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segunda-feira, 18 de setembro de 2023

"O Filho de Duas Mães" de Edith Wharton :: Opinião

A estreia com Edith Wharton não podia ter sido melhor, «O filho de duas mães» tem uma aura misteriosa tal como a caracterização de Bernard Berenson sobre a autora e a sua obra: “Edith Wharton mantêm-se apenas incontactável, num sítio qualquer onde não a ouvimos e de onde não pode responder-nos. É muito duro, mas não é aquilo a que chamamos morte.”

É com este pesar e fascínio que sentimos o enredo, para o qual é difícil encontrar sinopse, embora as palavras de Berenson funcionem muito bem, cativando o leitor a abrir o livro, e encetada a leitura, tornam-se num prenúncio.

São as palavras de Aníbal Fernandes que abrem o livro mas eu só as li no final, e ainda bem, encontramos nelas algumas revelações que eu dispensava antes da leitura, mas achamos também o medo, a solidão, a opressão e a renuncia, sentimentos dos quais o enredo se alimenta, e junto com a qualidade da escrita, são a maior experiência de leitura.

Leitura essa que fiz com voracidade e sofreguidão, tanta que não me deixou espaço para conclusões precipitadas ou óbvias, de tão enlaçada que estava. Tanto melhor, ter acontecido dessa forma. O medo tornou-se real, a opressão apertou-me de igualmente, a desconfiança gerou dúvida de todos e a solidão, essa, partilhei-a com qualquer uma daquelas personagens, mas nunca tomei as vezes de narrador e me senti tentada a antecipar desfechos. Coisa rara em mim. Senti-me completamente levada pelas sensações de cada uma daquelas pessoas, sem no entanto favoritar ou desprezar, aliás flutuamos muito por sentimentos contraditórios, fruto da mestria com que está escrito este «O filho de duas mães».

A qualidade narrativa redobrar o estado de confusão do leitor, em muito conseguido pela forma como o narrador desenha as personagens diante dos nossos olhos, quase dando um pedestal a estes personagens de sentimentos (e atitudes) indecifráveis.

“(…) dei por mim sentado ao seu lado e a recordar-me destas coisas. «Pobres criaturas – era como se dois bustos de mármores fossem quebrados, atirados do alto dos seus pedestais e esmagados», pensei ao relembrar-me dos rostos do marido e da sua mulher depois de o rapaz morrer; «e ela, a pobre mulher, foi duas vezes esmagada…”

Se Catherine Glenn tinha a perfeição de um busto renascentista, já a frieza do mesmo não se lhe podia atribuir, especialmente à medida que adentramos na história das duas mães e sem precisarmos do laço taciturno e enfermo do recém-descoberto filho, embora a sua sensibilidade artística complete ainda mais a percepção que o leitor tem: a maternidade não é o tema fulcral, mas talvez uma generosa ostentação da solidão. Uma suposta fragilidade.

“Ser verdadeiramente maternizado era para ele uma nova experiência (…) ele era sensível de mais para a classificar (…) resignou-se a olhá-la como alguém que possuía um indecifrável orgulho e uma incorrigível perfeição. (…) Ela é um tema.”

Inebriados seguimos com estas personagens-tema até ao declínio de uma e a ascensão corpulenta de outra, esquecendo o filho ou o narrador, mas não um outro tema, o do quanto somos colonizados pelo outro e ansiamos devolver o resultado dessa colonização


quarta-feira, 13 de setembro de 2023

«História do Repouso» de Alain Corbin - Opinião


«Toda a infelicidade dos homens provém de uma só coisa, que é não saberem ficar em repouso num quarto.»

Quem o disse foi Pascal, mas Corbin vai mais além, dizendo, logo ao abrir deste pequeno tratado sobre a evolução do conceito de repouso: «É nos momentos de repouso que sabemos no que estamos a pensar.» Porém, arrisco a dizer, após uma leitura atenta, mas em repouso (daquele lânguido de quem se espraia ao sol), o que esta História do Repouso nos deixa a pensar é que a História da Humanidade se cruza, ou se faz, pela da Religião e a da Igreja, a do Dinheiro e da Industria e muito das Modas e Tendências, existindo uma circularidade daquilo que é esperado do ser humano, assim sendo, que espaço lhe sobra para saber no que está a pensar?

Ficamos inclusive a indagar se mesmo quando há espaço para esse encontro com o Eu, se rapidamente não se procuram outras formas de repouso. E a organização secular da sociedade tem variado a oferta. Nem que seja com a missa, a oração, o trabalho ou a demonização da inutilidade, já que repouso teremos muito quando entregarmos a alma ao criador.

E embora as ideias de repouso e descanso dominical tenham herdado muito do advento do cristianismo e pelo qual o autor deambula bastante, há a evolução do conceito de repouso associado ao trabalho e à consequente alteração do mesmo com a revolução industrial, sem esquecer, conforme os séculos foram passando, e consoante os pensadores de cada época, os estados de alma e os temperamentos também ditarão tendências sobre o era o repouso e como se deveria praticá-lo, até entrarmos nas prescrições médicas do repouso como curativo.

