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quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

«Desenhos Ocultos» de Jason Rekulak - Opinião


ONDE METI EU O PAPELITO COM O TEXTO SOBRE ESTE LIVRO?

Podia ser a introdução a esta opinião ou antes a história dos meus últimos tempos com esta mania que se instalou, a de rabiscar opiniões em pedaços soltos de papel e depois perder-lhes o rumo. Um saga sem fim à vista!

Desabafos à parte, «Desenhos Ocultos» - que eu teimo em apelidar de Obscuros - foi um leitura por impulso. Abri o livro e gostei dos desenhos, tanto os mais infantis como os mais cuidados e fiquei curiosa como evoluiria a história para partirmos de uns e chegarmos a outros. 

Jason Rekulak conduz-nos até um casal para desde cedo percebermos que algo vai mal e ficarmos de olho naquela relação. A voz de Caroline é paciente e conciliadora; as respostas de Ted são curtas e duras, preciso e com as palavras bem marcadas. «É como ouvir um violino a dialogar com um martelo-pneumático». Ainda assim, enquanto dialogarem, a vida vai fluindo e são capazes de decidir a contratação de Mallory Queen.

Mallory tem apenas vinte e um anos, mas a sua história já traz um disclaimer: 

"AVISO: É fácil resvalar, mas não se cai sozinho!"

E se juntarmos a história de Mallory com a que se vai desenrolando sobre Annie Barrett está montado o enredo obscuro possível de se cruzar com ensinamentos dos melhores livros, tal como Adrian lhe dá a perceber quando recorda as palavras de Spock, parafraseando Shelock Holmes:

"Quando eliminamos o impossível, o que resta, por muito improvável que seja, deve ser verdade."

Mesmo com os sábios conselhos dos livros, a cabeça de Mallory tem o hábito de criar impossíveis, de fazer cenários e driblar entre histórias sem sentido, nem que seja para esquecer que está à distância de uma pedrada em Filadélfia, portanto ela tem de compreender o que de oculto se esconde nos desenhos obscuros 😉 que substituíram os rabiscos e as figuras-palito inocentes e típicas das crianças da idade de Teddy.

"Nunca consegui encontrar as palavras exactas para descrever a sensação - a estranha impressão - de qualquer coisa a esvoaçar na periferia dos meus sentidos, por vezes acompanhada por um zumbido agudo."

Entre estudos científicos sobre «detecção de olhares» e tábuas de espíritos, oscilamos entre tentativas da ciência explicar o que as sessões espíritas caseiras confundem, mas o mais engraçado é o humor que os diálogos com o pequeno Teddy assumem, mostrando-se tão perdido quanto o leitor.

"Eu tento inventar histórias (...) mas o príncipe Teddy só quer falar de tábuas dos espíritos. Precisam de pilhas? Conseguem encontrar qualquer coisa morta? (...) espero que ele perca o interesse, mas em vez disso pergunta se é possível fazermos uma."

O interessante do livro é a forma como o autor capta diversos universos mentais em função das idades e experiências de vida, fazendo-os conviver a todos na casinha rústica de subúrbio até colidirem e com isso dá um ritmo em crescendo à narrativa, conseguindo imagens bastante interessantes: «somos como bolas de sabão com que o Teddy gosta de brincar - mágicas, flutuantes, mais leves que o ar - condenadas a rebentar a qualquer momento», tal como o desfecho que rebenta na cara do leitor, completamente inesperado.


segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

«A Vida não é aqui» Milan Kundera - Opinião



“O poeta necessita de uma metade mágica para fazer poesia.” Otávio Paz

Será essa metade a mãe? A vida ou a morte? A guerra? Ou a resistência?

Ao poeta não podemos exigir que evite a guerra. Mesmo palavras poderosas que ferem e separam. Mesmo essas, não matam. Por isso, ao poeta, só podemos pedir que resista e reconstrua os vazios da guerra, num diálogo alimentado a ausências.

Em “A vida não é aqui”, Kundera “deixa” escorregar do corpo de uma mulher, para os lençóis manchados do mundo, um poeta. Um bebé primaveril e por isso de nome Jaromil ;) Com o bebé nasce uma mãe, experimentando a poesia abrupta do corpo, uma animalidade que até ali a repugnava.

“Tratava-se de uma coisa completamente nova, porque a mãe experimentava desde a infância uma repugnância relativamente à animalidade, tanto dos outros como sua; achava degradante sentar-se no assento das sanitas (…), e havia mesmo alturas em que tinha vergonha de comer diante de gente, porque a mastigação e a deglutição lhe pareciam repugnantes. E eis que estranhamente a animalidade do seu filho, erguida acima de toda a fealdade, purificava e justificava aos olhos dela o seu próprio corpo.”

Talvez a metade mágica seja o amor, nas suas mais variadas formas e lutas e Jaromil teve a sorte de começar a vida com o amor materno, bem como o da restante família, porém se a falta de amor causa danos, tê-lo não o isentou de dissabores.

“O amor materno imprime na fronte dos rapazes uma marca que repele a simpatia dos colegas.”

E talvez alguns dissabores o conduzam a alguma solidão, uma solidão povoada por companhias fantásticas, tornando-a numa solidão produtiva.

“Sonhar com cães tornou-se a paixão da sua solidão (…) e como passava muito tempo à secretária do pai com um lápis e papel (…) de maneira que os seus devaneios e a sua falta de jeito deram origem a um universo estranho de homens cinocéfalos, um universo de personagens…”

Porém, quando as solidões se cruzam abrem brechas que podem virar abismos: “o abismo da intimidade ilícita e da compreensão proibida.”

Um livro sobre o universo interior que se alimenta muito do que não é dito, embora o que é dito e dado a entender nas entrelinhas seja suficiente para de uma história tecer várias, enredando-lhe os fios com os da literatura, da guerra, da filosofia, da poesia, da traição, da obscuridade, da loucura e da depressão, do amor e da solidão. Ou seja, a vida a enredar-se na vida. Nas vidas! Quando uma se esconde, outra se revela.

“Xavier não vivia uma vida só estendendo-se do nascimento à morte como um longo fio sujo; não vivia a sua vida, mas dormi-a; nessa vida-sono saltava de um sonho para outro sonho; sonhava; adormecia a sonhar e sonhava outro sonho, de tal maneira que o seu sono era como uma caixa na qual entre uma outra caixa, e nesta uma outra caixa ainda, e nesta outra, e assim por diante.”

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

«A Ignorância» de Milan Kundera :: Opinião


Lido pela primeira vez em 2010, «A Ignorância» é um pequeno livro cheio de grandes questões como é hábito conterem os livros de Milan Kundera. Nessa primeira leitura foquei-me na nostalgia, memória e regresso e desta não foi muito muito diferente, embora seja curioso ver a diferença entre os trechos selecionados. 

Um homem, Josef, vê-se a braços com um regresso e as indagações que daí advêm, quando se confronta com a pátria e uma mulher. Irene, da qual não se lembra, mas com o que ele mais se confronta é com a memória e a certeza de que o regresso é a reconciliação com a finitude da vida, caso contrário, seria alimentar a eterna fuga, «habitar o infinito», que foi precisamente do que fugiu quando deflagrou a guerra e o comunismo. 

E a dúvida instala-se! Atormenta-o. Aliás, atormenta-os a ambos, numa fraternidade nocturna, cujo sonho comum expõe os mesmos medos.

“Também a memória não é compreensível à falta de uma abordagem matemática. O dado fundamental é a relação numérica entre o tempo da vida vivida e o tempo da vida armazenada na memória. Nunca se tentou calcular esta relação e não existe de resto qualquer meio técnico de o fazer; no entanto, sem correr grande risco de me enganar, posso supor que a memória não guarda mais que um milionésimo, um bilionésimo, em suma uma parcela perfeitamente ínfima da vida vivida. Também isto faz parte da essência do homem. […] 

Nunca acabaremos de criticar os que de forma o passado, ou reescrevem, ou falsificam, que dilatam a importância de um acontecimento, e calam a de outro (…) À margem da nossa vontade e dos nossos interesses. Nada se compreenderá da vida humana enquanto se persistir em escamotear a primeira de todas as evidências: a realidade, tal como existia quando existia, já não existe; a sua restituição é impossível.”

 Atormenta-os também, a necessidade tão grande de catalogar e medir a dor e sofrimento, entre quem partiu e quem ficou, explorando uma ideia de hierarquia da dor, juntamente com os sentimentos de traição e amputação, dividindo novamente quem foi e quem resistiu, restituindo-se o reconhecimento como vítimas. Restituindo-se direitos. 

