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quinta-feira, 26 de outubro de 2023

«A lua de Joana» e «O guarda da praia» 30 anos depois 😉

 


O desafio de reler «A lua de Joana» foi lançado pela metade mais colorida deste blog, a ElsaR e em boa hora eu aderi. Não sei quem mais o fez, mas se nos lêem, não deixem de comentar, partilhando sensações.
São perto de 30 anos que separam estas leituras. 30!? Ah pois é. E as sensações desta leituras deveriam ser uma entrada de diário que eu pudesse comparar com outra, escrita pelo meu eu de doze anos. Mas não existe e recorrendo apenas à memória pouco por cá existe sobre ambas estas narrativa, a não ser pequenos detalhes: o baloiço em forma de lua, algumas sensações sobre a escola e a paixão, essa grande paixão que é a praia. Presença constante na minha vida. Tal como a leitura.

A primeira surpresa foi a ilustração com que abre o livro, foi uma surpresa, não me recordava nada dela, mas acho bem capaz, se ainda conservasse o meu exemplar, de a encontrar pintada. 

Ilustração de frontispício: Cristina Malaquias

Relendo este livro-fenómeno, por ser até hoje vendido e debatido nas escolas, reencontro acima de tudo a mística associada à escrita diarística e não deixa de ser curioso que nos últimos tempos tenha lido vários livros dentro deste registo, mas seja algo que não mantenha, nem procure ler. Mas tem calhado. E algo muito curioso é a forma como certas entradas parecem ser escritas pela minha mão, pelo menos algumas linhas, seja aqui neste registo mais adolescente, em «Dano e Virtude» de Ivone Mendes da Silva ou nas linhas atormentadas, ácidas e até repetitivas de «O regresso dos andorinhões» de Aramburu. O que é certo é que um diário encerra a eterna questão: a da incompreensão. E essas são as melhores passagens.


É precisamente nessa incompreensão que começa «A lua de Joana».
Joana não compreende o que aconteceu a Marta, o que a levou a tal desfecho, mas pior, não compreende como levar a vida adiante sem a sua amiga, a sua confidente, aquela que a ajudava a descodificar o mundo à volta delas. O mundo convulso e desafiante que é o da adolescência, os desafios de saber o que estudar, a dificuldade em compreender a família, os amigos... e o papel num todo no qual não se reconhecem. Por isso, Joana continua a escrever a Marta, mesmo a amiga estando morta. Escreve em busca de resposta, despejando as mágoas no papel e enquanto o faz revela a solidão e o desamparo que sente e nós, hoje 30 anos depois, vemos tantas coisas mais que não veríamos com doze ou treze anos. Há uma desconexão brutal entre os elementos estereotipados desta família, falha a comunicação e falha logo numa fase crucial, a do luto e a solidão. Joana não tem como nem como quem tapar o buraco que lhe comprime o peito e as ideias. Ou até tem, mas por pouco tempo e esse segundo luto define um caminho que já se adivinhava no horizonte.

Sem dúvida que «A lua de Joana» é um livro que merece ser lido e relido. É um objecto de estudo e de debate e consoante as idades, as sensações e preocupações mudam e isso ainda o melhora mais, por ser capaz de se transformar juntamente com os seus leitores.


Com «O guarda da praia» as sensações são diferentes. As preocupações também. Embora os temas sejam igualmente importantes, pois existe um alerta para a preservação e respeito pelo meio ambiente e também uma relação, até certa parte nebulosa, entre uma mulher e uma criança, recriando um pouco o mito do menino selvagem, sem esquecer questões de abandono familiar e a maternidade.

