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segunda-feira, 28 de novembro de 2022

A Balada de Adam Henry de Ian McEwan :: Opinião


“Ela tinha poder para retirar o filho a um pai cruel, e por vezes fazia-o. Mas retirar-se a si própria a um marido cruel? Quando estava fraca e inconsolável, onde estava o juiz para a proteger? (...)

O rosto do marido estava tenso quando ele encolheu os ombros e saiu da sala. Ao ver as costas dele afastarem-se, ela sentiu o mesmo medo frio. Se não fosse o receio de ser ignorada, teria chamado por ele. O que poderia dizer? (…) e depois o silêncio a abater-se sobre o apartamento deles, o silêncio e a chuva que não parava havia um mês.”

Ian McEwan tem uma capacidade muito própria para, em poucas palavras, dizer o indizível e dar vitalidade ao não-dito que chega a sufocar com os silêncios gritantes a cada frase. A solidão, a melancolia se entranha em eventos complexos, causa de contornos irreparáveis que mexem escorregadiamente com as emoções e os sentimentos dos seus personagens. E por conseguintes os dos seus leitores.

“Aqueles eram pensamentos novos, aquela era a forma como o verme da suspeita infestava o passado.”

O passado, a suspeita, os fantasmas dos problemas que se tentam camuflar com a passagem do tempo... esses medos frios autodestrutivos que quando nos confrontam nunca chegam sós. Um impossível nunca chega sozinho, diria Saramago e neste enredo de McEwan é bem visível.

Fionna May é essa mulher de poder, que encabeça um desfile de adultos importantes e importunos, cheia de si e das suas conquistas, uma juíza do Tribunal de Família, cujo os casos mediáticos, de causas duríssimas, têm infligido lanhos profundos no seu casamento já votado a uma certa surdez conjugal, mas não tão profundos quanto a traição de Jack cravou na sua auto-estima e energia.

A amante mais nova que ela não anteviu. O pedido descabido por uma relação aberta. Uma amante nova, ardente e voluptuosa enquanto ela envelhecia, vendo nos milímetros paranoicos, ainda assim mensuráveis, dos tornozelos que engrossavam, da cintura que se avolumava ou “os cantos da boca a começarem a descair em busca de uma expressão de constante recriminação. Muito razoável numa juíza de cabeleira a fitar o advogado de cenho franzido. Mas numa amante?”

É isso que Fionna se sente, uma juíza de cenho franzido, embrenhada em processos complexos, condicionada por questões éticas e religiosas, onde a ciência e a lei ora se cruzam ora caminham para lados opostos e é preciso sentenciar para impedir um mal maior.

Quantos males menores deixou Fionna pelo caminho, não como juíza, mas como mulher, como esposa?

Adiamentos, remorsos, culpa e amargura dão uma capa de frieza, pragmatismo e poder a uma mulher que carrega arrependimentos que despertam agora atitudes que a surpreendem perante um novo caso, o de Adam Henry. A pressão e o mediatismo do caso e as escassas horas que separam Henry de uma sentença de morte. Caso o tribunal não decida contrariamente aquela que é a sua vontade, suportada na devoção e ensinamentos religiosos, Henry sucumbirá por falta de uma transfusão de sangue.

“De novo a religião (…). Todo o circo a ser montado, mas tão lentamente (…) como um balão de ar quente, torto e mal amarrado.”

Perante a assombrosa singularidade do caso (também porque Adam Henry é um adolescente excepcional e cativante, apesar de condicionada à educação ininterruptamente religiosa monocromática), a crueldade da doença, a dualidade religião/ciência e a fragilidade e autocomiseração que a assaltam e deixam indefesa nesta fase da vida, Fionna sente-se amordaçada entre convicções, dúvidas e arrependimentos antigos que esbarram em toda uma teatralidade de uma máscara que está cansada de usar.

“O seu tom emocional, como ela por vezes o designava e que gostava de controlar, era uma completa novidade. Um misto de mágoa e de indignação. Ou de nostalgia e de fúria. Queria que ele voltasse e nunca mais o queria ver. A vergonha também era uma componente.”