“Primeiro, com o desinteresse total pelo que ela viveu no estrangeiro, amputaram na de vinte anos de vida. Agora, com este interrogatório, tentam voltar a coser o seu passado antigo e a sua vida presente. Como se a amputassem do antebraço e lhe fixassem a mão diretamente no cotovelo, como se a amputassem das pernas pelo joelho e lhe prendessem aos joelhos os pés ponto siderada por esta imagem, não é capaz de responder nada às perguntas delas (…)”

Questionando a deformação da memória, essa «memória que o detestava, que não fazia outra coisa que não fosse caluniá-lo; esforçava-se por isso por não acreditar nela», por manter a sua «insuficiência de nostalgia» e «à medida que trechos da sua vida caem no esquecimento, o homem desembaraça-se daquilo de que não gosta e sente-se mais leve, mais livre», ainda assim, para se apaixonar, é preciso estar presente e no presente. E a paixão é a exaltação do presente, da vontade de viver, mas como poderia conhecer o sentido do presente quem não conhece o futuro?


segunda-feira, 28 de novembro de 2022

A Balada de Adam Henry de Ian McEwan :: Opinião


“Ela tinha poder para retirar o filho a um pai cruel, e por vezes fazia-o. Mas retirar-se a si própria a um marido cruel? Quando estava fraca e inconsolável, onde estava o juiz para a proteger? (...)

O rosto do marido estava tenso quando ele encolheu os ombros e saiu da sala. Ao ver as costas dele afastarem-se, ela sentiu o mesmo medo frio. Se não fosse o receio de ser ignorada, teria chamado por ele. O que poderia dizer? (…) e depois o silêncio a abater-se sobre o apartamento deles, o silêncio e a chuva que não parava havia um mês.”

Ian McEwan tem uma capacidade muito própria para, em poucas palavras, dizer o indizível e dar vitalidade ao não-dito que chega a sufocar com os silêncios gritantes a cada frase. A solidão, a melancolia se entranha em eventos complexos, causa de contornos irreparáveis que mexem escorregadiamente com as emoções e os sentimentos dos seus personagens. E por conseguintes os dos seus leitores.

“Aqueles eram pensamentos novos, aquela era a forma como o verme da suspeita infestava o passado.”

O passado, a suspeita, os fantasmas dos problemas que se tentam camuflar com a passagem do tempo... esses medos frios autodestrutivos que quando nos confrontam nunca chegam sós. Um impossível nunca chega sozinho, diria Saramago e neste enredo de McEwan é bem visível.

Fionna May é essa mulher de poder, que encabeça um desfile de adultos importantes e importunos, cheia de si e das suas conquistas, uma juíza do Tribunal de Família, cujo os casos mediáticos, de causas duríssimas, têm infligido lanhos profundos no seu casamento já votado a uma certa surdez conjugal, mas não tão profundos quanto a traição de Jack cravou na sua auto-estima e energia.

A amante mais nova que ela não anteviu. O pedido descabido por uma relação aberta. Uma amante nova, ardente e voluptuosa enquanto ela envelhecia, vendo nos milímetros paranoicos, ainda assim mensuráveis, dos tornozelos que engrossavam, da cintura que se avolumava ou “os cantos da boca a começarem a descair em busca de uma expressão de constante recriminação. Muito razoável numa juíza de cabeleira a fitar o advogado de cenho franzido. Mas numa amante?”

É isso que Fionna se sente, uma juíza de cenho franzido, embrenhada em processos complexos, condicionada por questões éticas e religiosas, onde a ciência e a lei ora se cruzam ora caminham para lados opostos e é preciso sentenciar para impedir um mal maior.

Quantos males menores deixou Fionna pelo caminho, não como juíza, mas como mulher, como esposa?

Adiamentos, remorsos, culpa e amargura dão uma capa de frieza, pragmatismo e poder a uma mulher que carrega arrependimentos que despertam agora atitudes que a surpreendem perante um novo caso, o de Adam Henry. A pressão e o mediatismo do caso e as escassas horas que separam Henry de uma sentença de morte. Caso o tribunal não decida contrariamente aquela que é a sua vontade, suportada na devoção e ensinamentos religiosos, Henry sucumbirá por falta de uma transfusão de sangue.

“De novo a religião (…). Todo o circo a ser montado, mas tão lentamente (…) como um balão de ar quente, torto e mal amarrado.”

Perante a assombrosa singularidade do caso (também porque Adam Henry é um adolescente excepcional e cativante, apesar de condicionada à educação ininterruptamente religiosa monocromática), a crueldade da doença, a dualidade religião/ciência e a fragilidade e autocomiseração que a assaltam e deixam indefesa nesta fase da vida, Fionna sente-se amordaçada entre convicções, dúvidas e arrependimentos antigos que esbarram em toda uma teatralidade de uma máscara que está cansada de usar.

“O seu tom emocional, como ela por vezes o designava e que gostava de controlar, era uma completa novidade. Um misto de mágoa e de indignação. Ou de nostalgia e de fúria. Queria que ele voltasse e nunca mais o queria ver. A vergonha também era uma componente.”

“(...) adiando o momento do regresso, perguntando-se de novo se aquilo que perdera não seria tanto o amor quanto uma forma moderna de respeitabilidade, se o que temia não seria tanto o desprezo e o ostracismo, como nos romances de Flaubert e Tostói, mas a piedade. Ser alvo da compaixão geral era também uma forma de morte social. O século XIX estava mais próximo do que a maioria das mulheres pensava. Ser apanhada a representar o seu papel num estereótipo revelava mais mau gosto do que uma falta de moral.”

McEwan é exímio ao escrever sobre sentimentos e sobre todas essas energias que confluem para as relações humanas, ainda assim, consegue uma mistura muito equilibrada entre temas polémicos, casos reais, critica social, reflexões muitos actuais e sensações e sentimentos, tudo milimetricamente organizado num tom poético extremamente vívido.

“Em vez disso, ficou ali, indefesa perante o momento. A sensação de pele contra pele anulou qualquer possibilidade de escolha.”

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

«28 livros para te encontrar» de Ali Berg e Michelle Kalus - Opinião

 


E se para encontrar o amor tiveres de alargar os teus horizontes literários, aceitas?

«28 livros para te encontrar» de Ali Berg e Michelle Kalus tem no original um título bem mais curioso: «The Book Ninja», porque Frankie e Cat, amigas de longa datas, espalham livros, camufladamente, nos comboios e dobram-se e torcem-se em aulas de yoga, contando equilibrar a insanidade hormonal, que por motivos bem diferentes, pauta os dias de cada uma delas. 

Por isso, entre hormonas, remédios literários e analgésicos em forma de croissants, as duas amigas de longa data têm planos para encontrar (ou manter!) o amor das suas vidas, gerir uma livraria, ler clássicos e outros tantos livros repetidos e claro, fazer yoga, tomar smoothies verdes e estragar tudo isto com episódios açucarados, fobias a bananas, encontros amorosos clandestinos e discussões que contrariam teorias filosóficas da grande ;) Samantha Jones. 

Posto isto e encarando que por vezes erramos no calor do momento, apatetando algumas decisões, ambas as amigas aprendem que mesmo caindo em casulos de tricô 😜 as quedas doem e as nossas decisões têm eco nas vidas dos que nos são mais queridos. 

Por isso, enquanto o amor não acontece ou fica atrapalhado entre asanas mais difíceis, Frankie e Cat distribuem sugestões de leitura, acreditando que os livros reflectem aquilo que já existe dentro de nós e que discuti-los devia ser o melhor caminho para se percorrer um encontro, mas mesmo assim: «como pôr todos os livros no mesmo cesto?»

E tu, estarias disposta a alargar a tua lista de leituras para encontrar o amor? 🙃😍

Por aqui, tomei algumas notas:
- (In)Fidelidade: Repensar o Amor e as Relações de Esther Perel 
- O fardo do amor de Ian McEwan
- Eu Dou-te o Sol de Jandy Nelson
- Um homem em busca de um sentido de Viktor E. Frankl
- Estamos todos completamente fora de nós de Karen Jay Fowler
- Middlesex de Jeffrey Eugines

E sublinhei alguns que já constam da "lista":
- Emma
- A sombra do vento
- A menina perdida & achada
- O ódio que semeias





terça-feira, 15 de novembro de 2022

«O Jogo do Mundo» de Julio Cortazar :: Opinião

o tal capítulo 7 de Rayuela

"Toco a tua boca. 

Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.

Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água."

