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quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Opinião "Uncommon Type / Papéis Diferentes" - Tom Hanks

Vamos lá falar do primeiro livro do espectacular e adorável Tom Hanks. Até à data do lançamento deste livro, eu ignorava que ele escrevia. Tinha ideia que ele já tinha sido responsável por guiões de filmes em que entrou ou produziu mas nem sabia quais. O que também não sabia é que ele coleciona máquinas de escrever e que em 2014 lançou uma app (Hanx Writer) que simula a experiência de escrever nas ditas. Se eu dei por mim a encolher os ombros perante a ideia, o mesmo não aconteceu a imensa gente que até tornou a app num pequeno sucesso pela altura do seu lançamento. 
E agora vocês perguntam “mas o que é que isto tem a ver?” e eu respondo com a sinopse.

SINOPSE
Um romance febril e divertido entre dois melhores amigos. Um veterano da II Guerra Mundial cura as suas cicatrizes físicas e emocionais. Um ator de segunda categoria que é atirado para o estrelato e de repente encontra-se no meio de uma estreia tempestuosa. Um colunista do jornal de uma pequena cidade com perspetivas do mundo moderno bastante antiquadas. Uma mulher a adaptar-se à sua vida no novo bairro depois do divórcio. Quatro amigos que vão à Lua e voltam numa nave construída no quintal das traseiras. Um surfista adolescente que tropeça na vida secreta do próprio pai.
Estas são apenas algumas personagens e enredos que Tom Hanks cria no seu primeiro livro de ficção, uma recolha de histórias que explora com grande ternura, humor e perspicácia a condição humana e algumas das suas particularidades. Todas têm uma coisa em comum: uma máquina de escrever desempenha um papel em cada história, umas vezes menor, outras vezes fulcral. Para muitos, as máquinas de escrever representam uma perícia e beleza cada vez mais difíceis de encontrar. Hanks alcança-as facilmente.

Como eu nunca leio sinopses dos livros que quero ler apenas por causa do autor, só percebi quando abri o livro que todos os contos deste “Uncommon Type” (Pápeis Diferentes em Portugal) têm como personagem uma máquina de escrever, embora num registo “never the bridge, always the bridesmaid”, esta peça não ocupa um foco central, é em muitos casos um detalhe tão ínfimo que mal damos por ele. Confesso que até cheguei ao fim de um dos contos e não me lembrava de ter visto referência mas vá, eu sou distraída :) 
Como a sinopse menciona e muito bem, os contos são do mais diverso possível. Há uns que nos prendem e nos deixam tristes por já terem terminado, outros que nos fazem sorrir por qualquer semelhança a algo que conhecemos mas depois há aqueles dos quais não guardamos grande coisa, excepto mais um modelo de uma máquina de escrever antiga, algumas delas bem bonitas. No entanto, o que levamos do livro é que o Mr. Hanks consegue transpor para o papel um pouco daquele calor que emana e que me faz gostar dele. Desafio-vos a não ouvir a voz dele na vossa cabeça quando começam a ler.
Em suma, posso dizer que gostei da experiência mas só fiquei fã de uma mão cheia de contos.
Se os seus dotes de escrita são brilhantes? 
Não sou juiz para ditar a sentença do “fica-te pelos filmes” mas posso afirmar que “Uncommon type” conseguiu despertar em mim o saudosismo por um meio antigo e no qual ainda tive oportunidade de bater umas teclas em miúda, sem compreender sequer a engenharia e mestria que aqueles monstros das letras possuíam.
Talvez contos não sejam bem a minha praia, eu que gosto abrir um livro e levar tudo a eito. Próxima vez que um livro de contos me chegue às mãos, vou optar por torná-lo um companheiro de mesa de cabeceira, para ler num regime “um conto por dia não sabe o bem que lhe fazia”.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Opinião "Clock Dance" de Anne Tyler

