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sexta-feira, 28 de abril de 2023

"Sangue Derramado" de Asa Larsson :: Opinião


Perante a morte da pastora protestante, Mildred, adentramos em Kiruna. Conhecemos o gene policial de Asa Larsson na personificação de várias personagens fortes. Mulheres fortes. Eu diria até, mulheres fortes protegidas por uma loba solitária e fugidia e é dessa forma que as árvores ganham mais vida, os ruídos espessura e o enredo um outro tom que eleva este policial nórdico. 

Foi uma bela estreia no universo de Asa Larsson! Tanto, que mesmo com o rabo sentado na areia e entrevalando as leituras com banhos de mar e sol, cheguei a sentir o frio e a escuridão daquelas terras nórdicas, silenciosas e misteriosas.

Embora tenha sido uma estreia, a história de Rebecca Martisson arrancou num livro anterior, mas as pistas estão todas nas entrelinhas e é como se existissem dois crimes por desvendar, não obstante, eu estar mais preocupada em saber da loba e querer saber que continuava intocável. Portanto, neste "Sangue Derramado" apanhamos uma Rebecca meio fugida, meio perdida, para quem as coisas ultimamente só lhe entram na cabeça à força. Depois os últimos acontecimentos, sente o seu mundo de pernas para o ar, mas observa com muita lucidez que todos à sua volta andam «com a fita métrica a postos nos bolsos». 

Sente-se observada, analisada e medida por tudo o que diz, mas essencialmente pelo que não faz ou não diz. Para além de estar rodeada de uma equipa onde todos lutam por protagonismo, estão todos à espera que se passe novamente da cabeça e resvale, dando sentido à opinião de alguns que acreditam que ela não é a melhor escolha para ir a Kiruna. Assim sendo, este «Sangue Derramado» pode muito bem ser o cenário ideal para isso, já que Kiruna é precisamente a terra que a viu nascer.

Como se isso não bastasse, o enredo envolve um crime na paróquia, uma mulher à frente desse posto de comando. Coisa rara! E ainda por cima uma feminista e defensora de que já é mais do que tempo de contrariar o sistema e fazer as coisas avançar. Mudar. E a mudança assusta muita gente. Pior, a mudança sugerida (ou imposta) por uma mulher. Aliada a outras mulheres.

Larsson não poupa a sociedade escandinava, a religião, as comunidades pequenas e tacanhas e os atentados ambientais mesmo naqueles que parecem ser paraísos de gelo, lugares sagrados, recônditos e intocáveis. Ou assim se esperava.

Larsson lança pedradas, umas atrás das outras, como que a avaliar a que distância está o fundo do poço. 

O que de lá se ouve? Ou reluz? 

A sua escrita e capacidade de saciar o leitor, fazendo-o querer avançar, capítulo a capítulo, enquanto ela vai afogando os seus personagens em mentiras, ódios, crimes e segredos. E claro, o amor! Servindo-se de diferentes tipos de amor, mas essencialmente um muito grande à Natureza e aos Animais. E arriscaria dizer: às pessoas, que na sua solidão, isolamento e bondade tantas vezes abusada, comentem crimes; a sua literatura não os exonera, mas tenta mostra que a linha é ténue e qualquer um pode cometê-los.

domingo, 23 de abril de 2023

«Atelier de Noite» de Ana Teresa Pereira – Opinião

“Não podemos pôr nada inteiro, mas no meio dos pedaços temos uma visão enovoada do que existia antes (…)”

Enovoada surge-nos uma mulher, Teresa, uma Agatha Christie que se reinventa, embora seja uma mulher cheia de pensamentos intermitentes e dúvidas. Ela foge, sem dizer muito bem do que foge. Talvez para um último amor, talvez para se reinventar e se amar a si mesma, uma última vez, por isso nos diz: “Há um tempo para as últimas coisas, o último relógio de pulso, a última gabardina, o último cão, o último amor. A última beleza intermitente. Por vezes é assim que penso naqueles onze dias. A última vez que fui bonita.”

Talvez um amor platónico. Sabemos que havia um homem; «nota-se na boca» diz-nos ela a determinada parte. Seria uma antiga paixão? Uma paixão sempre capaz de se reacender, como as boas histórias que «começam uma e outra vez, mesmo depois de já termos ido embora.”