Gostaria muito, talvez até mais, de ter a tal entrada no meu diário e reler as ideias sobre esta história, lembro-me de ter gostado muito, de ter escrito até qualquer coisa inspirada por esta praia, mas a memória está carregada disso: efeitos-dos-livros 😉




segunda-feira, 23 de outubro de 2023

«Duas mulheres em Praga» de Juan José Millás :: OPINIÃO


«Duas mulheres em Praga» é um reencontro com toda a estranheza, mas também toda a autenticidade que povoam cada livro de Millás. É certo que nem sempre é fácil encontrar as palavras que dão forma aquilo que se sente a cada leitura, pois talvez precise de vivenciar o mundo mais com o lado esquerdo, especialmente em dias em que sou atacada pelo lumbago. ;) Estranho? Não! É só o mundo Millás a tomar conta do texto.

Estranhas são as coincidências entre leituras e a forma como dialogam e se interceptam, neste caso, entre este e o livro de Edith Wharton. É quase como se lhe respondesse ou assim quis eu lê-lo quando aceitei este périplo por entre filhos órfãos, pais adoptivos, mulheres que se completam e homens em dúvida acossados pela própria genialidade. Ou a genialidade é das mulheres e eles simplesmente alimentam-se delas?

“- Estou de baixa, por depressão. Sou funcionária pública e decidi nunca mais voltar ao escritório, nunca mais, mas para não voltar tenho de me deprimir mais ainda. O médico nota quando se fica boa e, por isso, estive dois meses a fazer exercícios de depressão para continuar de baixa. Mas dois meses sem falar com ninguém é demasiado. É de enlouquecer. Então vi o anúncio das biografias, liguei para os Ateliers Literários e marquei a entrevista.”

Garanto que o leitor em nada vai deprimir, mas de vez em quando gargalhará como um louco perdido nesta “geografia sem mapa”, ao que se deve acrescentar: aparentemente sem mapa, já que a habilidade de Millás é precisamente essa, não só compõe o mapa como as instruções para lê-lo e tudo em pouco mais de 170 páginas, descrevendo a vontade de cada uma destas personagens em ter uma vida mais plena, mais saldada, porém a vida teima em ficar a dever-lhes sempre alguma coisa.

“- Não és viúva, pois não? – perguntou ele.
- É como se fosse.
- Não te preocupes, eu também não sou órfão.
- Olha que é um alívio. A que te dedicas?
- Sou escritor – disse Álvaro, e inexplicavelmente saltaram-lhe as lágrimas como a Luz Acaso quando lhe disse que era viúva.
- Conheço outro escritor que também chora por tudo e por nada. Vocês são uns fracos.
- Não é que sejamos fracos – respondeu ele, reprimindo o pranto -, é que a vida deve-nos qualquer coisa que não nos dá.”

Esta realidade constantemente em dívida, compõe um novelo a desfiar-se numa dimensão paralela, sob a qual o leitor vai levitando inocentemente e incólume aos nós e penitências de cada um deles. Uma penitência ensaiada ou um delírio acarinhado. Calculista também. Ainda assim, o leitor compadece-se como se fossem assuntos sérios e perturbações reais

“Colocou o espelho retrovisor de maneira que, em vez de ver o trânsito, se visse a si própria. Deste modo, cada vez que olhava distinguia os seus próprios olhos e imaginava que eram os de uma passageira que viajava nas suas costas, perseguindo-a, embora se sentisse cada vez mais longe de si mesma.  (…)
Pensei, então, que cada um de nós tem dentro um «o que não», quer dizer, algo que não lhe aconteceu e que no entanto tem mais peso na sua vida do que «o que sim», o que lhe aconteceu.”

Diria até que a mestria de Millás é fazer com que as suas personagens se afastem sempre de si mesmas enquanto nunca se afastam um milímetro sequer dos seus dramas, criando conflitos e duplicidades maravilhosas, ficcionando muito bem a vida que nada tem de plana ou linear e basta ajustar o retrovisor para nos convencermos disso mesmo.

Ou como o próprio narrador nos diz, que um Ninguém se torna alguém porque o escrevemos com letra grande 😉 E que as mentiras, quando biografadas, tornam-se verdades, sempre carentes de mais um capítulo, porque a realidade nem sempre sabe escrever-se e precisa de mão habilidosa.


