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sábado, 28 de novembro de 2020

“Uma Pequena Sorte” de Claudia Piñeiro :: Opinião

 


"A noite passada sonhei que regressava a Temperley." 
Podia começar assim esta narrativa que está povoada de regressos, mas não. Claudia Piñeiro escolhe a Nobel, Alice Munro, para introduzir o leitor à dor aguda, mais tarde crónica, que não matará, mas povoará para sempre as vidas bafejadas por pequenas sortes.

"(...)E aprenderás alguns truques para a aliviar ou suprimir, tentando não destruir o que só à custa de todo este sofrimento obteve."                                     
Alice Munro, «As crianças ficam»
                                                                                                                            
María Elena Pujol, hoje Mary Lohan, vive duas vidas separadas por uma tragédia que desde cedo se anuncia. A sua vida silenciosa oscila entre compassos do melancólico Oblivion e uma energia prestes a explodir como em Libertango de Piazzolla. 

"Eu estive muito tempo calada, sinto-me confortável no silêncio (...). A ausência de palavras enunciadas é um habitat que conheço desde sempre, o meu estado natural (...) E sinto-me desconfortável a falar do clima sem motivo (...). Talvez seja essa a verdadeira origem da minha disfonia crónica: a obrigação social de ir contra o meu estado natural de silêncio."

O silêncio tornou-se o seu lugar favorito, uma condição apropriada para a dor despojada e eterna que sente. Uma dor habitava por um palco vazio, escuro e infinito, num tempo expandido sem mais palavras do que aquelas que se repetem na sua memória e na caligrafia que reescreve uma história mas não lhe altera o fim. 

"No entanto, estive sempre atenta, alerta, receosa de que um dia pudesse converter-me noutra coisa e fazer-lhe mal. Uma mulher obscura, como a minha mãe (...) mas também não se concretizou. (...) Mas a vida pôs aquela circunstância no meu caminho (...) não alcancei a nota necessária. (...). A maternidade está cheia de pequenos fracassos."

A vida está cheia de pequenos fracassos, como também de pequenas sortes, coisas tão banais como o lugar que nos calha no avião ou a pessoa que se sente ao nosso lado. Ou conhecermos alguém numa festa, onde nem sequer era suposto estarmos. Pequenos detalhes que alteram o rumo dos nossos dias. 

"O tempo ensina-nos que não existe só uma definição para o amor. (...) muitas vezes uma pessoa não se apaixona pelo outro, e sim por si mesmo apaixonado. Ou pelo que implica estar apaixonado (...) Uma pessoa quer estar apaixonada, e então está. Estávamos. "

“Uma Pequena Sorte” de Claudia Piñeiro funciona muito bem como thriller, tendo como base um drama familiar que se cruza com muitas referências que exploram dor, solidão, desespero, infortúnio e até suicídio, sabendo que do outro lado da moeda estão, família, maternidade, paixão, tango, livros e sorte. 

Agradou-me também ideias transversais que se cruzam com outras leituras recentes, quando Piñeiro refere a ideia de nos apaixonarmos pela ideia de estarmos apaixonados e não pela pessoa, recordando-me «Apneia» que explora a ideia de não amarmos a pessoa, mas a imagem com que ficamos por termos tal relação; ou ainda a ligação com «Olive Kitteridge» quando se aborda o suicídio como uma morte dedicada. 


sexta-feira, 27 de novembro de 2020

“Olive Kitteridge” de Elizabeth Strout :: Opinião

 «Olive Kitteridge» valeu um Pulitzer a Elizabeth Strout e valeu recentemente à HBO uma série fabulosa. 

                                    

A narrativa, dispersa por mais de uma dezena de contos, cruza vários personagens, todos eles residentes numa vila costeira, meio idílica, onde todos se cruzam mais ou menos de perto com Olive ao longo de mais de 25 anos e é dessa forma que vai surgindo, peça a peça, a imagem da temível professora do liceu, da educação que deu ao seu filho e da sua relação com Henry, o marido gentil e dedicado, que é também o farmacêutico da vila.