Willa Drake sempre dançou ao ritmo da música dos outros. Desde pequena aceitou o embalo das ondas criadas pelo conflito familiar e o desaparecimento da Mãe lançou o que seriam as fundações de uma personalidade que se sobrecarga com as responsabilidades e o bem estar alheio, sem olhar ao seu. Esta característica até podia ser encontrada numa mulher e/ou mãe galinha/guerreira que luta e leva tudo à frente mas no caso de Willa é o que a torna complacente e a leva a seguir uma vida para o qual foi levada pelas vontades e decisões dos outros. 
Uma das coisas que gosto de fazer quando vou de férias é escolher livros da estante que depois irei deixar em locais como o campismo onde vamos todos os anos e que já podia encher meia estante com os títulos que temos deixado por lá. No entanto, o objectivo não é que fiquem a ganhar pó na estante e que uma vez deixados no local das doações, encontrem sempre um novo dono e partam assim para novas paragens.
Algures num dos meus passeios deste ano, dei-me de caras com um campismo que tinha umas centenas de livros na estante dos doados e lá do meio salvei um Juan José Millas em espanhol e este “Clock Dance” de Anne Tyler em inglês. O resto estava em línguas que não domino e em idiomas que nem sequer reconheci.

O nome da autora pareceu-me familiar mas sabia que nunca tinha lido nada seu embora a Wook, minha bíblia base de dados, diga que até tenho livros da autora na wishlist. São tantas as opções que uma pessoa até se perde.
A última mudança na sua vida ocorre quando Willa se torna, fora da zona de conforto e a vários estados de distância da sua residência, a pessoa responsável pelo bem estar da ex namorada do filho e da uma miúda que nem sequer é sua neta. A aceitação de um pedido sem lógica esconde a faísca que pode incendiar tudo e é assim, entre mal entendidos, vontades, desafios e alegrias até então desconhecidas, que Willa abre um novo capítulo na sua vida, ou pelo menos, um que algures lá pelo meio começa a ser escrito pelo seu próprio pulso.

Se “Clock Dance” é uma história de “mudar de vida” ou grandes epifanias isso não posso dizer sem dar spoilers mas acima de tudo é um livro que nos relembra que há beleza nas coisas mundanas do dia a dia e que, parafraseado alguém que não sei quem, o que interessa é o caminho, não o destino. E se esse caminho for fruto das nossas escolhas, boas ou más, a única coisa que interessa é que esteja povoado por quem mais gostamos e que nos vá fazendo feliz até chegarmos ao nosso destino.

Pergunta...
quem é que já leu algum livro desta autora?
Tenho o "Amarga como vinagre" na wishlist faz muito tempo. Alguém leu?

sábado, 12 de setembro de 2020

Opinião "Os rapazes de Nickel" de Colson Whitehead


Com a chegada do correio, o pouco que ainda vamos recebendo por estas paragens, segue-se sempre a divisão dos pães literários entre as duas metades que compõem esta casa. “Os rapazes de Nickel” é, sem sombra de dúvida, uma leitura que figura do lado da metade negra mas por vezes, há livros que chamam por nós e no qual pegamos sem saber o que vamos encontrar ou o quanto o seu conteúdo se encaixa no que habitualmente gostamos de ler.


Baseado no caso real de um reformatório mascarado de escola, palco de segregação e incontáveis horrores, “Os rapazes de Nickel” começa com a descoberta, anos após o fecho e venda das terras, de corpos mutilados e campas anónimas nas imediações do local. Durante décadas de funcionamento, as queixas de violência sempre pairaram sobre a instituição como uma sombra mas nunca se fez justiça, nunca se lutou por quem lá pereceu. Quantos miúdos morreram assim? E quem não morreu, como levou a sua vida dai para a frente?


“Era aquilo que a escola tinha feito aos rapazes. Não acabava após a saída dos alunos. Amassava-os de todas as formas, deixava-os bem danificados e incapazes de te uma vida decente" 


E é assim que ficamos a conhecer Elwood Curtis, um miúdo inteligente com um futuro que tinha pernas para andar mas cujo tom de pele e a década em que nasceu, o colocaram num mal entendido que ainda hoje muda a vida de muita gente. A passagem pela Nickel, mais que um solavanco na estrada, altera por completo o terreno palmilhado daí em diante por Elwood e por outros que como ele viveram os horrores perpetrados por quem seriam os seus cuidadores. Há imagens que não se esquecem, sons que retesam todo o corpo mesmo anos depois e há cicatrizes, físicas e emocionais, que nunca saram. Como é possível sarar uma ferida que continua a sangrar? 