“Quando De Maistre descreve os prazeres do confinamento, pensamos logo nos pensamentos de Pascal sobre os benefícios do repouso no quarto. No fim do século XVIII, a teoria dos temperamentos, que associa a circulação dos humores aos traços de carácter, já entrara em declínio; porém, no caso de Xavier de Maistre, podemos sem dúvida, incluí-lo na categoria dos indivíduos de temperamento linfático (…) era um apreciador das delícias da «flânerie» (…) era um entusiasta da «viagem imóvel» e sentia fascínio por espaços fechados, considerados um «refúgio eleito e estável», que convidavam a um repouso longe da vã agitação.”

O repouso como refúgio ou o encontrar refúgio para repousar é mais tarde a ideia base dos sanatórios, fossem para estados de melancolia e para os valetudinários ou outros tipo de inválidos, todos eles “vitimas de um desregulamento geral da saúde”, mais tarde como famigerada cura para a tuberculose e enquanto Corbin vai relatando e referenciando como todas estas passagens do tempo alteraram a História do Repouso, o leitor está sedento do capítulo sobre aquilo que está a fazer no preciso momento da leitura – estatelado ao sol com o livro em jeito de mini-sombrinha – até que se depara com o termo vilegiatura, pára tudo, baixa o livro, olha o mar e apercebe-se que está em vilegiatura, termo pelos vistos utilizado desde o século XVII, isso mesmo dezassete ;) e continua a ler: “(…) deve a vilegiatura marítima ser incluída numa história do repouso? É lícito afirmar que esta novidade alterou, de um dia para o outro, o conceito de repouso?" e entramos um pouco na Anatomia da Melancolia, Robert Burton que nos fica já na lista.

E seguimos com a leitura e percebemos que a prescrição para a vilegiatura pressuponha “estratégias de repouso em sintonia” (e busca) com a quietude, a introspecção e as sensações agradáveis e apaziguadoras do contacto com a Natureza. Sem dúvida muito diferente do que a maioria pratica hoje em dia, ou considera repouso e férias.

Ostentar o repouso e sentir-se contente (e tranquilo) com essa prática, alimentar uma certa inutilidade e preguiça e exigir o direito ao ócio tem sido cada vez mais estudado e alvo de uma atenção redobrada, ganhando o estatuto de necessidade básica, estudos esses em paralelo com outros sobre doenças, criminalidade, suicídio, produtividade, entre tantas outras vertentes da vida moderna, especialmente aquela que faz do repouso (ou lazer) outra tarefa, com horários, tensões e consumo, transformando mais uma vez o conceito de repouso: Porque deixámos de descansar, se descansar faz parte da jornada?

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

«O Relatório de Brodeck» de Philippe Claudel :: Opinião

«O Relatório de Brodeck» é um inventário da tristeza, da desumanização, da traição, do medo e da solidão, mas é também um inventário da beleza, da esperança, da luta e da crença na palavra. Palavra após palavra, pouco a pouco, o nada ganha conteúdo, dimensão, profundidade, memória. O Relatório é isso mesmo, um compêndio de pequenos nadas que compõem memórias fortíssimas (muitas vezes duras de serem lidas), recordações que não se podem perder, porque cada homem é uma soma de pequenos nadas que justificam tudo!

“Cada homem encontrava-se curvado sobre o seu próprio silêncio, mesmo havendo quase quarenta pessoas no albergue. Estávamos comprimidos como hastes de salgueiro num feixe, asfixiando, respirando o cheiro uns dos outros, os hálitos, os pés, a viscosidade ácida do suor, da, da roupa húmida, da lã velha e do algodão., sujos da poeira, da floresta, do estrume, da palha, do vinho e da cerveja, sobretudo do vinho. O que não significa que estivessem todos embriagados, não, seria demasiado fácil acusar a embriaguez. Apagar-se iam de uma penada as atrocidades. Demasiado simples. Mesmo, muito simples. Vou tentar não abreviar o que é muito difícil e complexo. Vou tentar. Não prometo que consiga.”

E não conseguiu abreviar porque lhe vieram à cabeça, à boca, às noites e à palavra, os pesadelos a que as atrocidades do campo de concentração o condenaram. Voltou tudo, envolto naqueles cheiros e sensações, naquelas ordens que o sentenciaram perante a urgência e a obrigação de relatar. Relatar para ilibar pela palavra. Pela mesma palavra com que falava para si mesmo, descrevendo a beleza, igualmente esmagadora e aprisionante, da aldeia e a Natureza envolvente e só por aí entram alguns raios de luz na narrativa, pois o O Relatório, esse, é pior que o Inverno da sua aldeia.