“- Olha, é uma amiga que te admira muito. Agora está a conquistar o seu lado esquerdo, para escrever um livro Canhoto.
- O que é um livro Canhoto?
- Não sei. Um livro escrito com o lado que não se sabe escrever.
Álvaro sentiu que Luz Acaso acabava de verbalizar com uma simplicidade surpreendente, uma ideia sua (…)
Fui tomando consciência de que estava a ser vítima de uma ficção que o meu próprio desejo contribuíra para construir. Era tudo mentira, de acordo, mas as peças dessa quimera começavam a encaixar tão bem que precisava de me repetir continuamente, é mentira, é mentira, porque à medida que os minutos passavam, era cada vez mais verdade.”

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

"A História do Riso e do Escárnio" de Georges Minois :: Opinião


Algumas considerações sobre uma leitura salteada mas atenta, deste grande compêndio sobre essa arte tão humana: o RISO!


Premissa para o estudo
: “Não será interessante verificar, por exemplo, que vivemos hoje em dia numa dupla contradição? 

Por um lado, há muito quem tenha a impressão de o riso estar em regressão quando, de facto, ele se mostra em toda a parte; por outro lado, nós rimos cada vez menos, enquanto todas as ciências nos gabam os méritos, mais ou menos miraculosos, do riso.

Compreender o riso é compreender a história da evolução do homem.

O «inextinguível riso» dos deuses. Os deuses riem e riem muito desde a Antiguidade e riram-se de tudo, sendo implacáveis com tudo. O riso serviu todos os propósitos, desde a violência, à deformidade, à cumplicidade e ao regresso à vida.

Do riso dos deuses até à humanização do riso foi um passo filosófico, com um afinamento da linguagem e uma intelectualização: “ao riso homérico, duro e agressivo, sucedeu a partir do século IV, o riso aveludado, sinal de urbanidade e de cultura, o riso finamente irónico Que Sócrates punha ao serviço da busca da verdade.”

Mas atenção, o riso oponha-se ao sagrado, ao equilíbrio, à sensatez e ao autodomínio. E toca de afinar mais uma vez o riso: a sátira. A inteligência da sátira política e a capacidade de auto-escárnio.

“A tomada de consciência do ridículo., do monstruoso e do absurdo no interior do ser gera um soluço caótico e gelado que do riso, já só tem as características físicas: «Instrumento de arte, Visão estruturada do mundo, mas construção, também., de um universo de já do total, o grotesco constitui um instrumento eficaz de uma análise lúcida, por vezes ridícula, mas cruel, do homem absurdo de todos os tempos.» (L. Callebat)

É bem por isso que a comicidade grotesca só aparece num estádio tardio da evolução das mentalidades e da cultura numa dada civilização. Resulta da verificação da incompreensibilidade do mundo, verificação consecutiva a traumatismos coletivos que desfiguram a fachada lógica das coisas que por trás das aparências deram a entrever uma realidade proteiforme* na qual nós não temos poder. O riso grotesco refere-se à própria essência do real, que perde a sua consistência. Verdadeira desforra do diabo, no sentido em que pulveriza a ontologia e desintegra a criação divina, reduzida ao estado de ilusão. Ao lado do riso irónico, verificação do absurdo, o riso grotesco é uma declaração da improcedência; dois risos cerebrais que reduzem o ser ao absurdo ou a aparência.

(*que muda de forma frequentemente)

O riso filosófico e a filosofia do riso perduram séculos e as discussões sobre o riso, do grotesco ao absurdo, passando do satírico à loucura, à estudada ironia, à comicocracia ou à proibição (ou tentativa) do riso, entre tantas outras formas de expressão, compõem séculos de história sobre a maledicência do outro e o prazer a isso associado.

O riso caricaturista «Realiza desproporções e deformações que deviam existir na natureza no Estado de veleidades, mas que, repelidas por uma força melhor, não vingaram. A sua arte, que tem qualquer coisa de diabólico, substitui o demónio que o anjo deitou por Terra».