*

A transcrição deste excerto visa apenas demonstrar a beleza e a perfeição de um capítulo que, só por si, é um livro inteiro; um livro que se lê sem se saber muito bem o que se está a ler, como se deve ler, quem é quem e qual é o seu papel, qual é o sentido de tudo aquilo... numa época "lá" e outra "cá", que é como quem diz Paris e Buenos Aires, respectivamente, acompanhamos um homem que se desdobra, caminha, ama, divaga e convive.

E talvez o que mais nos fique são as suas angústias, o amor e considerações afectivas e claro, divagações. Quase uma centena de divagações que o autor isenta o leitor da necessidade de lê-las para ter o livro como completo. 

Claro está que esses 99 “capítulos prescindíveis” são provavelmente aqueles que vamos logo atacar, como quem pica e debica e vai provando para saber se fica ou não cortazado.

Rayuela é um puzzle com capítulos-peça cujo arestas estão em falta ou dobradas e nem sempre encaixam. Ou encaixam! Já que a sua composição experimental deixa em aberto todas as direcções possíveis, apelando à interpretação (e criatividade?) de cada leitor, exigindo-lhe que participe e decida. 

Um romance interminável que marca uma viragem na forma de fazer literatura e que está carregado de simbolismo, metáforas, jogos narrativos e de linguagem, expondo ideias e reflexões ainda bastante actuais ou até premonitórias; a própria metáfora do título/jogo da macaca como forma de estar - e ir andando na vida - é brilhante e até muito acertada!

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Este livro foi lido no seguimento de «O Avesso da pele» de Jeferson Tenório que faz referência, especificamente, ao memorável capítulo 7

*

Conteúdo selecionado para o artigo "11+ livros incríveis para celebrar o Dia Mundial do Livro", publicado no blog da editora educativa Twinkl.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

O INTRUSO de Tana French - Opinião

 


Cheguei a Tana French e ao seu cáustico INTRUSO pelas estantes da biblioteca que às vezes percorro como se de uma montra de doces se tratasse ;)

Ao pegar e ler: “A Brigada de Homicídios não gosta da detetive (vou fingir que está lá o “c”) Antoinette Conway. (...). Consegues vencer um assassino, mas vencer a tua própria equipa é outra coisa.” fiquei logo de pulga atrás da orelha.

“Breslin abre a porta para que eu possa sair primeiro da sala de observação e não trocar uma palavra com Steve nas costas dele – não que precisemos de trocar sussurros, mas ainda assim. O corredor devia envolver-me com a familiaridade de um lar: tem a tinta verde a descascar e a alcatifa gasta e tudo; devia parecer um caminho conhecido através do meu território, levando-me direita e em segurança (…) em vez disso, parece um trilho não assinalado através da terra de ninguém pejado de buracos traiçoeiros e armadilhas.

(…). Nunca tinha percebido que precisamos realmente que a brigada seja uma parte de nós, próxima e de confiança como o nosso próprio corpo, para conseguirmos sobreviver a ela.”

Um thriller psicológico, carregado de muita lama a turvar a água, onde os que deviam ser os bons são os maus (aparentemente) faz sempre pensar nos motivos por que tal acontece e por isso mesmo eu queria ter recebido mais deste livro, no entanto, o forte deste enredo está na perseguição que Conway sente e o texto explora e transborda dessa pressão psicológica de que é vítima por parte da sua equipa e em especial pelo pavãozinho inchado do Breslin (UMA TOUPEIRA?). Isso tudo, junto com a teoria dos “ses” em que o detective Stephen Moran (o colega e compincha de Conway) é perito e que lhes dá pilhas de nada (mas que dão trabalho), fazem o livro e justificam a sua leitura numas tardes de esplanada a torrar ao sol (enquanto na Irlanda o tempo faz caretas – sempre!).

“- E se ela o encontrou? (…) E se afinal não fosse um namorado? Se fosse o pai dela? (…), dou dar em doida se tiver de aguentar mais tempo esta merda do se.
- Está bem – diz Steve (…). Então, se o pai quer compensá-la pelos anos…
- Caralho – respondo, ligando o Kadett e ficando a ouvi-lo protestar por ter sido acordado. – E se eu te pagar para não fazeres essa merda? Funciona?
- Devias tentar. Aceito cheques.
- Aceitas barras de Snickers? Porque pelo menos fechas a matraca quando estás a comer.
Encontro o Snickers na mala e atiro-lhe para o colo, e ele dedica-se a devorá-lo. (…). Sei que o Steve não é o puto sardento simplório que aparenta ser, mas ainda assim… Parece, isso sim, estar a pensar no chocolate.
- O que foi? – pergunta com a boca cheia.
- Nada – respondo. – O silêncio combina contigo, só isso. – E dou por mim a sorrir ao avançar para o meio do trânsito.”


French tem um discurso cáustico e humoristicamente negro que elevam o livro e melhor, consegue-o ao longo das mais de 450 páginas, sem cansar o leitor, até mesmo quando a acção e alguns desfechos são previsíveis.

E os diálogos são top! Sejam eles entre a dupla de novatos: Conway e Moran ou Conway e Breslin a embirrarem e a desconfiarem um do outro, ou ainda em dois momentos muito bons de interrogatório, superando a já habitual cena do polícia bom, polícia mau.

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Nomadland - sobreviver na América do século XXI :: Opinião


Nomadland é um relato sobre como sobreviver na América do século XXI evitando ser atropelado por beterrabas rolantes ou sucumbir debaixo de um desabamento de tralha, enquanto ajudantes de um moderno Pai Natal em armazém da Amazon enquanto dura a bonança consumista.

Poderia ser um relato de uma experiência divertida ou até desafiante, mas a maioria destes campistas sobre rodas, uns sem-abrigo nómadas modernos, viram-se obrigados a reestruturar as suas vidas em função de empregos sazonais mendigados e obsessivamente controlados por gigantes com a Camperforce da Amazon.

O trabalho de Jessica Bruder não se apoia tanto na critica ou denúncia, antes expõe um mapa da geografia possível para o (novo) american dream; o de não sucumbir, em idade de reforma, a dificuldades tão grandes como a da total insolvência.

Neste novo sonho, o possível, existem pessoas destemidas que com os seus testemunhos levam o leitor numa viagem imersiva, deixando-o fixo na forma dolorosa em como subsistem, mas também a forma comunitária e quase idílica em que, juntos, persistem!


                                                


E enquanto não chega a possibilidade de ver o filme em DVD, fica uma entrevista interessante sobre o ponte de vista da autora face à adaptação do seu trabalho à grande tela.
*
O que sentiu quando viu que Nomadland levou três estatuetas do Oscar para casa, incluindo a de melhor filme? Foi insano. Para mim, a parte mais empolgante foi ajudar Linda Mae e Swanky...


Leia mais em: 
https://veja.abril.com.br/cultura/o-filme-e-o-livro-sao-criaturas-bem-distintas-diz-autora-de-nomadland/

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

“O meu nome era Eileen” de Ottessa Moshfegh :: Opinião


"(...) raramente sorria. Quando sorria, fazia um enorme esforço para impedir que o meu lábio de cima subisse, tarefa que exigia uma grande austeridade, consciência e autodomínio. Nem dá para acreditar no tempo que passei a disciplinar aquele lábio. Sentia deveras que o interior da minha boca era uma parte íntima, saliências e reentrâncias de carne húmida separada, por isso, deixar que alguém o visse era algo tão mau como abrir as pernas."

Otessa Moshfegh conseguiu redesenhar os contornos da solidão. Uma solidão bem afiada, decadente, sórdida e profundamente sombria e dentro dela está Eileen. 
Eileen Dunlop é protagonista e narradora deste enredo sufocante e caótico, para o qual é impossível não nos sentirmos puxados tal é o fascínio (e também alguma repulsa) por esta personagem de mente fantasiosa e rebuscada, dona de atitudes bruscas e arrogantes, mas também contida, púdica, perdida. 

Eileen é um misto de invisibilidade com lança-chamas, embora muito do que aconteça se passe só na sua cabeça, é na forma como o revela que se desnuda, seja com sensibilidade e atenção ao detalhe, seja na total crueza e fúria. Uma fúria reprimida.

"(...) quando a minha mãe faleceu, passou a beber gim. A melhor explicação que consigo encontrar é que talvez o gim lhe fizesse lembrar o perfume dela - ela usava uma eau de toilette forte, floral, mas acre, de marca Adelaide - e que talvez absorver a fragância da morte de algum modo o apaziguasse. Ou talvez não. Ouvi dizer que um trago de gim nos torna imunes aos mosquitos e a outras pragas. Por isso, talvez ele o bebesse tendo essa lógica por base."