“(...) adiando o momento do regresso, perguntando-se de novo se aquilo que perdera não seria tanto o amor quanto uma forma moderna de respeitabilidade, se o que temia não seria tanto o desprezo e o ostracismo, como nos romances de Flaubert e Tostói, mas a piedade. Ser alvo da compaixão geral era também uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres pensava. Ser apanhada a representar o seu papel num estereótipo revelava mais mau gosto do que uma falta de moral.”

McEwan é exímio ao escrever sobre sentimentos e sobre todas essas energias que confluem para as relações humanas, ainda assim, consegue uma mistura muito equilibrada entre temas polémicos, casos reais, critica social, reflexões muitos actuais e sensações e sentimentos, tudo milimetricamente organizado num tom poético extremamente vívido.

“Em vez disso, ficou ali, indefesa perante o momento. A sensação de pele contra pele anulou qualquer possibilidade de escolha.”

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

«28 livros para te encontrar» de Ali Berg e Michelle Kalus - Opinião

 


E se para encontrar o amor tiveres de alargar os teus horizontes literários, aceitas?

«28 livros para te encontrar» de Ali Berg e Michelle Kalus tem no original um título bem mais curioso: «The Book Ninja», porque Frankie e Cat, amigas de longa datas, espalham livros, camufladamente, nos comboios e dobram-se e torcem-se em aulas de yoga, contando equilibrar a insanidade hormonal, que por motivos bem diferentes, pauta os dias de cada uma delas. 

Por isso, entre hormonas, remédios literários e analgésicos em forma de croissants, as duas amigas de longa data têm planos para encontrar (ou manter!) o amor das suas vidas, gerir uma livraria, ler clássicos e outros tantos livros repetidos e claro, fazer yoga, tomar smoothies verdes e estragar tudo isto com episódios açucarados, fobias a bananas, encontros amorosos clandestinos e discussões que contrariam teorias filosóficas da grande ;) Samantha Jones. 

Posto isto e encarando que por vezes erramos no calor do momento, apatetando algumas decisões, ambas as amigas aprendem que mesmo caindo em casulos de tricô 😜 as quedas doem e as nossas decisões têm eco nas vidas dos que nos são mais queridos. 

Por isso, enquanto o amor não acontece ou fica atrapalhado entre asanas mais difíceis, Frankie e Cat distribuem sugestões de leitura, acreditando que os livros reflectem aquilo que já existe dentro de nós e que discuti-los devia ser o melhor caminho para se percorrer um encontro, mas mesmo assim: «como pôr todos os livros no mesmo cesto?»

E tu, estarias disposta a alargar a tua lista de leituras para encontrar o amor? 🙃😍

Por aqui, tomei algumas notas:
- (In)Fidelidade: Repensar o Amor e as Relações de Esther Perel 
- O fardo do amor de Ian McEwan
- Eu Dou-te o Sol de Jandy Nelson
- Um homem em busca de um sentido de Viktor E. Frankl
- Estamos todos completamente fora de nós de Karen Jay Fowler
- Middlesex de Jeffrey Eugines

E sublinhei alguns que já constam da "lista":
- Emma
- A sombra do vento
- A menina perdida & achada
- O ódio que semeias





terça-feira, 15 de novembro de 2022

«O Jogo do Mundo» de Julio Cortazar :: Opinião

o tal capítulo 7 de Rayuela

"Toco a tua boca. 

Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.

Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água."

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A transcrição deste excerto visa apenas demonstrar a beleza e a perfeição de um capítulo que, só por si, é um livro inteiro; um livro que se lê sem se saber muito bem o que se está a ler, como se deve ler, quem é quem e qual é o seu papel, qual é o sentido de tudo aquilo... numa época "lá" e outra "cá", que é como quem diz Paris e Buenos Aires, respectivamente, acompanhamos um homem que se desdobra, caminha, ama, divaga e convive.

E talvez o que mais nos fique são as suas angústias, o amor e considerações afectivas e claro, divagações. Quase uma centena de divagações que o autor isenta o leitor da necessidade de lê-las para ter o livro como completo. 

Claro está que esses 99 “capítulos prescindíveis” são provavelmente aqueles que vamos logo atacar, como quem pica e debica e vai provando para saber se fica ou não cortazado.

Rayuela é um puzzle com capítulos-peça cujo arestas estão em falta ou dobradas e nem sempre encaixam. Ou encaixam! Já que a sua composição experimental deixa em aberto todas as direcções possíveis, apelando à interpretação (e criatividade?) de cada leitor, exigindo-lhe que participe e decida. 