“No Inverno que, na nossa Terra, é longo como séculos espetados uns atrás dos outros, numa grande espada e durante o qual, à nossa volta, a imensidão do Vale, asfixiado pelas florestas, desenha uma extravagante. Porta de prisão.”

Nos dias seguintes ao Ereigniës (palavra em dialecto usada para descrever a noite do evento) nada mais será quente para além dos ânimos da população, as braseiras ateadas por boatos e as coxas de Boulla, que é talvez das poucas vezes que nos faz rir, embora todos os habitantes sejam peculiarmente descritos, como o velho Diodème que Brodeck achava digno das epopeias e desconfiava ter sido enviado pelos deuses, mas com que intuito?

Entre questões sem resposta e memórias que caem, Brodeck reaviva o medo, sempre o medo. O medo é personagem deste romance, juntamente com o mal.

“Sinto que não fui feito para esta vida. O que eu quero dizer é que a minha vida transborda por todos os lados, que não foi talhada para um homem como eu, que se enche de muitas coisas, muitos acontecimentos, muitas misérias, muitas falhas. Talvez a culpa seja minha? Talvez eu não seja capaz de me revelar um homem? De pegar ou largar, de seleccionar. Ou talvez a culpa seja deste século em que vivo, e que é uma espécie de grande funil no qual se vasa a sobra dos dias, tudo o que corta, esfola, esmaga e retalha. Recordo o meu medo, como se o medo, doravante, fosse uma peça do meu vestuário. Uma peça que, de resto, nunca consegui despir, muito pelo contrário, e que me comprime como se me encolhesse de semana em semana. O mais estranho é que, quando eu estava no campo de concentração, quando me chamava Cão, Brodeck, não tinha medo. No campo de concentração, o medo não existia. Eu estava para lá do medo. Porque o medo ainda pertence à vida.”

Brodeck fez parte dessa marcha de cadáveres, regressou de onde não se regressa e afirma várias vezes que a morte não é difícil, difícil é tentar sobreviver perante a constante ameaça de morte, a ideia, o foco, a concentração numa única sensação, a de morrer. E o ser humano não foi talhado para viver assim. Por isso o Inverno lhe era tão doloroso, memórias como mancheias de neve entre a roupa e a pela. Um frio cortante que queima.

O Relatório vai continuando e pouco é revelado sobre o seu verdadeiro alvo, o Outro, o Estrangeiro, O Estranho, O Forasteiro, ou seja, O Anderer, o homem que foi morto pela população cega de desconfiança, porque o desconhecido é uma ameaça, mas uma multidão é uma ameaça maior, especialmente quando confrontada com o boato, a desconfiança ou o que é puro. Como a pureza dos animais fortemente atacados e usados, embora Brodeck avance e recue na história e nos faça, ora detestar ora compreender cada uma daquelas pessoas.

O que é certo, é que a guerra devastou e os seus horrores não têm fronteira, não precisam de país ou idioma, os traumas têm extensões mais altas que as montanhas e efeitos mais desconhecidos que as entranhas da terra, sempre adensados pelo isolamento e a escuridão

“Releio as páginas já escritas da minha narrativa, apercebo-me de que sigo pelas palavras como um animal acossado, que corre veloz, aos ziguezagues, procura despistar os cães e os caçadores lançados em sua perseguição. Há de tudo nesta confusão. Ostento a minha vida. Escrever alivia-me o coração e o ventre.”

Já o leitor não segue nem sai de coração ou ventre mais aliviado, antes sim num novelo, mesmo quando Brodeck cruza as suas palavras com as de Nösel e nos diz, à laia de dúvida ou de esperança que «o homem é um animal que recomeça sempre», não obstante, afirma que o autor nunca respondeu sobre o que é que o homem recomeça e o acuse de ter esquecido o verdadeiro mundo por se ter dedicado aos livros. Mas também ele, Brodeck se dedicou aos livros, desde cedo pela mão do padre Peiper.

“Alguns devorarão, outros, esventraram-nos, violaram-nos, conspurcaram-nos. E o que é justo nem sempre triunfou sobre o que é sujo.

O que me obrigou, como milhares de outros homens, a carregar uma cruz que não escolhera, a sofrer um calvário que não fora feito para os meus ombros e que não me dizia respeito?

Quem decidiu, então, remexer a minha obscura existência, desenterrar a minha parca tranquilidade, o meu anonimato cinzento, para me lançar como uma bola tresloucada e minúscula para o meio de um imenso jogo? Deus? Mas então, se Ele existe, se Ele existe realmente, que se esconda. Que erga as mãos à cabeça e a curve. Talvez, como dantes nos ensinava Peiper, muitos homens não sejam dignos Dele, mas hoje também sei que Ele não é digno da maior parte dos homens, e que se a criatura pôde gerar o horror, foi unicamente porque o seu criador lhe forneceu a receita.”