Também Eileen tinha uma lógica semelhante. Engolia remorsos enquanto se empanturrava de gelado, misturando tudo com álcool e comprimidos, alimentando ideias tóxicas que lhe consumiam o corpo. Quando atingia o limite, expelia tudo a toque de laxantes, celebrando o festim de excrementos e as manifestações corporais que tanto a fascinavam.

"Eu parecia extremamente fastidiosa, insípida, apática e impassível, mas na verdade estava sempre furiosa, violenta, com os pensamentos em rodopio, a mente como a de um assassino. (...) Eu gostava de livros sobre coisas tenebrosas, tais como assassínios, doenças e morte (...) para estudar a macabra prática de extrair o cérebro dos defuntos pelo nariz como se fossem meadas de lã. Gostava de pensar no meu cérebro desse modo, emaranhado dentro do meu crânio. A ideia de que o meu cérebro podia ser desemaranhado, endireitado e, desse modo, refeito num estado de paz e sanidade, era uma fantasia reconfortante."

"O meu nome é Eileen" é um relato inteligente, obscuro e bastante equilibrado no quanto brinda o leitor com momentos de elogio e de delírio (e também com momentos desagradáveis) mostrando como uma família disfuncional pode danificar a imagem que uma criança tem de si e do mundo, mas mais ainda, é um relato sobre o mundo interior, a psique e o que ela não revela na convivência do dia-a-dia. 

"Por muito desprezíveis que fosse, as minhas colegas de trabalho não ocupavam um lugar cimeiro na lista de pessoas abjectas que fizeram parte da minha vida (...) As minhas colegas eram por demais taciturnas, insípidas e afectadas (...).
Consigo ainda recordar as imagens mentais que eu fazia delas em posições sexuais, as caras enfiadas nas partes pudendas uma da outra, contorcendo os narizes por causa do cheiro enquanto esticavam as línguas.
As minhas suspeitas em relação às minhas colegas de escritório não eram necessariamente depreciativas. Ajudavam-me a nutrir alguma compaixão..."

O desajuste, a indiferença, a falsa responsabilização ou culpa e a maledicência, juntamente com uma solidão profunda alimentaram em Eileen um fardo pesado e o uso constante da uma máscara fúnebre, mas mesmo assim, denunciadamente triste e só, Eileen era invisível.
E o manto da invisibilidade não era um crime seu. Cresceu com ela, enquanto desabrochava espicaçada e ridicularizada, numa infância descarnada de qualquer carinho, atenção ou sequer a lancheira preparada.

*

Leia mais sobre este livro no artigo de Gonçalo Correia/Observador por ocasião do Festival Literário da Madeira (2018) com a presença da autora.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

«Uma Vida à Sua Frente» de Romain Gary :: Opinião

Numa França vista do 6º andar de um prédio pobre, Momo, um rapaz que “não foi datado” vive aos cuidados de Madame Rosa, ex-prostituta e ex-judia, (os próprios papéis provam essas “não-existências”) que o recebeu por ele ser uma “criança ilegal”, “um filho de puta”. Mas os anos estão a passar e os quilos da Madame a aumentar à mesma velocidade que o seu corpo se deteriora com eventos em que a cabeça ganha pernas e vai passear.

As histórias destes Miseráveis, porque Victor Hugo e a sua capacidade de descrever a França e a miséria são uma inspiração e aspiração de Momo (e do Senhor Hamil) que, quando crescer, quer escrever assim a histórias dos seus miseráveis e Roman Gary consegue isso mesmo em «Uma vida à sua frente» na voz desta criança de dez anos, Momo, que com a sua inocência, própria da idade, mas com a perspicácia (e alguma confusão, já que Momo ao início era muito novo para ir à escola e de repente já tinha idade a mais) de quem teve de se desenvencilhar sozinho… até para ter uma mesada!

“Quando os vales deixavam de vir para um de nós, a Madame Rosa não punha o culpado na rua. Era o caso do pequeno Banania, o pai dele era desconhecido, logo não o podíamos censurar por nada; (…) a Madame Rosa ralhava com o Banania mas ele estava a borrifar-se, porque só tinha três anos e sorrisos. Acho que a Madame Rosa teria dado o Banania à Assistência, mas não o seu sorriso, e como não se podia separar um do outro, via-se obrigada a ficar com os dois.”

Momo narra a sobrevivência que por ali se vive quase sem maldade, embora exista dinheiros e leis à mistura, coisas que Momo pouco percebe, entre muitas outras, mas de solidão, desamparo e ausências Momo percebe.

“Não faço ideia do que me deu, mas havia anos que não tinha mãe nem pai, nem mesmo bicicleta (…). Fiquei todo tocado e possuído pela violência, nem dá para acreditar. Vinha de dentro de mim, e é ali que é pior. Quando vem de fora com pontapés no cu, podemos sempre fugir. Mas de dentro, não é possível. Quando me apanha, quero ir-me embora e não voltar mais a lado nenhum. É como se estivesse alguém a morar dentro de mim. Começo a gritar, atiro-me para o chão, bato com a cabeça para sair, mas não é possível, não tem pernas, nunca temos pernas dentro de nós. Faz-me bem falar disto, aliás, é como se estivesse a sair um pouco. Estão a perceber?”

E o leitor vai percebendo!

Vai aceitando a dureza do relato enquanto desanuvia pelo humor e ironia com que é descrita e é aí que reside toda a peculiaridade da escrita de Gary; é na força do humor, pelo traço inocente da voz de Momo que a fronteira que segrega estas pessoas, a invisibilidade e o preconceito em que vivem, é denunciada.

Ainda assim, existem excepções, e ainda bem!

“Eu ia muitas vezes sentar-me na sala de espera do Doutor Katz, já que a Madame Rosa repetia que era um homem que fazia o bem, mas não senti nada. Talvez por não ter ficado tempo suficiente. Sei que há gente que faz o bem no mundo, mas não fazem isso a toda a hora e é preciso calhar no momento certo. (…) A Madame Rosa dizia que o Doutor Katz era a medicina geral, e é verdade que se via de tudo ali, judeus, claro, norte-africanos, para não dizer árabes, negros (…)”

«Uma vida à sua frente» denuncia e reflecte sobre temas que ainda hoje são discutidos, seja pela controvérsia, seja pela herança tóxica dos conflitos armados, do colonialismo ou outros que ainda têm muito de tabu, como é o caso da eutanásia.

“Não queria ouvir falar do hospital onde nos fazem morrer até ao fim, em vez de nos darem uma injecção. Dizia que, em França, estão contra a morte serena e que nos obrigam a viver enquanto ainda formos capazes de sofrer. A Madame Rosa tinha um pavor à tortura e dizia sempre que, quando tivesse que chegasse, far-se-ia abortar. (...) Vi logo que ela se tinha deteriorado mais na minha ausência e sobretudo em cima, na cabeça, onde ela estava pior do que nos outros sítios. (…) estava tão danificada que até os seus cabelos tinham parado de cair porque o mecanismo que os fazia cair tinha-se também deteriorado.”

É impossível ao leitor não sorrir, por vezes até rir à gargalhada com os termos inocentes de Momo, num humor afiado, quase cáustico, que dão toda uma outra dimensão ao que nos narra e a leveza com que revela preocupação pelo sentido da vida: “se quiserem a minha opinião, o tempo, é para os lados dos ladrões que temos de o ir procurar.”

Procurar o tempo junto dos ladrões, abortar alguém na velhice, “perder-se no seu interior” ou “ter uma cabeça que passeia” quase que retira seriedade aos assuntos, mas acrescenta uma sensibilidade enorme a uma criança que efectivamente é responsável por uma mulher idosa com demência e a quem, se pudesse, daria uma morte digna e como ela pretendia, enquanto ainda podia escolher.

“- Vão obrigar-me a viver, Momo. É o que fazem nos hospitais, têm leis para isso. Não quero viver mais do que o necessário. Há um limite, até para os judeus. (…) Não quero viver só porque a medicina o exige. (…)
Prometes?
- Khaïrem.
Quer dizer «juro» (…)
Eu teria prometido qualquer coisa à Madame Rosa para fazê-la feliz, porque mesmo quando se é muito velho a felicidade ainda pode ser útil (…).”

A felicidade mesmo que a conta gotas é sempre útil e dá-la, às vezes até sem a ter, é um acto de amor. E é preciso amar mesmo que seja num «buraco judeu». E Gary conseguiu um livro terno, não pelo que conta, mas pela forma como o faz, com um humor redentor.


segunda-feira, 15 de agosto de 2022

«Terra Alta» de Javier Cercas :: Opinião


“(…) a lembrança mais nítida que Melchor guardava da sua infância era o ruído, um ruído tão ubíquo quanto persistente, que lhe parecia indistinguível do som habitual da realidade, como se esta carecesse do direito a existir sem o barulho dos tubos de escape, das buzinas dos carros, (…) sem gritos ébrios ou insultos aguerridos ou rixas de vândalos (…) um bairro tóxico.”