É impossível não sentir um arrepio na espinha perante o que o nosso imaginário vai criando com as descrições de Whitehead. Ele coloca-nos lá, mesmo sem sequer fazermos ideia do que poderá ser um inferno assim.


Onde me falta o brilhantismo na minha opinião, coloco o que roubo à divulgação do livro para vos sugerir a leitura desta novidade.


“Um romance de brutal impacto emocional. Uma obra literária que exibe a pujança de um escritor em plena forma, que explora a ferida aberta da segregação racial e levanta uma poderosa voz contra a injustiça” 

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Opinião "Extremo Ocidental"

Há livros que nos caem no colo sem contarmos e "Extremo Ocidental" foi um deles. 

Pela altura do seu lançamento (2016), chegou-nos uma cópia por cortesia da editora Elsinore mas por questões de preferências, o exemplar acabou por ir parar à outra metade desta casa literária. Dissecado, comentado e levado de viagem, esse exemplar ainda lá está na estante e o que eu acabei por ter como companhia foi encontrado num cafezinho pitoresco que em tempos foi uma antiga estação de comboio na linha do Vouga e que agora é a casa de partida para uma volta de bicicleta na ecopista. Sem querer, este livro partiu comigo e juntos rumámos ao Norte de Portugal e ao local do Capítulo 1 -  A Ilha de Insua, Caminha e a fria, ventosa e desafiante Praia do Moledo.

Calma, não vai sair daqui uma roadtrip com "Extremo Ocidental" como guia. O nosso encontro foi apenas um acaso do destino e calhou as nossas coordenadas se alinharem.

Por escrito percorri estes mais de mil e tal quilómetros de costa a visitar sítios onde nunca fui, a reencontrar os areais que conheci toda a minha vida e a compreender que somos um país cheio de locais, histórias e pessoas interessantes para conhecer.

De norte a sul mergulhamos nas praias e nas histórias, quase que nos sentimos como se ali estivéssemos


e alguém sentado ao nosso lado, a sentir o mesmo sol e o mesmo vento, nos contasse tudo sobre si e o local em que nos encontramos. É assim, a saltitar costa abaixo e indo até Marrocos, que ficamos a saber que nunca houve um pessegueiro lá na ilha e que existem parques de campismo onde não se acampa.

Este "Extremo Ocidental" permite-nos conhecer um bocadinho mais da alma do nosso país, da sua geografia e a sua gente. Se antes falei de roadtrip em tom de brincadeira, aqui fica a sugestão:

Percorrer a costa de Norte a Sul de carro, mota, carrinha ou caravana (vá vou deixar o a pé e de bicicleta de lado sem ser contra) é uma óptima sugestão para as vossas próximas férias. Com este e outros livros como companhia, quem sabe não ficam a conhecer um lado de Portugal que desconhecem.

E por falar em livros, lá para o meio da Costa, algures antes de chegar a Vieira de Leiria somos presenteados com um episódio hilariante e que já me veio à memória algumas vezes ao longo deste verão, especialmente se vejo alguém sentadinho na sua cadeira a ler como se estivesse na santidade do seu lar. Todo o leitor sabe o pesadelo (mas também o prazer) que pode ser "ler na praia", excepto quando o mar nos prega uma partida ou calhamos numa praia cheia de gente barulhenta.

Boas viagens e boas leituras.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Opinião "O Segredo de Rose"

As delicadas e surpreendentes irmãs Fowler. 
Se Violet foi uma agradável surpresa, Rose foi o equiparável à flor que lhe dá o nome. Bela, sofisticada mas no final de contas, um clichê. 