Ficamos na dúvida, mas supomos que essa é claramente a intenção da autora, o seu traço característico, o de criar «alguém que pudesse habitar», reescrevendo-se como um poema cujos versos andam soltos e só se unem dançando. É preciso dançar, embalar e namoriscar a noite, pois «nada é seguro. Uma manhã podemos acordar num quarto de hotel, e não encontrarmos a nossa personagem». Há um medo em perder-se de si e não mais se encontrar ou encontrar-se sozinha, quebrada, já sem ninguém, já sem nada que a ponha inteira de novo.

«O Atelier de Noite» é um livro carregado de fragmentos e incertezas, mas que transparece uma preocupação: um medo enorme pela desordem do que pode ser o fim, quando se esgota o que a caracteriza e lhe dá sentido. As camadas.

É um romance que vive mais de forma do que enredo, é cheio de referências e fluxos de consciência, mais do que de uma história concreta, com princípio meio e fim, mas até nisso cruza bem com a personagem de Agatha Christie, que queria fugir desse registo, já que o policial, por norma, mesmo que enredado, negro e complexo, tem uma estrutura regrada, expectável e testada. Por isso, a ideia de Ana Teresa Pereira em cruzar um episódio verídico ainda sem uma explicação concreta (facto que eu desconhecia) com esta possibilidade também ela pouco nítida e que casa muito bem com o “desfecho”: o escritor escreve sempre a mesma história e de tanto escrevê-la haverá de acertar, quase como se isso corrigisse a vida 

domingo, 16 de abril de 2023

«No jardim do Ogre» de Leila Slimani :: Opinião


Eu não sei se Adèle é a nova Bovary, mas um certo tédio e desvario instalaram-se na vida desta mulher, que “em união” com uma patologia de distúrbio sexual, lhe condiciona os dias e as noites em busca de sexo. Ela está insaciável!

“Não mantém um livro de registo, não retém os nomes e, muito menos, as situações. Como poderia ela lembrar-se de tantas peles, de tantos cheiros? Como poderia guardar na memória o peso de cada corpo sobre o seu, a largura das ancas, o tamanho do sexo?”.

Posto desta forma, como Slimani o descreve, parece quase poético. Não o é! É bruto, é visceral, fragmenta e destrói esta mulher. Corrói-lhe corpo e alma. E o respeito por si mesma, torna-a numa «boneca no jardim do ogre». E com as bonecas, brinca-se. Até o marido brinca.

A paz pobre que cobre o tom de respeitabilidade do matrimónio com Richard, um médico reconhecido e socialmente bem inserido (fruto do casamento, de um filho e de uma mulher bonita) ajudam a que ela viva desenfreadamente os capítulos tóxicos de uma sexualidade de risco, onde o desejo não rima com luxúria ou prazer, mas antes com um êxtase que se chega ao abismo. Há até uma certa repugnância e angústia que acaba a espalhar-se a tudo.

“Não se tocam. Beijam-se pouco. Os seus corpos nada têm a dizer um ao outro. Nunca sentiram atracção, nem sequer ternura, um pelo outro e, de certa forma, essa ausência de cumplicidade carnal reconforta-os. Como se isso provasse que a sua união estava acima das contingências. Como se já tivessem feito o luto de algo de que os outros casais só se conseguirão desligar a contragosto, com gritos e lágrimas.”

Controla esses gritos e lágrimas, mas nem sempre Adèle controla o que lhe vai no pensamento: «apetece-lhe arranhar aquele rosto descontraído e meigo, esventrar aquele colchão reconfortante», no entanto, vai esventrando-se a si mesma num planeamento que a consume, mas que é inverso ao planeamento de Richard, dono de um colchão cada vez maior, mais alto, antecipando ao leitor a queda de proporções implacáveis.

“Não é dos homens que ela tem medo, mas sim da solidão. Já não ser alvo de olhares, ser desconhecida, anónima, um peão na multidão.”

Não obstante a audácia do enredo, julgo que a força está na forma sucinta e cirúrgica como Slimali usa a linguagem para demonstrar ao leitor a mulher-peão numa doença que a torna em pouco mais que um corpo anónimo, consumido, usado, abusado.

«Rua Katalin» de Magda Szabo :: Opinião

 

"Hoje tenho a noção da importância daquele momento; contudo, na altura, não cheguei a percebê-la. Muitas vezes só tardiamente nos apercebemos de como teria sido importante, enquanto é possível, prolongar e reter o tempo. Mas eu não tentei retê-lo. Estava com pressa. (...) Naquela altura, ainda sabia que se podia morrer bem antes da morte verdadeira. (...) Mas agora, isso já pouco importa; os sentimentos e as recções, tal como os factos, são irreversíveis, não se pode revivê-los nem mudá-los."