Diz-se que a realidade supera sempre a ficção e a vida de Melchor, aqui descrita sobriamente por Cercas, é a prova disso. Um menino destinado a ser um Rei Mago, que disso só herdou o nome, Melchor, cresce desamparado e crente nos males da sociedade. Maltratado, mas também capaz de maltratar é encarcerado e aí descobre o seu caminho, converter-se pelo poder da literatura, através de sucessivas leituras de Os Miseráveis.

«Da sociedade não recebera senão males. Os homens só lhe tocaram para o maltratar. Qualquer contacto que com eles teve significou uma ferida (…) de sofrimento em sofrimento, chegou à convicção de que a vida é uma guerra e de que, nessa guerra, ele era o vencido. E, não tendo outras armas para além do ódio, resolveu aguça-lo no presídio e levá-lo consigo à saída.»

Guiado por excertos que toma como guias orientadoras da sua vida, Melchor, um Javert secretamente virtuoso, decide dedicar a sua vida a sarar o ódio que asfixiou a sua juventude. No entanto, o aconselhado exílio na «Terra Alta» não lhe trará o sossego prometido. Ou duradouro. 
Por lá ainda pairam os fantasmas da Guerra Civil e a metralha de uma batalha sangrenta que contrastam com a beleza imponente e silenciosa do local (e as horas de leitura na biblioteca) mas não só o passado se imiscui na vida de Melchor como um acontecimento brutal altera o compasso da localidade: um crime sangrento que brutaliza o ramo mais antigo da família Adell; que como uma árvore enorme a tudo faz sombra.

“No ar paira um cheiro intenso a sangue, a carne torturada e a suplício, e uma sensação estranha, como se aquelas quatro paredes tivessem preservado os uivos do calvário a que assistiram; ao mesmo tempo, Melchor Julga sentir no ar do aposento – e talvez seja isto que mais o perturba – um certo aroma de exultação ou de euforia, alguma coisa para a qual não encontra palavras mas que, caso as encontrasse, poderia definir como o rasto festivo de um carnaval macabro, de um ritual demente, de um sacrifício humano desfrutado.”

Um crime que parece fruto de um ódio frio e destruidor, mas não indiscriminado, coloca Melchor num estado obsessivo. Em apneia, pela persistência quase tóxica, desassossegando o percurso que tem vindo a construir com Olga (e com os livros).

“(…) retirarem-se sem opor resistência, como se se rendessem diante daquele suicídio colectivo ou como se estivessem tão fartos da guerra como os seus inimigos e já não tivessem disposição para continuar a matar.”

Cercas é exímio nas descrições, no cortar o friso cronológico e suspender cada acção outra, história atrás de história, sabendo com toda a mestria selecionar, cirurgicamente, que eventos nos revela, por vezes telegraficamente, noutras num tom poético, capaz de colocar o leitor no cenário, seja no mais macabro ou em perseguição ou entre os lençóis com o casal que descobriu o prazer de ler em voz alta um para o outro.

«Aconteceu-lhe tudo o que podia acontecer-lhe. Sentiu tudo, sofreu tudo, experimentou tudo, suportou tudo, perdeu tudo, chorou tudo. No entanto, é um erro acreditar que a sorte se esgota e que se toca o fundo de alguma situação, qualquer que seja. Aquele que sabe isso vê em qualquer escuridão.”

Nessa escuridão pulsam sentimentos que moldam decisões auto-destruidoras, denunciando que as feridas não fecham na totalidade. E pior, alimentando desejos profundos de vingança e justiça. Porém,
mas a que preço e com que legitimidade? É sobre isso que Cercas questiona e reflecte neste seu primeiro policial.

domingo, 7 de agosto de 2022

«Gente Ansiosa» de Fredrik Backman - Opinião


Imaginem o enredo que dá, colocarmos oito pessoas ansiosas, prestes a se tornarem reféns acidentais de uma outra pessoa pouco experiente nas lides do crime (pouco!) organizado e a contar serem salvas por duas outras pessoas que não se entendem, embora sejam policias, são também pai e filho.

"(...) algo que é impossível aos filhos compreenderem e que os pais têm vergonha de admitir: na verdade, não queremos que os nossos filhos persigam os seus próprios sonhos nem que sigam as nossas pegadas. Queremos, sim, seguir as pegadas deles enquanto perseguem os nossos sonhos."

Azar de Jim que não queria Jack como polícia. E, aparentemente, azar daquele apartamento cheio de gente que conta com eles para desvendar o roubo e a consequente situação de reféns. Situação essa, que, à boa maneira de gente ansiosa, se altera rapidamente com pessoas muito diferentes a descobrirem laços que julgavam inexistente e a se identificarem e protegerem mutuamente

"Esta coisa das palavras é complicada, em particular quando uma pessoa é mais velha e tudo o que quer dizer a alguém mais novo é: «Vejo o teu sofrimento, e isso faz-me sofrer.”

E para ver o sofrimento do outro, basta por vezes parar para ouvir realmente, com espaço e admitir o quão fácil, horrível e assustador é fracassar nisto de ser adulto, ainda para mais quando ser adulto envolve ajudar outros a tornarem-se adultos.

E até quando seguimos nisto de tornarmo-nos adultos?

Conhecendo Roger e Anna-Lena, diríamos que uma vida toda. Ou é apenas medo pelo excesso de tempo, quando temos tempo para pensar que já nos falta pouco tempo? Parece um pouco idiota, mas a ansiedade não nos torna a todos um pouco idiotas?

«Gente Ansiosa» de Fredrik Backman é um livro cheio de perguntas, mesmo quando aparecem sobre a forma de respostas. É um enredo com tantos enredos dentro, tantos quantos são os personagens. Aliás, mais, é gente com gente dentro. Gente com problemas e ansiedades como as da gente 😉 E ao mesmo tempo é uma narrativa cheia de saltos e perspectivas, momentos tensos e outros de calmaria. E lucidez. Pois até mesmo «gente ansiosa» tem momentos de lucidez, como Zara na psicóloga a debater o que é a felicidade. A debater não, a afirmar.

Tal como o livro se vai afirmando com pequenas verdades: «[…] a solidão é como a fome: só nos apercebemos do quão esfomeados estávamos quando começamos a comer.»



domingo, 17 de julho de 2022

«Talvez devesses falar com alguém» de Lori Gottlieb :: Opinião


«Talvez devesses falar com alguém» de Lori Gottlieb é viciante! É também atrevido e honesto e vai destapando alguns mitos, lugares-comuns e meias verdades sobre todos nós e a intervenção terapêutica. E a necessidade que todos temos dela. Porque temos! Embora mascaremos confissões e partilhas e ainda seja tabu falar de dificuldades emocionais e do quanto comprometemos a nossa saúde mental.

Sem quaisquer rodeios, a primeira parte abre assim: “Nada é mais desejável do que ser-se libertado de um padecimento, mas nada é mais assustador do que ser-se privado de uma muleta.” (James Baldwin). E, nas suas próprias palavras, acrescenta: “Um dos passos mais importantes na terapia é ajudar as pessoas a assumir a responsabilidade pelos seus problemas actuais, porque, assim que compreendem que podem (e devem) construir as suas vidas, ganham a liberdade para gerar mudança. Ou, como também rapidamente nos diz: “A terapia provoca reações estranhas, porque, de certa forma, é como a pornografia. Ambas envolvem alguma nudez. Ambas podem causar alguma excitação. E ambas têm milhões de utilizadores, a maioria dos quais não divulga essa utilização.”

Passando esta introdução de posicionamento, contextualização e revelação, o que Gottlieb pretende dizer é que precisamos reescrever a narrativa da nossa vida, romper com o discurso desencorajador e aceitar que muitas vezes necessitamos de acompanhamento na dor e a terapia é um espaço seguro para essa partilha, compaixão (e auto-compaixão) e construção do futuro.

“Quando o presente se desmorona, o mesmo acontece com o futuro que lhe tínhamos associado. E ficarmos de repente sem futuro é a maior de todas as reviravoltas. Mas se passarmos o presente a tentar consertar o passado ou controlar o futuro, permaneceremos presos no mesmo lugar, perpetuamente desgostosos.”

Se algumas considerações nos parecem óbvias e rebatidas, é porque são, mas estão lá para nos relembrar disso mesmo: se são tão óbvias por que nos esquecemos tanto delas e de as pôr em prática?