Conhecemos Rose no primeiro livro e que é inteiramente dedicado à sua compostíssima irmã mais velha. Se Violet é a cabeça dos negócios, Rose pareceu-me a lufada de ar fresco da família. Como irmã mais nova, foi sempre protegida mas isso não a impediu de marcar o seu lugar na Fleur, a empresa familiar, e desenvolver uma personalidade engraçada e descontraída. No entanto, a imagem externa que obtemos de Rose através dos olhos da irmã revela-se um pouco longe da realidade. Insegura quanto à sua posição na hierarquia familiar, especialmente no que toca à importância que cada pessoa tem na empresa, Rose chega-nos abalada pelos segredos do passado, pronta para meter um ponto final no legado familiar e a precisar de um escape. 
O que melhor que um homem para nos tirar a cabeça das coisas mundanas do dia a dia?
E o mesmo se pode dizer do contrário. 

 "Doem-me literalmente as mãos com vontade de a tocar. Mas não o faço. Não posso. Toca-la faz com que perca células cerebrais, juro por Deus"

Caden conhece Rose em Cannes, durante a apresentação do documentário sobre a família Fowler. No entanto, ele não estava lá pelos seus interesse cinematográficos. A queda astronómica do seu pai uns anos antes fez de Caden o responsável pela família, ou melhor, pela mãe. Em vez de adoptar a acção de qualquer pessoa normal e ir trabalhar, Caden decidiu enveredar por um caminho que permitiria aproveitar-se dos seus conhecimentos da alta esfera social e ganhar dinheiro, ou seja, roubando aos ricos e dando aos pobres, um Robin Hood que na realidade ficava com os ganhos e providenciava o dia a dia da sua mãe e seu.
Mas quando o seu último golpe, um colar caríssimo e que raramente vez a luz do dia, se encontra ao pescoço de uma mulher que é capaz de o desestabilizar apenas com um olhar, Caden vê a sua fonte de rendimento ficar suspensa entre a razão e o desejo de não magoar Rose.

Envoltos num nevoeiro de atracção e pouca razão, Caden e Rose vivem um romance suspenso da realidade na cidade de Londres onde os dois se encontram de passagem, ele a aproveitar a boleia no regresso a casa e ela de visita à irmã que agora se encontra a gerir a sucursal da empresa com o giríssimo Ryder (lembram-se dele?!) 

Quando ambos tomam decisões que podem mudar para sempre a sua vida, haverá possibilidade de se redimirem perante si próprios e um com o outro?


Estou curiosa para ler a sobre a terceira e última irmã, a infame Lily.
Mas ainda não tenho o livro :P

Leitura de Setembro 2018 que ficou perdida nos rascunhos até setembro de 2020

«Uma mulher desnecessária» de Rabih Alameddine :: Opinião

 



"Aaliya, a sublime, a louca."

Aaliya, a mulher desnecessária. Aaliya a mulher não religiosa, mas crente no poder dos livros, na salvação pela palavra, pela Literatura. 
Aaliya a caprichosa, a rebuscada, a livreira, a tradutora, a mulher desemparelhada do seu tempo, da sociedade que a envolve e ainda assim uma mulher tão necessária ao futuro irreconciliável entre realidade e ficção.

"Gosto de homens e mulheres que não encaixam bem na cultura dominante, ou, como Álvaro de Campos lhes chama, estrangeiros aqui como em toda a parte, casuais na vida como na alma. Gosto de outsiders, fantasmas a errar em salas cobertas de teias de aranha no castelo maldito de ter que viver."

"Incomodou-me, a vida toda, eu não ser igual a toda a gente. Durante anos, consegui convencer-me de que era especial, de que ser diferente era uma escolha. (...) Sou única, um indivíduo, não simplesmente idiossincráticas, mas extraordinária. Considerava o meu individualismo uma virtude, que me protegia e estados de espírito colectivos e insanidades, que me ajudava a elevar-me acima das correntes rápidas da família e da sociedade. A ideia reconfortava-me. Só que agora não está a resultar. E não é só de agora. Já lá vai algum tempo que não consigo muralhar o meu coração como deve ser. (...)
Não me saí tão bem como Gustave. Os meus muros não são estanques. Ao longo dos anos, surgiram brechas irregulares. (...)
Pessoa, que conhecia a alienação ainda melhor do que Flaubert, escreveu: «Mais terrível do que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros.»
Que dom para as palavras tem este poeta, que domínio das imagens."