"Lembrou-se novamente de John Berryman. Salva-nos de espingardas e suicídios paternos [...] Misericórdia! [...] não primas o gatilho senão, a minha vida toda, sofrerei pela tua ira. (...) não, Kevin não suportava a ideia de uma criança descobrir o que ele próprio descobrira: que a sua mãe sentira uma necessidade tão grande e tão urgente de devorar a vida, que deixara as portas dos armários todos da cozinha salpicados com restos da sua corporeidade."

A escrita é cativante, mas dolorosa, retratando solidão e desamparo, mas também a incompreensão da vida quando olhada em retrospectiva e quando a única saída parece estar no cano de uma espingarda que porá fim à angústia e nos devolverá para junto dos que mais amamos. Podemos até dizer que o suicídio é um fio condutor entre histórias, um motor bizarro que mantem alguns deles em andamento.

O cruzamento de desespero sufocado e silencioso com da crueza como é descrita Olive, contracena brutalmente com a interpretação feita por Frances McDormand. E talvez seja isso que faz toda a diferença, agigantando a Olive que imaginámos conto atrás de conto.

Ler este livro e logo de seguida assistir aos quatro episódios que compõe a série é como que dar continuidade ao enredo ou uma maior consistência a algumas cenas que ficam a pairar na cabeça do leitor, quando também nós fomos alvo dessa esponja húmida de tinta.

"Depois disso, foi como uma pintura a esponja, como se alguém tivesse encostado uma esponja húmida de tinta a escorrer no interior da sua mente e só mesmo o que a esponja pontou, umas quantas manchas aqui e acolá, tivesse retido aquilo de que ela se lembra do resto dessa noite."

Os sentimentos e as emoções, tal como a memória, estão manchados e fragmentados, perdidos no meio de uma depressão longa, mas são o que mais surpreendem em Olive, ela não é simpática ou amável, mas é empática e observadora, conseguindo por vezes ajudar em situações limite, ela ama e é frágil, mesmo quando todos a julgam forte e insensível e parte dessa transformação é redentora e convocam no leitor um profundo apreço pela personagem. 

"(...) O céu estava cinzento e pesado. Olive sentiu uma perturbação diferente das outras vezes. Provinha de Christopher, sim. Mas ela parecia presa entre as pinças de um remorso intratável. Um embaraço profundo e pessoal inundou-a, (...) Foi a vergonha que lhe fustigou a alma, como os limpa-pára-brisas diante de si: dois grandes dedos negros e compridos, inexoráveis e rítmicos no seu castigo."

O que fustiga o leitor, tanto no livro como na série é a angústia da depressão e uma franqueza fria, desapegada, que parecem estar inevitavelmente de mãos dadas, e talvez por isso, mais para o final da sua vida Olive pondere a culpa e a vergonha. Vai até mais longe e pensa em castigo e isso abre um fosso enorme sobre a compreensão e aceitação da doença e da coragem que é precisa para viver. 


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

«APNEIA» de Tânia Ganho ::Opinião



"«Trazei-me uma espada», ordenou Salomão, na Bíblia, para resolver a contenda entre duas mães que reclamavam o direito a uma criança. «Cortai o menino vivo em dois», disse o rei, «e dai a cada uma a sua metade.» Adriana perguntava-se se, algum dia, algum deles voltaria a ser inteiro." 


«Apneia» é um mergulho profundo no mar bravo da batalha desumana e desequilibrada em que se pode tornar um divórcio e consequente processo de custódia, tornando as crianças em alvos e meros números que constam em processos judiciais. Vidas perdidas nas burocracias complexas de um sistema desajustado e minado por uma surdez prepotente.