Juntamente com essas chamadas de atenção, Gottlieb entra habilmente em explicações de foro psicológico que ajudam a atender o porquê de diversas situações, escolhas ou até mesmo da inércia, ajudando num auto-diagnóstico. Sem esquecer as emoções e os sentimentos que precisamos tratar com mais cuidado.

“Ocorre-me um pensamento que tenho muitas vezes quando vejo os meus pacientes autoflagelarem-se: Neste momento, você não é a melhor pessoa para falar consigo acerca de si mesmo. Há uma diferença, explico-lhes, entre culparem-se e assumirem a responsabilidade, o que é o corolário de algo dito por Jack Kornfield: «Uma qualidade que advém da maturidade de espírito é a gentileza. É baseada no conceito fundamental de autoaceitação.» Na terapia, damos preferência à autocompaixão (serei humano?) em detrimento da autoestima (um julgamento: serei bom ou mau?).”

Pode parecer o mesmo, mas Lori explica que não. A verdade e a aceitação vêm pouco a pouco da verbalização e afirma-se com a importância de ouvir-se a si mesmo, da responsabilização com a realidade e a gestão de expectativas. E toda a vulnerabilidade que é precisa no processo. 
Não é um processo fácil, mas desmistifica-lo é um dos objectivos deste livro, sempre com humor e honestidade:

“Podemos ajudar os pacientes a encontrarem a paz, mas talvez um tipo de paz diferente daquele que pensavam encontrar quando começaram o tratamento. Segundo a famosa frase do falecido psicoterapeuta John Weakland, «Antes de uma terapia bem-sucedida, são sempre os mesmos problemas. Depois de uma terapia bem-sucedida, é um problema a seguir ao outro.”

Mas não esmoreça. 
E lembre-se: «Se a rainha tivesse tomates, seria o rei.”

quarta-feira, 13 de julho de 2022

«A Porta» de Magda Szabó :: Opinião


«A Porta» é um relato enigmático, metafórico, desconcertante e desconcertado, no quanto releva a inadequação das relações humanas quando falha a comunicação. Podemos até dizer que a comunicação é mesmo uma porta, metáfora de fronteira, linha ténue e frágil, cheia de sombras: a das classes, a do binómio urbano-rural e a do fosso entre o que é braçal e intelectual, sem esquecer o tanto que não pode ser dito com todas as palavras e que é político e militante. A critica apelida-a de uma obra corajosa e confessional e nós leitores não somos capazes de ficar indiferentes aos mundos de Magdusca e Emerence (e ao de Viola) que colidem contra diversas portas. A da violência e a da sensibilidade (ou falta dela!) talvez sejam as que mais apoquentem o leitor, no entanto, Szabó consegue redenção pelo brilhantismo com que escreve, empregando a narrativa de inúmeras camadas.

“O que eu vira, Viola à mesa, talvez só aos meus olhos fosse uma imagem idílica, e o festim de Emerence devia representar outra paixão mitológica, pois, pensando melhor, não os via à mesa como um bravo cão recompensado e a sua dona mas como dois convivas de um terrível banquete da mitologia, e a carne engolida pelo animal não passava, acaso, de uma aparência de assado, não era comida, mas invisíveis fibras e vísceras, uma espécie de sacrifício humano, como se Emerence, com as suas lembranças e as suas boas intenções, quisesse servir ao cão a pessoa que não tinha vindo à tarde (…) beliscando o que havia de mais importante nas profundezas de Emerence, de que ela nunca falava com ninguém.

(…). Voltara, enfim, à casa o silêncio, e, uma vez mais, nem me dei conta de que este silêncio era tão falacioso como a calmaria antes da tempestade, comprazia-me nele, quando as orelhas baixas de Viola e a sua atonia deveriam ter-me feito compreender que alguma coisa estava para acontecer.”

É fácil compreender que este triângulo encerra parte do enigma para toda a acção, porém, qualquer uma das mulheres é mais difícil de entender que qualquer animal, embora dotadas da capacidade de fala, pouco fazem uso dessa ferramenta. Emerence é secreta, desapegada (das pessoas) e noir. Tem episódios grotescos nos rasgos de violência que profere ou tenta; e Magda não se torna menos grotesca e chocante por “apenas” assistir. Também ela é enigmática nesse seu lado calado e de consentimento, para o qual a intelectualidade não lhe confere nenhuma vantagem. São duas mulheres sabedoras e vividas de realidades e cruezas distintas e exercem, uma sobre a outra, uma toxicidade que oscila, mas alimenta a amizade. Amizade essa que flui, aos repelões, como um cão que passeia à trela nas mãos de um dono teimoso que não entende que o passeio é do cão e não o deixa ir olfatar tudo o que precisa.

“Não me foi fácil admitir que (…) a sua existência tornara-se uma das componentes da minha vida, e, no início, fiquei apavorada com a ideia de a perder, se eu lhe sobrevivesse, o que aumentaria o meu exército de sombras, cuja presença imanente e intangível me perturba e mergulha no desespero. (…) por vezes, ela tratava-me de um moto tão rude que um estranho, se assistisse, se espantaria por que razão eu tolerava isso. Tal não contava: há muito que eu já não prestava atenção aos movimentos tectónicos que agitavam a superfície de Emerence; ela deve ter descoberto o mesmo, e, por mais que não quisesse arriscar o coração, (…), também ela não podia escapar à sua afeição por mim.”

A insólita e dramática amizade que as mulheres mantêm terá repercussões ao longo dos anos. São aprendizagens e partilhas, autênticas catarses, e poderão ter efeito idêntico no leitor.

«A Porta» é um livro para se ler as entrelinhas, para se reflectir no não dito, nos gestos que morrem à beira de uma mão que não se enlaça noutra. É um relato que se espelha em nós e nos nossos, para se crescer e chorar, para se espantar - espantando fantasmas - e revoltar-se com a inércia, mesmo sabendo que não agir é em si uma acção, uma tomada de posição. É um relato para despertar compaixão, fé e cumplicidade, para se saber que até a mais forte das portas pode ser abalada e pisada, até mesmo quando as vontades são do Bem.

“- Há-de matar. Ainda há-de matar (…). Saiba que não se pode prender aquele para quem chegou a hora, porque nada lhe pode oferecer no lugar da vida. (…) O melhor presente que se pode dar a alguém é impedi-lo de sofrer.”

“(…) não analisara a fundo até que ponto a paixão é um sentimento ilógico, mortal, imprevisível, e, contudo, conhecia a literatura grega, que não representava mais do que as paixões, a morte, cujo o machado cintilante é sustido pelas mãos enlaçadas do amor e da afeição.”

“Ora, ora! Viverá eternamente, isso não me preocupa. Agora, ao escrever estas linhas na máquina, sinto como se tivesse decidido pela segunda vez, e definitivamente, o seu destino, porque, nesse momento, lhe larguei a mão.”

«A Porta» é um livro cheio de contradições. Como a vida!

Quem o ler não lhe ficará indiferente.

terça-feira, 21 de junho de 2022

«Cai a noite em Caracas» de Karina Sainz Borgo :: Opinião

 


“(…) continuo a pensar que às palavras há que arrancar-lhes a pele. Não há outra maneira para perceber de que são feitas.”

A frase pertence a Saramago, mas encontrei-a enquanto relia este fabuloso (mas um tanto assustador!) «Cai a noite em Caracas» e fez-me todo o sentido, pois é exactamente o que se passa com as palavras que Karina Sainz Borgo encontrou, ou escolheu cirurgicamente, para aprisionar o leitor, trespassá-lo com um dardo de medo, tal como Adelaida Falcon vive os seus dias à beira de cair nas mãos dos algozes.

Um relato de sobrevivência que cruza escuridão, medo e silêncio com a desumanização bruta que gera força, coragem e engenho tudo na mesma medida gritante de violência, desenraizamento e luto.

“«Lá» era um passado. Um lugar do qual pareciam ter saído na condição de nunca mais o mencionarem. Uma palavra que ardia como o coto de um braço amputado.”

Um romance feito furacão distópico que com a força bruta do tom profético, lança um alerta sobre o quão ténue é a linha que nos separa de um passado esgaçado pela guerra e do quanto a história se repete. E olhar para trás afunda e Adelaida larga tudo, tudo o que é mais seu, os seus mortos, mas também os vivos, a quem a sobrevivência morde com os dentes afiados da culpa. Uma culpa que luta por migalhas onde até os afectos são racionados.

“Os vivos lutam às dentadas pelas sobras.”