Que dom tem também Rabih Alameddine para escrever como se fosse uma mulher, ler-lhe a alma e as ânsias, expondo particularidades e a solidão numa extensão incrível que nos deixa boquiabertas perante tal transparência e intensidade. Domínio tem também de um enredado de citações, referências, livros, quadros, poemas, filmes e tanto mais que torna este livro um manual de consulta obrigatória, para além de brindar o leitor com uma personagem fabulosa que é esta tradutora não oficial, uma mulher que se muralha e resguarda na melodia do árabe, trabalhando assim livros intemporais que são a sua melhor companhia.

"Não há nostalgia tão intensa como a saudade do que nunca existiu."

Este livro está pejado de solidão e de pequenas esperanças que morrem muito cedo, deixando um vazio  assustador que quase parece obrigatório à condição feminina naquele colosso geográfico condicionado pela sociedade patriarcal e o esmagamento pelas tradições religiosas, a Beirute muçulmana para uma mulher com mais de setenta anos, no entanto Aaliya, a resiliente, contraria o obstrucionismo enraizado e persiste no inútil, pensando e citando Pessoa.

"Ora, poderão querer saber porque é que me empenho tanto nas traduções, se depois as encaixoto (...). Pois bem, o meu empenho prende-se com o processo e não com o produto final (...)
Mas não só. No Livro do Desassossego, Pessoa escreve: «A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma actividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que se sabe estéril, e o uso fixo de normas de pensamento filosófico  metafísico cujo a importância se sente nula.»"

É sem dúvida um desassossego que sentimos a certa parte deste livro ao acompanhar a vida desta mulher, que ao sabor dos seus relatos, nos revela o passado e, tudo num espaço de poucos dias perto do final do ano, quando, por norma, acaba uma tradução e há a euforia de escolher um novo projecto para começar mais um novo ano. Mas o desassossego maior chega com um acontecimento, uma viragem, um encerrar de um capitulo, uma cena muito intensa, palpável, rica em imagens e cheiros, que sendo levada a palco, ali, acontecendo debaixo dos nossos olhos, arrancaria, por certo, lágrimas aos espectadores.

"A minha alma é um brinquedo e roer do destino. A minha sina persegue-me como um batedor experiente, como um caçador malévolo, morde-me e não me larga. Encontro outra vez o que eu pensava ter deixado para trás. Serei sempre um fiasco, no passado, no presente e para sempre. Falhar outra vez. Falhar pior*. Assisto ao desmoronamento da minha vida.
*(Nota da tradutora Tânia Ganho) 
Alusão às famosas palavras de Samuel Beckett: «Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor» 

Com esta palavras encaminhamo-nos para o fim do livro, mas também pesando o lado redentor dos livros e o ressignificar das memórias.
Um livro poderoso!

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

«Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos» de Olga Tokarczuk :: Opinião

 


"1
E, agora, tende cuidado!
Certa vez, tendo escolhido um Caminho perigoso,
um Homem justo caminhou com Humildade 
pelo Vale da Morte."

Em jeito de premonição assim começa «Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos», alertando para a Morte e trazendo consigo uma conclusão: o caminho pernicioso com que o Homem tem marcado a sua passagem pela Terra terá de ter os dias contados. A Natureza é divina e superior e precisa reafirmar a sua posição. 

"(...) São as estrelas e os planetas que estabelecem a ordem, o céu é o padrão segundo o qual surge o modelo da nossa vida. (...) Nada será capaz de escapar a esta ordem.
É preciso ter olhos e ouvidos bem abertos, associar os factos. Ver semelhanças onde os outros só vêem diferenças (...) E, ainda, não esquecer que o mundo é uma grande rede, um todo, e que não há nada que exista isoladamente. Que todo o fragmento do mundo, incluindo o mais pequeno, se encontra ligado a outros de acordo com uma complicada Correspondência Cósmica, difícil de deslindar pelas mentes comuns.
(...) A sua geração tem Plutão na Balança, o que enfraquece a capacidade de estar alerta. E acham-se capazes de equilibrar o inferno, mas não creio que o consigam fazer. (...) A realidade envelheceu, tornou-se senil, pois está sujeita às mesmas leis que todos os organismos vivos - o envelhecimento. Tal como as células do corpo, os seus componentes mais pequenos, os sentidos, também sucumbem à apoptose. A apoptose é uma morte natural, causada pelo cansaço e esgotamento da matéria. Em grego, a palavra significa «queda das pétalas». O mundo perdeu as suas pétalas."