"Os homens-inquisidores lembravam-lhe Alessandro: esmiuçavam, chafurdavam e não se contentavam com silêncios, respostas sucintas. Não compreendiam que ela preferia manter as caixas fechadas, as portas trancadas, a vida devidamente etiquetada e arrumada.
Isolou-se, tornou-se um eremita,/ abrindo a porta apenas/ para uns quantos animais especiais"
Anne Sexton, «The Witch's Life»

Adriana socorre-se muitas vezes das palavras de Anne Sexton para com essa poesia confessional denunciar o quanto se sente dilacerada e vive pela metade uma vida em sobressalto. É mulher e mãe no limiar das suas forças, lutando para pôr fim a uma relação abusiva e violenta com Alessandro. No entanto, o divórcio ardiloso, por parte do marido pode ditar uma vida órfã do filho Edoardo, tornando-a numa pessoa ainda mais despedaçada.


"Tinha noção de que chegava ao psicólogo com o coração cosido no avesso do pulso e não havia ética nem lei que o fizesse voltar para dentro do peito."


Adriana dá corpo a uma montanha de sentimentos e ao anunciar de uma tragédia que é todo o processo aqui descrito, alertando para a realidade tenebrosa que vivem as vítimas de violência doméstica e os seus filhos. Apanhados num jogo emocional enorme, onde a manipulação é proporcional ao grau de violência e a uma solidão em crescendo. E o divórcio litigioso apenas surge como mais uma colecção de distúrbios, desconfianças e descrença num sistema, também aqui denunciado, seja com a cena escabrosa do advogado como o lado perverso de certas leis.


"(...) Eram dois bichos solitários, mas as suas solidões tinham formado uma família. E assim como Edoardo continuava a traçar o pai, a mãe e o filho, quando o enésimo psicólogo lhe pedia para desenhar uma família (....)


Antes da consulta, a psicóloga convocou Adriana e interrogou-a. Refez a sua vida?», perguntou, e ela fixou-a, cansada, lembrando-se de uma frase de Meg Wolitzer: «As relações eram um luxo concebido para pessoas cujo as vidas não estavam em crise.» Não, nem lhe parecia provável, mas o uso do verbo «refazer» interpelou-a.”


Refazer tornou-se uma palavra tão importante como superar. Ambas faziam parte da cura e da busca incessante pela normalidade, onde o trauma não fizesse ruído e o medo e a dor fossem devidamente desarmadilhados.


“Quanto mais lia a poesia de Anne Sexton e de Sylvia Plath, maior era o seu desejo de explorar também a escrita, a par com a pintura (…). Queria abordar o seu sentimento de impotência (…)
Uma das qualidades da pintura de Paulo Rego que a atraía era a expressão dos pesadelos íntimos. Em resposta à pergunta «porque pinta?», Paula Rego respondera: «Para dar rosto ao medo.»


Dar rosto ao medo e voz às vítimas foi o que conseguiu a autora, Tânia Ganho, com um relato que chega a ser chocante, trazendo para o leitor o peso da revolta e da humilhação. Expõe assim, o sofrimento atroz que se esconde em infinitas páginas de processos que se arrastam ao longo de anos, aumentando o sufoco e a impotência em que vivem as vítimas.

Tânia Ganho teceu, meticulosamente, um romance imponente sobre a violência conjugal e parental, sem esquecer de o dosear com um breve amor simples e descomplicado que cabia numa cama estreita, algures numa ilha isolada e pelas pinceladas de arte e literatura que distraem e nutrem o leitor. E até com isso passa uma mensagem, a de que a violência e a alienação parental são transversais a todas as camadas sociais.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

«Bartleby, o Escrivão» de Herman Melville :: Opinião

 


Não sei se Bartleby é a personificação do ócio, da letargia ou do respeito pelos seus limites e vagareza peculiar ou se o relato de Melville é um apelo à passividade e à desaceleração, já nos idos de 1853, mas o que é que certo é que este pequeno tratado da inutilidade essencial, como disse Borges, releva uma ironia enorme cada vez que o personagem diz: "prefiro não fazer."