Num país triturador, munido de uma infantaria violenta e impune, colocando todos em perigo e numa espécie de antecâmara do além-túmulo, seres na iminência de apodrecer lutam sem sequer ter direito a gritar. Tiram-lhes tudo, até o direito a enterrar os seus mortos. A ocupação chegou até aos ossos e não o inocente já não se distingue do carrasco. Por isso, abatida, desenraizada e numa demolição em espiral, Adelaide Falcon, filha, enterra Adelaide Falcon, mãe. Não há renascimento possível, nem na fuga nem nas chamas, restar-lhe-á a vocação para as palavras para conseguir firmar memórias, numa biografia fragmentada entre identidades separadas por um Oceano coberto pelo cinzentismo da História que castiga meninas e mulheres, mulheres-rocha que cimentam o mundo.

“Mulheres infelizes que, às pancadas, (…) que rebentam as suas dores contra um almofariz (…) uma linhagem de fêmeas a quem o mundo só deu braços para alimentar a prole que manava da genitália, sempre estafada de tanto parir. Mulheres rochosas, com coração de pão duro e a pele curtida (…)
sem braços nem coxas tão fortes como os daquelas negras, essas catedrais de carne preta que cantavam de pé diante de uma chapa de ferro. Maneiras de chorar semelhantes aos incêndios do campo. (…)
Fechei os olhos e inspirei com força os restos de uma biografia feita à paulada. A vida foi aquilo que aconteceu. Aquilo que fizemos e que nos fizeram. O tabuleiro onde nos abriram ao meio como um pão prestes a crescer.”

Karina Sainz Borgo conseguiu espelhar uma realidade dura (e assustadora) e ainda assim homenagear as mulheres numa Venezuela triturada e dilacerada, mas também qualquer mulher, unindo-as por uma ancestralidade que é transversal a todas, sem esquecer o lado de denúncia que qualquer cenário de ditadura e guerra exige, para assim cumprir com a militância que o testemunho de qualquer exilada, refugiada e migrante traz consigo e com a sua luta.  


sábado, 11 de junho de 2022

A Vida Secreta das Viúvas Panjábi de Balli Kaur Jaswal :: Opinião


"- O que foi? - perguntou ela, desviando o olhar. Ele esticou o braço e, suavemente, virou-lhe o rosto para o seu. Olharam-se e os lábios dela estremeceram. As gargalhadas encheram a divisão; eram como uma baforada de calor no primeiro dia de verão. Quando parara de rir, começaram de novo e repararam que estavam ambos a chorar. Limparam as lágrimas um do outro.
- Aquelas histórias... - disse Sarab. - Aquelas... histórias... - estava encantado."

Balli Kaur Jaswal traz até ao leitor «A vida secreta das viúvas panjábi» uma comédia romântica que junta uma pitada de erotismo e um toque de policial. Afinal há um crime por resolver que a pouco e pouco fica mais a descoberto, enquanto um grupo de viúvas ou bibis, de idades bastante variadas, unem experiências, preocupações, anseios e desafios que ditam para o papel sobre o disfarce de contos eróticos.

E digo disfarce, já que a sexualidade parece o tema central que desafia as restrições impostas a estas mulheres, aliás a todas a da comunidade panjábi, mas nas entrelinhas, dos contos e das conversas, as restrições e condicionalismos são inúmeros e atentam à moral e aos costumes que elas trazem desde a Índia até uma Londres supostamente cosmopolita. Por isso, Balli Kaur também aborda a comunidade londrina no mosaico que a caracteriza, tocando em temas como a imigração e a desigualdade de género. 
Mas muito mais.
Existem diversas camadas disfarçadas sob o estilo de um romance leve. Que o é. É verdade. Até por um lado um tanto inocente e sonhador, mas que também é receita de sucesso para fazer passar a mensagem e lançar algumas sementes, tal como as aulas que a protagonista, Nikki, começa a dar.

"- Mas o sexo e o prazer são instintivos, certo? Sendo bom e satisfatório, faz todo o sentido, até para a pessoa mais analfabeta. Tu e eu estamos apenas habituados a vê-lo como uma invenção avançada, porque apenas ficámos a saber da sua existência depois de aprendermos as outras coisas básicas, como ler, escrever, aprender a mexer num computador, tudo isso. Para as viúvas, o sexo vem antes de todo esse conhecimento."

Neste excerto entre Nikki, a inusitada professora e Jason, que mesmo sendo um homem também se vê a braços com as tradições, podemos perceber que as descobertas e revelações não estão reservadas apenas ao grupo de viúvas, aliás, um vasto grupo de pessoas tem aprendizagens a retirar dos desafios que irão testar esta comunidade panjabi de Southall que de um momento para o outro achou que era mais do tempo de juntar mais masala às receitas mais ancestrais.


quinta-feira, 12 de maio de 2022

“Uma Solidão Demasiado Ruidosa” de Bohumil Hrabal :: Opinião

Depois de mais de vinte cinco anos da primeira edição (Afrontamento, 1992), a estrondosa obra «Uma solidão demasiado ruidosa» de Bohumil Hrabal volta aos escaparates portugueses (Antígona, 2019).


"Só o Sol tem direito às suas manchas." 
Goethe


Um homem trabalha há 35 anos na companhia de papel velho, sujo e manchado e considera-se igualmente velho, sujo e manchado tal como as toneladas de enciclopédias e livros que destrói numa prensa hidráulica, também ela velha. Histórica, provavelmente!
 
"(...) sou culto independentemente da minha vontade e, assim, nem sei bem quais as ideias que são minhas e saídas da minha cabeça, e que ideias li. (...) afinal nem leio, apenas colho com o bico uma bela frase e chupo-a como um rebuçado, como se bebericasse um cálice de licor durante muito tempo, até que ideia se espalhe em mim como o álcool; ela dissolve-se em mim tão lentamente que penetra não só no meu cérebro e no meu coração mas pulsa também nas minhas artérias até as raízes capilares (...) o meu cérebro é feito de ideias prensadas pela prensa hidráulica - são pacotes de ideias - a minha cabeça é a noz da Cinderela, cujo o cabelo foi consumido pelo fogo."

É assim que se descreve e se sente este "terno carniceiro" que treme com as palavras que lê e se alimenta a cântaros de cerveja que o deixam desperto, para assim ter mais horas para ler e tratar de acumular livros que se empilham, periclitantemente, em forma de dossel, acompanhando-lhe o sono.

"E tenho a sensação física de que eu próprio sou um pacote de livros prensados, que também em mim existe uma pequena chama semelhante à de um esquentador, à de um frigorífico a gás, uma pequena lamparina eterna que todos os dias reanimo com o óleo das ideias que li durante o trabalho e independentemente da minha vontade nos livros que agora trago na pasta para casa."

Entre episódios sobre livros e outros da sua vida pessoal, Hanta consegue, como nas palavras de Lau-Tseu: conhecer a vergonha e conservar a Glória, já que o episódio com Mariazinha pode também ser uma metáfora para os seus dias narrados do fundo da cave bafienta, que habita com os seus livros, ambos condenados ao esquecimento por uma sociedade que ruboriza e se excita perante mais uma mancheia de ideias prensadas. Quadradas.

"(...) vivo num país que sabe ler e escrever há quinze gerações; habito um antigo reino onde havia e continua a haver o hábito e a obsessão de prensar pacientemente na cabeça as ideias e as imagens que trazem um prazer indescritível e uma mágoa ainda maior; vivo entre pessoas que são capazes de dar até a sua vida por um pacote de ideias prensadas."


Uma solidão demasiado ruidosa é uma ode ao amor pela literatura e aos livros como objetos, à arte em geral, mas também uma crítica à sociedade entalada entre o nazismo e o comunismo e daí a destruição massiva de livros e ideias. Um esmagamento contínuo.

Perdido muitas vezes ente o delírio, o sonho e alguns pesadelos, Hanta revisita grandes autores e os seus clássicos, filósofos e seus ensinamentos, mas não se esquece de aprender com um simples rato ou seu tio agulheiro, a quem quer copiar a ideia de um jardim de delícias, quase tão peculiares e bizarras quantas as de Bosh, no entanto, o futuro é uma ameaça em breves e frenéticos ruídos de tiquetaque, tiquetaque. 

"(...) eu consolava-me com a esperança louca de que a minha máquina faria greve, ficaria doente, fingiria que as suas rodas tinham ficado obstruídas e as correias partido, mas até a minha prensa hidráulica me traiu: trabalhava de uma forma completamente diferente, como quando era jovem: bramia, trabalhando com toda a força, e chegando à sua velocidade máxima tinia; desde o primeiro pacote tinia sem parar, como se estivesse a gozar comigo, como se quisesse demonstrar que só debaixo das mãos da brigada socialista do trabalho desenvolvera todas as suas capacidades e possibilidades.