Um romance interminável que marca uma viragem na forma de fazer literatura e que está carregado de simbolismo, metáforas, jogos narrativos e de linguagem, expondo ideias e reflexões ainda bastante actuais ou até premonitórias; a própria metáfora do título/jogo da macaca como forma de estar - e ir andando na vida - é brilhante e até muito acertada!

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Este livro foi lido no seguimento de «O Avesso da pele» de Jeferson Tenório que faz referência, especificamente, ao memorável capítulo 7

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Conteúdo selecionado para o artigo "11+ livros incríveis para celebrar o Dia Mundial do Livro", publicado no blog da editora educativa Twinkl.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

O INTRUSO de Tana French - Opinião

 


Cheguei a Tana French e ao seu cáustico INTRUSO pelas estantes da biblioteca que às vezes percorro como se de uma montra de doces se tratasse ;)

Ao pegar e ler: “A Brigada de Homicídios não gosta da detetive (vou fingir que está lá o “c”) Antoinette Conway. (...). Consegues vencer um assassino, mas vencer a tua própria equipa é outra coisa.” fiquei logo de pulga atrás da orelha.

“Breslin abre a porta para que eu possa sair primeiro da sala de observação e não trocar uma palavra com Steve nas costas dele – não que precisemos de trocar sussurros, mas ainda assim. O corredor devia envolver-me com a familiaridade de um lar: tem a tinta verde a descascar e a alcatifa gasta e tudo; devia parecer um caminho conhecido através do meu território, levando-me direita e em segurança (…) em vez disso, parece um trilho não assinalado através da terra de ninguém pejado de buracos traiçoeiros e armadilhas.

(…). Nunca tinha percebido que precisamos realmente que a brigada seja uma parte de nós, próxima e de confiança como o nosso próprio corpo, para conseguirmos sobreviver a ela.”

Um thriller psicológico, carregado de muita lama a turvar a água, onde os que deviam ser os bons são os maus (aparentemente) faz sempre pensar nos motivos por que tal acontece e por isso mesmo eu queria ter recebido mais deste livro, no entanto, o forte deste enredo está na perseguição que Conway sente e o texto explora e transborda dessa pressão psicológica de que é vítima por parte da sua equipa e em especial pelo pavãozinho inchado do Breslin (UMA TOUPEIRA?). Isso tudo, junto com a teoria dos “ses” em que o detective Stephen Moran (o colega e compincha de Conway) é perito e que lhes dá pilhas de nada (mas que dão trabalho), fazem o livro e justificam a sua leitura numas tardes de esplanada a torrar ao sol (enquanto na Irlanda o tempo faz caretas – sempre!).

“- E se ela o encontrou? (…) E se afinal não fosse um namorado? Se fosse o pai dela? (…), dou dar em doida se tiver de aguentar mais tempo esta merda do se.
- Está bem – diz Steve (…). Então, se o pai quer compensá-la pelos anos…
- Caralho – respondo, ligando o Kadett e ficando a ouvi-lo protestar por ter sido acordado. – E se eu te pagar para não fazeres essa merda? Funciona?
- Devias tentar. Aceito cheques.
- Aceitas barras de Snickers? Porque pelo menos fechas a matraca quando estás a comer.
Encontro o Snickers na mala e atiro-lhe para o colo, e ele dedica-se a devorá-lo. (…). Sei que o Steve não é o puto sardento simplório que aparenta ser, mas ainda assim… Parece, isso sim, estar a pensar no chocolate.
- O que foi? – pergunta com a boca cheia.
- Nada – respondo. – O silêncio combina contigo, só isso. – E dou por mim a sorrir ao avançar para o meio do trânsito.”


French tem um discurso cáustico e humoristicamente negro que elevam o livro e melhor, consegue-o ao longo das mais de 450 páginas, sem cansar o leitor, até mesmo quando a acção e alguns desfechos são previsíveis.

E os diálogos são top! Sejam eles entre a dupla de novatos: Conway e Moran ou Conway e Breslin a embirrarem e a desconfiarem um do outro, ou ainda em dois momentos muito bons de interrogatório, superando a já habitual cena do polícia bom, polícia mau.