá tira lições que deseja ensinar aos pais. 
Dos filmes do Hulk pensa no bom que seria ter aquela força verde, mas ao mesmo tempo deseja saber conter a raiva que esmaga tudo.

Uma nova missão e um outro rumo aparece com a palavra "comiseração", Zach quer saber o que significa e o que deve fazer com ela; daí até à "missão urgente"ainda rolaram muitas lágrimas, mas Zach sabe que, tal como os seus heróis, terá de ser corajoso e seguir adiante. 

«Filho Único» é um livro para se ler de rompante e sentir tudo o que está lá para ser sentido. 


quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

«Uma boa morte» de Hans Küng :: Opinião


Importa começar por dizer que Hans Küng é teólogo e que João Paulo II o proibiu de dar aulas de Teologia em 1979, no entanto, a este teólogo rebelde ninguém o tem impedido de pensar, seja sobre a eutanásia e os dogmas do catolicismo, mas mais que tudo fala de fé, da sua fé: "(...) mas eu tenho a convicção de que a morte não me levará ao nada, mas a uma realidade última e será um caminho interior, por assim dizer, levando à realidade mais profunda, a partir da qual, então, descobrirei uma nova vida."

São questões teológicas, mas também muita introspecção sobre a sua própria forma de avaliar a dignidade humana, a doença terminal, o sofrimento atroz e claro, o lado ainda mais pessoal que são as mortes de entes queridos que marcam e moldam a forma de olhar a morte como uma fase da vida.

“A vida transforma-se, não nos é tirada (…). Não se trata de um acabar nem, muito menos, de um perecer, mas de um consumar: a pessoa finita entra no infinito.»

Küng também aborda a mudança de opinião, que com o passar do tempo há quem defenda a prática do suicídio assistido, como quem ao ver essa fase da vida mais próxima de si, muda de opinião: "(...) perante a incerteza e a ignorância completas do que há para lá da morte. A monstruosidade da morte operada por acção própria surge perante a alma com uma atitude ameaçadora. Os sentimentos mudam [...])"

Os sentimentos mudam, é verdade de certeza, bem como a experiência pessoal quando confrontados com a dureza e a desumanidade da doença, aquando dos cuidados paliativos, e desses Küng também fala, e pergunta se a vida deverá ser isso, essa perda de dignidade e sofrimento tal que leva alguns ao suicídio, alguns, os que conseguem. Porém, há imensos presos a camas, totalmente dependentes, incapazes de pôr fim à vida mesmo que assim o desejem. E os familiares, os cuidadores: o sofrimento deles, a responsabilidade e até a culpa. 

Tais questões que levanta e procura responder, desejando um aprofundamento maior, no amplo sentido de se compreender que a eutanásia é também uma "assistência na passagem para a morte", aliás a ética mundial tem vindo a formar um quadro de princípios éticos e morais que assenta precisamente sobre esse acto como um acto de responsabilidade pela vida digna.

Falando de religião, prática médica, Alzheimer, a decisão de jejuar até morrer ou esclarecer a etimologia da palavra "eutanásia", são tudo temas dentro deste relato muito acessível e lúcido que espelha, essencialmente, a vontade de um homem em chamar à atenção para o sofrimento insuportável dos doentes e da família, tentando tornar o tema menos controverso. 

"Muitas pessoas fazem actualmente a experiência de uma despedida alongada pelos sucessos ambivalentes da medicina no que se refere ao prolongamento da vida na doença. Mas, quando o ser humano se despede na passagem para a morte, quando se interrompem todas as suas relações exteriores, extinguindo-se por vezes órgão após órgão (...) entra numa nova relação, oculta para nós. Vita mutatur, non tollitur. A vida transforma-se, não nos é tirada."