E, ainda: «O riso é sempre verdadeiramente uma espécie de troça social». Nunca era um prazer puramente estético. Trazia em si: «a intenção inconfessada de humilhar, e com ela, é verdade, a de corrigir». Castigava muito mais a insociabilidade que a imoralidade.”

“Rir é, antes de tudo, uma sanção. Feito para humilhar, deve dar uma impressão dolorosa à pessoa que é seu objeto. A sociedade vinga se por seu intermédio das liberdades que foram tomadas contra ela. O riso não atingirá o seu objetivo, se trouxesse a marca da simpatia e da bondade.” (H. Bergson, 1989)

Por isso o autor afirma que o século XX, esse século horrendo que nunca mais acabava, morreu de riso, soube zombar de si mesmo. Precisava!

“(…) um riso louco (…) um riso nervoso e incontível. O mundo riu de tudo, riu dos seus deuses e dos seus demónios e, principalmente, de si próprio. O riso foi o ópio do século XX, de Dada aos Monthy Pithon. Essa droga suave deu à humanidade um meio de sobreviver às suas vergonhas. Insinuou-se por toda a parte, e o século morreu de overdose – uma overdose de riso quando, depois de tudo reduzido ao absurdo por esse riso, o mundo se achou de novo perante o seu não-sentido original.”

 

O século XXI ameaça o riso com a sua comercialização, globalização e massificação.

O riso virou produto de consumo. Terá validade? Gastar-se-á a fita? Catalogado perderá público? Haverá neste século tendencioso uma ditadura do riso disfarçada de uma qualquer felicidade (obsessão!) de rápido consumo?


“(…) reencontramos nisto a ideia de escárnio universal: o riso como refúgio supremo e recusa das ilusões ideológicas. Mas também aqui o riso voluntário, utilitário e planificado, coagula depressa. A festa contemporânea queria domesticar o riso, mas ele só pode voar em estado selvagem, em pura liberdade.”

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

«O homem mais feliz no mundo» de Eddie Jaku - Opinião

Foi com enorme gosto e interesse que conheci Eddie Jaku, embora tenha sido uma leitura entusiasmante, foi igualmente uma leitura sofrida, mas quem sou eu para falar de sofrimento perante um relato destes!

E por isso mesmo a melhor mensagem que se retira desta leitura só pode ser o mantra que acompanha esta biografia.

"Quem partilha as dores, sofre metade.
Quem partilha o prazer, desfruta o dobro."

Claro que são palavras bonitas que pretendem olhar para trás com o pendor do perdão e da superação de anos e anos de tormentas com memórias e fantasmas, mas também isso Eddie Jaku revela quando nos diz até que ponto foi infeliz e atormentado e a partir de que ponto senti uma emoção sem igual que lhe permitiu abraçar o futuro com outra postura. Ainda assim, essa alegria do nascimento do filho teve sempre uma sombra: quando e quanto devia revelar da sua história pessoal como vítima do Holocausto?

"Foi uma emoção muito forte. Desatei a chorar. A minha irmã nem quis olhar para a caixa, tão perturbada se sentiu. É impossível esquecermos a imensidão da dor que carregamos e do sofrimento que sufoca o nosso subconsciente, até nos confrontarmos com provas de tudo o que perdemos."

Essa revelação - um choque para muitos - foi outra parte da superação que o levou a acreditar ser o homem mais feliz do mundo e mais uma vez o seu mantra fazia sentido. É preciso partilhar, é preciso sofrer e sorrir em comunhão com os outros, quer sejam eles outros sobreviventes, a sua própria família ou estranhos espalhados pelo mundo. Eddie acreditou sempre que de cada vez que partilhou a sua história fez um amigo. Que em cada leitor que leu o seu livro fez mais um amigo. E que cada amigo partilhará a sua história e que é dessa partilha que nasce a empatia que nos permite tomar parte naquilo que é correcto.