A mensagem final é clara, mas a forma como a Prémio Nobel encontrou para conduzir o leitor é extremamente rebuscada e genuína pois encontra a sua voz na narradora Janina Duszejko, uma anciã que questiona o autismo testosterónico masculino, a tristeza genuína da Natureza e vê tudo tendenciosamente negro e meio desfocado como se olhasse a realidade por um caco de vidro fosco, orientado pelo alinhamento dos planetas e as cartas astrológicas que lhe permitem conhecer as pessoas e os eventos à sua volta.

"Tenho de tomar cuidado. Só agora me atrevo a confessar: não sou grande astróloga, infelizmente. No meu carácter existe um certo defeito, que tende a obscurecer a imagem da configuração dos planetas (...). Vejo como nos mexemos às cegas num perpétuo Crepúsculo. Vejo-nos como escaravelhos capturados em caixas por uma criança cruel. É fácil danificar-nos, ferir-nos, despedaçar a nossa existência extravagante e engenhosamente fabricada. Tudo isto eu interpreto como anormal, terrível e ameaçador. Só vejo Catástrofes. Mas se, no início, está a Queda, será possível cair ainda mais abaixo?"

É sem dúvida um livro extravagante, recheado de pequenas pérolas que conquistam o leitor, seja pelas considerações ou as brilhantes descrições da natureza envolvente e até as análises astrológicas que confundem o leitor. Mas superior mesmo é a condução do enredo por uma terra pedregosa e fria, onde a luz da lanterna que alumia a Escuridão se vai extinguindo fechando assim o ciclo da premonição inicial, a inevitabilidade da Morte!

Excertos:

 "Tenho uma Teoria. Acredito que aconteceu uma coisa terrível: o nosso cerebelo não foi devidamente ligado ao cérebro, e esta talvez tenha sido a maior falha da nossa programação. Fomos mal concebidos. Por conseguinte, o nosso modelo deveria ser substituído. (...)
Temos um corpo que é como uma bagagem incómoda. (...) A única Ferramenta, tosca e primitiva, com que nos brindam à laia de prémio de consolação foi a dor."

"- Podereis argumentar que não passa de um Javali - continuei. - Mas que dizer daquela enxurrada de carne que vem do matadouro e cai diariamente sobre a cidade como uma incessante chuva apocalíptica? (...) O mundo é uma prisão cheia de sofrimento, construída de modo que, para se sobreviver, seja preciso infligir dor a outros. Ouvistes? (...) desiludido com o que eu estava a dizer, se pôs a trabalhar; por isso, passei a dirigir-me apenas ao Caniche: - Que mundo é este? Um mundo transformado em almôndegas, salsichas, em tapete estendido junto à cama, em caldo feito de ossos de outro ser..."

"- Que vai ser de nós? - perguntou dramaticamente.
- Tem medo que os Animais nos matem também a nós?
Estremeceu.
- Não acredito na sua teoria. É absurda.
- Pensei que a senhora, como Escritora, tivesse imaginação e capacidades visionárias, e não se fechasse a ideias que, à primeira vista, possam parecer improváveis. Devia saber que tudo o que somos capazes de imaginar é uma imagem da verdade - concluí, citando Blake (...)"


«Irmão mais velho» de Mahir Guven - Opinião

 


(...) Fumar um porro para dormir é típico dos cobardes. Daqueles que se recusam a negociar com as próprias angústias e as atiram para trás das costas para fechar os olhos em paz. Mas é uma paz podre. O charro é um falso amigo do sono. (...) De manhã, ao acordar, a bochecha amarfanhada e pegajosa de baba não é sinal de repouso. Com a erva, as noites são tão nubladas como um banho turco. Há pouca luz, está húmido, não se vê a grande distância e é tudo lento."