Em menos de três páginas, três pequenos excertos que podiam saltar do livro para a vida. Imitando-a. Salva-nos uma nuance: o livro, esse, podemos reler, mas mesmo assim não anulamos o que já conhecemos, o enredo, o desfecho. Podemos reinterpretar, saborear e usufruir o que não soubemos fazer à primeira, mas será impossível alterar a expectativa (e a pressa!) com que o atacamos na leitura inicial. E isso é uma metáfora da vida. É preciso saber dar a cada coisa o seu lugar e o seu tempo e não fazer comparações. Mas como fazer isso bem feito quando as expectativas vão elevadas?

A "culpa" foi da experiência arrebatadora provocada pela leitura de «A Porta» e a vontade de querer, às primeiras páginas, ficar assoberbada, inebriada e rendida e uma personagem que pudesse equilibrar a balança ao lado de Emerence. Mas os livros, como a vida, têm personagens irrepetíveis, ainda assim, todas têm o seu lugar e o seu efeito sobre nós. Basta deixarmos!

Em «Rua Katalin», Szabo mostra-nos o envelhecimento através do processo de rememoração da infância e de episódios que definem para sempre as vidas de Irén, Blanka, Balint e Henriette, crianças de três famílias diferentes que nos são apresentadas num quadro de personagens iniciais (que tanto determinam a experiência de leitura) e num curto capítulo introdutório que, à laia de aviso, nos diz: "Ninguém lhes havia explicado que o desaparecimento da juventude seria alarmante, não por lhes retirar, mas por lhes oferecer algo (...) a consciência da desintegração do Todo (...) o Todo harmonioso fragmentara-se."

E é na senda dessa fragmentação que o leitor vai compondo a cronologia possível que, julga ele, lhe permitirá compreender o que aconteceu naquelas vidas e o peso e os fantasmas que carregam, perante a crueldade de determinadas memórias, feridas sempre abertas e emoções demasiado confusas, para se expressarem na simplicidade das lágrimas.    

"Continuámos sentados em silêncio, como dois irmãos e, pela primeira vez na minha vida, presumi que os mortos não morrem, e quem já vivera neste mundo, seja sob que forma de existência, é indestrutível."

A inevitabilidade do curso da História e a dor que daí advém, muda-os e molda-os ao entrarem na idade adulta. Transforma-os em desconhecidos uns para os outros, mas também para si mesmos, porque «nas tragédias, quando os golpes são muito fortes, o espírito defende-se, concentrando-se num pormenor insignificante», tal como logo ao início o narrador nos avisa: «na realidade, os acontecimentos que constituíam as suas vidas só em poucas situações, nalguns momentos e episódios, foram importantes; o resto servia apenas para encher os poros da fragilidade da existência, tal como as aparas de madeira impedem que se quebre o conteúdo de uma caixa destinada a uma longa viagem». 

E nessa longa viagem, composta por aparas que enchem mais de trinta anos, conhecemos vários tipos de amor, de sacrifício, de opressão e de união familiar, mas também a inocência da amizade e dos amores de infância que geram memórias responsáveis por decisões que determinaram as vidas destas três famílias «como um barco que é levado pelo vento, Deus sabe para onde, agarrando-se um ao outro, (...), pois lembram-se das mesmas coisas (...) tinham visto o mesmo céu azul antes de a tempestade se ter desencadeado».

 *

Nota extra: Percebi o quanto tinha gostado deste livro ao reler a opinião sobre os efeitos da leitura de «A Porta». Está cá tudo, igualmente cheio de mestria e desconcerto para o leitor. E também por ter encontrado nas páginas finais, nas revelações impactantes de Irén, ecos de «A Herança de Eszter» e perceber, mais uma vez, quanto tempo os livros, como as memórias, vivem dentro de nós.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

«Um detalhe menor» de Adania Shibli - Opinião


«nas tragédias, quando os golpes são muito fortes, o espírito defende-se, concentrando-se num pormenor insignificante» (em «Rua Katalin» de Magda Szabo)
A frase não pertence a este enredo, mas podia. Encontrei-a numa leitura seguinte, mostrando-me que os livros, mesmo aqueles que não aprecio tanto, ficam a pairar e estabelecem traços entre eles, que os unem e explicam, dando-lhes mais sentido. Neste caso, perante esta frase compreendi o grito de revolta que se encerra nos pormenores insignificantes deste «Um detalhe menor», que são as repetições, as descrições e a monotonia (e alguns piscares de olho), quase como últimos redutos para um povo que se viu em escombros perante uma ocupação e uma expropriação que ainda hoje tem persiste, divide e oprime.