Apesar da aspereza com que certos colegas o julgam, Nippers, Turkey e Ginger Nut são personagens aos quais já nos habituámos e fez-me pensar na velha expressão:"cócó, ranheta e facada", levando um pouco ao extremo o quanto a noção de grupo pode influenciar as equipas e a tomada de decisão. No entanto, um personagem maior, é o próprio narrador e patrão, pois há nele, como que uma admiração e curiosidade, ao analisar e descrever o quão Bartleby é uma surpresa e até digno de contemplação. Ainda assim, o peso do trabalho, a repetição e o aborrecimento não são por ele analisadas, mas sim a tentativa de adivinhar e escrutinar o carácter e o futuro de Bartleby.

Essa curiosidade pauta todo o conto, bem como a ideia de deixar o destino entregue nas mãos do acaso, negando constantemente continuar a pertencer a uma engrenagem que despersonifica. Tudo ganha uma nova perspetiva mais para perto do final e um arrebatamento maior ainda num quase posfácio, dando a sugestão de uma falha na comunicação, fruto da má gestão, de linhas trocadas ou simplesmente por atraso na volta do correio. E talvez surja no leitor uma revolta, uma epifania, um desejo de também ele dizer "prefiro não fazer", mas mais cedo, muito mais cedo ainda. 

«Bartleby, o Escrivão» será sem dúvida um texto intemporal, pejado de interpretações e resignificados, expandindo consoante seja a busca de quem o lê. 

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«O atribulado Caminho para a Felicidade» de Isabel Losada - Opinião

 


O mote é simples e concreto: ser absurdamente feliz. No entanto, é absurdo! Não o querer ser feliz, mas ser ab-sur-da-men-te feliz, o que parece logo uma felicidade sem limites e tal caminho só pode ser atribulado e é por isso que a autora, Isabel Losada, regressa com este relato, dando assim continuação ao peculiar: «Quero ser absurdamente feliz" 

"- A verdade é o exacto oposto daquilo em que acreditamos. Pensem nisso."

Pode ser uma fazer muito traiçoeira quando se anda em busca de um guru, uma cura, uma luz ou som pacificador ou um toque mágico com poderes curativos, tudo o que nos traga paz real, felicidade. Ou seja, se dizemos a nós mesmos que estamos infelizes, será a verdade o oposto disso mesmo?

Ou andamos a fazer as questões erradas?

Aprendendo a formular melhor as suas dúvidas ou a espraiar e redirecionar as vibrações e energias, Losada recorrer a um sem fim de práticas e de mestres: meditação, palestras motivacionais, Feng Shui e Bazi, o PNL de Antony Robbins ou a Risoterapia de Patch Adams, até ao culminar da alucinação com ayahuasca no Peru, a autora leva-nos a uma viagem atribulada, mas holística e imensa e que nos desperta para um leque variado de formas de terapia. Isto sem esquecer, os livros e os filmes, de onde destaco:«Norwegian Wood» de Murakami ou o multipremiado «Juno», produzido por John Malkovich.

"Sinto-me muitíssimo em paz depois deste tempo com Mooji. Estou revigorada (...). Voltei a pendurar no quarto a imagem da onde gigante (...). Quando olho para ela, lembro-me de Mooji a dizer que, quando tiramos a mente do caminho, conseguimos viver com a consciência de que não somos apenas uma onda, mas todo o oceano."

Mesmo assim, sentir-se um oceano não foi suficiente para Losada, foi preciso tomar um atalho para observar melhor a sua consciência, serenar a sua mente hiperactiva e claro, satisfazer a sua curiosidade pelos rituais xamânicos de cura e partir à aventura imersiva no elixir peruano.

Mas o que eu mesmo gostei neste livro, foi de andar de volta de algumas referências e regressar a Murakami quando a certa parte: "- O sofrimento é uma atitude, reflecte a forma como uma determinadas pessoa vive a sua experiência (...) A dor não precisa ser sofrimento. (...) para descrever uma corrida de resistência."

E esse regresso a Murakami, fez-me pensar numa frase atribuída a Carlos Drummond de Andrade: "Envelhecer é inevitável, ficar velho é opcional." e entre pesquisas e frases lá se volta novamente para a literatura:

"Já sofri por muitas coisas na minha vida, 
mas a maioria delas nunca existiu."
                                                                                     Mark Twain