Dando o devido destaque a este parágrafo, o leitor tem uma apresentação da acção e um aviso: o céu vai estar nublado e com poucas abertas, já que este irmão mais velho, reside nos subúrbios de Paris, num emaranhado de problemas, dúvidas e preocupações, onde as palavras se confundem entre dialectos, orações e política e "(...) Síria, Daesh, Estado Islâmico. Terroristas. As palavras do medo. Já não era preciso dizê-las, elas andavam no ar (...)"

Um irmão mais velho entregue ao volante de um Uber, para desgosto de um pai taxista, faz-nos ver a proximidade dos problemas que se vivem em França tal como acontecem aqui, no entanto, eles têm ainda a pressão e o dedo apontando por serem filhos de emigrantes e árabes, por isso, o irmão mais novo, enfermeiro, decide que o seu destino deve ser outro, um local onde se sinta mais em casa e seja realmente útil. E é aqui que a nebulosidade aumenta e cobre o céu todo. Os pensamentos confundem-se mais a cada baforada, desenterrando o passado, revolvendo a ânsia da aceitação, o sentimento de pertença e o eterno questionar pelo sentido da vida. 

"Estava no Chade, man. Um nome mágico, místico.O meu primeiro inimigo cumprimentou-me. Era grande, redondo e amarelo, e caía-me a pique sobre a cabeça, um sol de chumbo capaz de enlouquecer um leão. (...)
No Chade tornei-me verdadeiramente francês. Brancos, portugueses, magrebinos, negros, pouco importa, o uniforme abafava as diferenças. Todos iguais. Irmãos como eu. Vencidos pela vida. Antes da tropa havia por vezes droga, por vezes lutas, por vezes pobreza (...) Os mais perigosos estavam lá por vocação. Toda esta gente tinha em comum chegarem cheios de paleio de certezas sobre a vida e sobre si mesmos. Mas repletos de falhas e cheios de dúvidas. A tropa esmagava-nos para nos tornar mais fortes. Colmatava as brechas, mas não reparava as falhas."

Também sobre a religião fica-se na dúvida se vem colmatar as falhas ou abrir brechas maiores, tecendo o irmão mais velho considerações sobre o Islão: "(...) Cada um encontra sapato para o seu próprio pé, e o número que deseja andar na direcção que escolher." E sendo dessa forma: um peso, duas medidas, dificulta entendimento e aceitação mesmo no seio dos que seguem a religião e por isso mais difícil de entender motivações alheias que encaminham o irmão mais novo em direcção à Jihad. 

Porém, há sempre um lado descontraído, ao sabor de mais um bafo, e que segue várias linhas de pensamento, parecendo não dar grande importância a nenhum em particular, mas fazendo considerações irónicas, mordazes e em certos aspectos muito acertadas, que passam pelas polémicas mais actuais, tendências, tecnologia, relacionamentos, corrupção, a Uber e os TVDE's ou coisas como fazer contas à vida e ver que não se conseguem pagar todas as despesas e aí entra o lado ecológico, as manifestações, as reviews dos clientes e tudo o que mais couber numa mente atarefada no trânsito parisiense.

"Esta moda das duas rodas deve confundir os serviços policiais, e estou certo de que as estatísticas de controlos de identidade o testemunham. Como diferenciar um barbudo muçulmano de um hipster numa bicicleta sem mudanças. O problema é sério."

O problema é sério e a dúvida persiste, mas o que importa mesmo saber é se o mano mais novo é ou não um terrorista e o que faz no seu regresso a Paris.

"A dúvida é uma torneira que pinga. Gota após gota, a dúvida faz ninho no chão e cava o seu caminho terra adentro. 
(...)
O importante não é a verdade, é criar uma verdade, uma boa verdade. E essa verdade é convencê-los de que não sabias de nada."



terça-feira, 1 de setembro de 2020

«Estou viva, estou viva, estou viva.» de Maggie O'Farrell :: Opinião

 


"Respirei fundo e ouvi o bater do meu coração.
Estou viva, estou viva, estou viva."
Sylvia Plath, A Campânula de vidro

Respire fundo também o leitor, pois vai precisar. Este livro reúne 17 episódios onde a ameaça de morte foi uma possibilidade, uma constante e um pensamento ao longo da vida de O'Farrell. Nesses textos, que fluem como um romance, o leitor sente-se impelido a avançar, dono de uma curiosidade mórbida, pela proximidade de alguns episódios ou simplesmente por ser um livro muito bem conseguido, quer pela escrita escorreita, quer pela frieza com que certas palavras nos atacam e mexem com a nossa sensibilidade. Estranho? Talvez. Talvez seja mais fácil sentir enquanto se lê, por isso, leia este livro.