"(...) o que parece uma aranha começará a tecer os seus fios em meu redor, apertando-os de tal maneira que pouco a pouco se transformarão em algo semelhante a uma barreira, que nenhuma pessoa, sendo tão frágil, consegue trespassar. É a barreira do medo, cuja a origem é o medo da barreira do posto de controlo. (...) ou se disser abertamente que vivemos sob ocupação. (…) O que acontece diariamente num lugar onde prevalece o tumulto de ocupação e a matança permanente”

Por isso, enquanto um homem de patente cumpre os seus rituais de higiene, mas continua a apodrecer - detalhe nada menor - com um ritual monótono, como a paisagem dunar e a canícula longa e prolongada, uma mulher é vítima do crime hediondo da violação. Uma violação repetitiva e duradoura, onde toda um regimento se satisfaz. No entanto, esse parece um detalhe menor, não pela ausência descritiva, totalmente dispensável, mas por só lhe der dado destaque vinte cinco anos depois quando uma outra mulher tem conhecimento desse crime e decide percebê-lo melhor. Embora sem saber muito bem como ou porquê, metáfora para a guerra sangrenta que afunda um povo num «abismo de inquietação».

E chamar-lhe inquietação é pouco. A paz é uma miragem, mesmo para quem continua a empurrar o corpo e a querer com ele saltar e quebrar fronteiras, mesmo que por vezes o faça de forma irracional, fruto de um desassossego que atormenta quem vive uma liberdade furtiva e fragmentada. Metafórica.

"O único movimento agora é o da miragem, que faz as estradas e as colinas tremerem nervosamente, nelas aparecendo espectros que, quando uma pessoa os encara directamente, se desvanecem num piscar de olhos (...)"

domingo, 2 de abril de 2023

«Biografia do Língua» de Mário Lúcio Sousa :: Opinião

“A ansiedade de um ilhéu é uma fonte de histórias pelas esquinas.”

Dono dessa ansiedade de ilhéu, um homem condenado e à espera de ser “polvilhado de balas” faz uso de técnicas que remontam às 1001 noites, oscilando entre condenado, biografo e contador de estórias. Ou encantador… Pois enquanto conta, encanta e narra a vida e um prodígio, o Língua. Tal qual Xerazade vai atrasando o seu destino ou melhor dizendo, recriando destinos enquanto cria uma utopia na falésia.

“Sei que o falesiano é um povo brando e habituado ao desapego, pela nossa própria origem, porque este povo nasceu pendurado da vida de alguém que estava por um fio, mas sei que temos a debilidade de um bicho destroçado, sei que a porta da saudade nos deixa como cão que perdeu o dono. Agora só nos resta o consolo.”

E o consolo era a palavra!

O tempo passa e ele não morre nem de balas, nem de fome. E se mais não conseguir, consegue a proeza de converter os seus verdugos numa turma de escuteiros à volta da fogueira, ansiosos pelo próximo capítulo. Pelas rotinas.

E capítulo a capítulo, a mensagem espalhou-se e a aldeia trepou a falésia para ouvir contar uma estória que em pouco tempo se transformou na história de uma nova comunidade com qualidades mágicas: a de saber ouvir, em silêncio.

“O silêncio, para quem escuta, é uma multidão sábia.”

Uma comunidade que se juntou apenas pelo prazer de escutar, tanto que até viravolteavam em silêncio para não atrapalhar a magia que testemunhavam na falésia, numa azáfama cativa à palavra do condenado que já não falava do frenesim da fuga, mas do dilema e do enigma que era o amor que desabrochava no peito do Língua. E quem vê o amor desabrochar, ama melhor, quem sente e vê a confiança, “entra no mundo, muito diferente de vir ao mundo.”

“(…) não era vontade, era coragem. De modo que todas as perguntas foram dadas por respondidas e o mistério passou a fazer parte do grande património das coisas que os escravos nunca disseram, nuca dizem, nunca dirão.”

Mas “os anos têm olhos na nuca” e o biografo era um homem com alguns anos a somar aos anos que foi perdurando na falésia e uma comunidade não se faz sem memória e sem o relato das experiências que fazem uma história colectiva. A história de um país, um continente, a humanidade.

Na falésia, “cultiva-se a prática da devoção ao outro”, o que todos querem é que se queiram bem e se sintam bem, porque “o homem é de onde se sente bem.”

“Nós não queremos fazer história, queremos ouvir história.”

E mesmo só a ouvir, é possível fazer história e pertencer à história, porque quem ouve aprende e já faz história se não repetir o que me gostou de ouvir.