Para já, pense nisto: de quantos atropelamentos fugimos nós ao longo da vida? Desses "foi quase" dos quais saímos ilesos, avançamos como se nada me pudesse tocar, nada de mal pudesse acontecer, desde que eu pudesse continuar em frente, continuar a correr, continuar em movimento.

"(...) o avião que não apanhámos, o vírus que nunca inalámos, o atacante com que nunca nos cruzámos, o caminho que não tomámos. Estamos, todos nós, a deambular num estado de ignorância inocente, a pedir tempo emprestado, a aproveitar os dias, a escapar aos destinos, a escapar por uma nesga, sem saber quando será dado o golpe. Como escreve Thomas Hardy sobre Tess Durbeyfield: «Havia outra data... a da sua própria morte; um dia que se ocultava, invisível, entre todos os outros dias do ano, sem dar sinal ou fazer som quando ela passava por ele, a cada ano; e ainda assim estava inteiramente presente. Quando seria?»"

Quando seria? Como seria? Que parte do corpo atacaria?

Dividido em 17 episódios que atacam partes dispares do seu corpo, Maggie O'Farrell começa por se sentir ameaçada no pescoço, marca essa que nunca a abandonará, no entanto, a ameaça, a sentença de morte prematura chega ainda mais cedo em 77, quando ainda miúda se chegam a conclusões assustadoras que irão encaminhar decisões e experiências futuras, no entanto, o espírito fugidio e escapista da autora talvez tenham sido determinantes para partes do corpo que surgem mais adiante e as conclusões que partilha com os leitores.

"Vivi grande parte da minha vida perto do mar: sinto a sua atração, sinto-lhe a falta se não o vir regularmente, se não caminhar à beira-mar, se não mergulhar, se não respirar o seu ar. (...) Desde criança que nado sempre que posso, mesmo na água mais fria. É, na minha opinião, uma experiência muito reconfortante. Nos seus Sete Contos Góticos, Karen Blixen escreveu: «Conheço uma cura para tudo: água salgada... de uma forma ou de outra. Suor, ou lágrimas, ou o mar salgado.»"

Para além de considerações muito acertadas, existem boas referências e um ritmo imenso que prende o leitor a cada página, junto com descrições muito vívidas e partilhas muito transparentes, diria até de uma raridade genuína. 

"Sou a única abstémia de chá da minha família. Acho que eles o consideram uma perversão incompreensível. Para mim, o chá sabe a restos secos de relva, bolor de folhas diluído, composto húmido misturado com um toque de fluídos corporais bovinos. Nunca o consegui suportar."

"Está alguma coisa a mexer-se dentro de mim, nas profundezas dos canais em espiral do meu estômago, algo com garras, com presas, com intenções malévolas. (...) É como se tivesse engolido um demónio."

São vários os demónios que sugam a energia a esta autora, um deles é o da rotina, da doença ou da normalidade, para combatê-los, escreve e viaja, só isso é capaz de fazer frente à inquietude borbulhante que nunca a abandona.

"Depois de ter percorrido o Mediterrâneo em 1869, Mark Twain disse que viajar era «fatal para o preconceito, a intolerância e a mesquinhez."

Ler este livro também tem algo de fatal, é uma valente viagem, recheada de sabedoria e partilha que de certeza, tocarão no âmago de algumas memórias pessoais. 

*

Uma descoberta que este livro me trouxe foi o podcast «Contos Não Vendem» de Joana Neves, tradutora deste livro. Um dos episódios traz-nos o conto "O Que Veio Salvar-me", de Virgilio Piñera, lido por Manel Moreira que faz muito bem a ponte para o tema da morte, especialmente para o conto «Corpo Inteiro» neste livro de O'Farrell.

Vale a pena ouvir, aqui.