Esta obra preciosa de Hrabal é quase simples como madeira tosca (e o amor simples da sua ciganita), sensível como se pudesse desmoronar-se apenas "com o som da voz", mas poderosa como a prensa que avança bruta e friamente, impondo-se a qualquer tentativa de revolução.

Ainda assim, se nascer é subir e morrer é entrar, Hrabal demonstra, através do activismo de Hanta, que tal como ratos ou os excrementos, também os livros podem ser destruídos, mas dificilmente desaparecerão por completo: "(...) do texto a mais sobra do que ideias imateriais que esvoaçam no ar, repousam no ar, se alimentam do ar e para o ar regressam, por tudo é, afinal, apenas ar, assim como o sangue existe e não existe, simultaneamente, na hóstia sagrada."


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

«O Século da Solidão» de Noreena Hertz :: Opinião

 

“Eu aninhada no corpo dele, o meu peito encostado às suas costas, as nossas respirações sincronizadas, os pés entrelaçados. Foi assim que dormimos mais de 5000 noites.

Mas agora dormimos em quartos separados. Durante o dia, bailamos em ziguezague a dança da distância dos dois metros. Abraços, carícias, beijos, a nossa estenografia diária, agora proibida; «fica longe de mim» é a minha nova manifestação de ternura.”

Podia ser o início de um romance, tendo como pano de fundo a pandemia mundial que a todos confinou. Uma pandemia também de isolamento que a todos trouxe medo e uma outra dimensão da solidão e tantas questões de foro psicológico levantou, juntamente com uma constatação: este é O Século da Solidão e a culpa não foi da pandemia, como tão bem nos elucida Noreena Hertz ao longo de uma boa dezena de capítulos onde percebemos quão longos são os tentáculos da solidão.

Contrariando a ideia de global, de maior conexão, de mais informação disponível, melhores condições e maior esperança de vida e de toda a modernidade do nosso século, a verdade é que tudo parece contribuir para que sejamos só mais um ratinho solitário numa roda movida a pilhas inesgotáveis que nos torna cada vez menos sociáveis, mais tribais e mais zangados. Nunca a busca por sentido foi tão complexa e vasta, alimentada por tanta informação dispersa e desconectada. Numa era onde tudo pode ser personalizado, também a solidão atingiu números assustadores e conclusões científicas tão claras e alarmantes: a solidão consegue ser medida no quanto é nefasta e tóxica num corpo e permite afirmar: a solidão mata!

“(…) a nossa capacidade de nos sentirmos sós e a nossa dor e inquietação quando nos sentimos distantes de outros seres humanos, são uma brilhante característica evolutiva. «Nunca devemos querer desligar o estímulo da solidão», disse John Cacioppo (…)”

“Por um lado, um corpo solitário é um corpo stressado: é um corpo que se fatiga facilmente e está excessivamente inflamado. (…) Com a solidão crónica, não existe interruptor para desligar que lembre o corpo que se deve acalmar. Por isso, a inflamação induzida pela solidão pode tornar-se crónica - «o novo normal». (…) a solidão é um tipo de stress que pode amplificar maciçamente os efeitos de outros stresses. (…) Um estudo influente sugeriu que a solidão prejudica o funcionamento de várias glândulas endócrinas que segregam as hormonas em todo o corpo e estão relacionadas com a nossa resposta imunológica.”

O mundo actual padece de solidão e o seu eco propaga-se a todas as dimensões da sociedade. Explicando diversos fenómenos, como por exemplo o aumento da viragem para a aceitação de políticas extremistas, mas também a exploração da solidão como negócio. Os exemplos são variados e Hertz relata episódios dos mais variados países e classes sociais para que percebamos que a solidão está generalizada e apresenta-se à frente dos nossos olhos das mais variadas maneiras. Cabe-nos observamo-nos bem, a nós mesmos e aos outros e agir: «fazer para não perder!»

 

“Para Arendt, o totalitarismo «baseia-se na solidão […] que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o Homem pode ter.»

Encontrando os seus adeptos nas pessoas cuja «principal características […] não é a brutalidade nem a rudeza, mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais normais», ela argumenta que, para quem «sente não ter lugar na sociedade, é na entrega do seu eu individual à ideologia que o solitário redescobre o seu propósito e amor-próprio.»”

A bibliografia é vasta e detalhada e as leituras são inúmeras para o leitor que quiser mais informação além da aqui compilada por Hertz, embora apenas esta leitura já possa desencadear um sem número de pensamentos e acções com vista ao objetivo proposto pela autora: reconectar, recuperar o sentido de comunidade, partilhar, repensar e agir.

Precisamos agir!

Precisamos recuperar ligações com os que nos rodeiam, desde a família, aos vizinhos, aos colegas de trabalho ou ao simples acto de falar com desconhecidos, quebrando a corrente da era digital e deixando o “sem fios” apenas para os dispositivos eletrónicos, sendo capazes de nos desligar da coisa certo ou seja, fugir ao chicote digital das redes sociais e tantas outras aplicações que mascaram as relações interpessoais.

A epidemia do século é a solidão e é disso que precisamos ter consciência, compreendendo até onde chega essa doença e como afecta a todos. A todos, mesmo! E só assim poderemos actuar.

Sendo assim, anote algumas ideias-chave: é preciso restaurar o conceito de comunidade e humanizar as cidades e bairros; queira participar activamente no seio de sua comunidade; é preciso reaprender a conversar para “discutir” melhor; olhar os outros nos olhos para nos sincronizarmos uns com os outros; abraçar, abraçar mais e mais prolongado, pois abraçar cura; sentir-se útil por participar, pertencer, cuidar e ser cuidado; informe-se melhor para compreender melhor e aceitar, mas também para desconfiar menos; tire os olhos do telefone e foque-os no mundo à sua volta; cuide da sua saúde física e mental sem medos; avalie aspectos negativos do que o rodeia, especialmente no trabalho e avalie para equilibrar melhor o binómio vida-trabalho.

Em suma, para equilibrar uma série de aspectos nas nossas vidas modernas o melhor será mesmo fazer algumas coisas à moda antiga!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

«A Psicologia da Estupidez» de Jean-François Marmion :: Opinião

"«O bom senso é a coisa mais partilhada do mundo», escrevia Descartes. Então e a estupidez?"

Em jeito de advertência, Jean-François Marmion, compilou uma série de textos de altas personalidades na análise da estupidez e em muitas outras questões inerentes à existência do ser humano, para nos alertar para o facto de que somos todos um bocado estúpidos (mesmo que inteligentes!). Pois só um estúpido reconhece outros estúpidos!

São mais de duas dezenas de textos, para tipificar a anatomia dos estúpidos, a fim de afirmar que a armadilha da estupidez é por vezes habilmente tecida e estrategicamente composta, levando individualmente um estúpido a engrandecer a sua estupidez, aderindo às massas que se metamorfoseiam em nome de ideias adulteradas, a tolice obstinada e a arrogância que cega.

"O estúpido por excelência condena sem apelo, de imediato, sem circunstâncias atenuantes, fazendo apenas fé nas aparências que, além disso, ele se limita a vislumbrar por entre os seus antolhos. Sabe mostrar-se zeloso para reunir os seus semelhantes, incitar ao linchamento, em nome da virtude, das conveniências, do respeito. O estúpido caça em matilha e pensa como uma manda."

Por entre uma manada de teorias espreme-se o lado científico que explica as atitudes dos estúpidos: "Ele tem dificuldades em compreender que a sorte é a interpretação que o estúpido dá às probabilidades" e começamos logo a rir e a constatar que realmente somos todos um bocado estúpidos, afinal quem é que não nomeia constantemente a sorte como escapatória para um comportamento, afinal, estúpido?

Abra bem o radar, pois as conclusões vão deixá-lo ainda mais sensível à estupidez. À sua e à dos outros, já que a teoria também explica que: "(...) é graças ao expediente de negatividade que somos capazes de detectar mais rapidamente um estúpido do que um génio num meio social complexo."

Claro que no capítulo dedicado à tipificação e em mais uma ou outra entrevista podemos perceber que, para além da estupidez ter vários níveis, tipologias e graus de imunização do sujeito estúpido, há todo um complexo índice de proporções quando falamos em estupidez colectiva. E essa é a mais preocupante. Seja pela forma como eleva a estupidez de cada indivíduo ou, quando em massa, tornando os actos galopantes e até descontrolados. Ou viralizando, estendendo os tentáculos numa escala desconhecida. 

Os tentáculos analisados nos vários textos tocam aspectos tão banais, como a simples tolice e idolatria quase inocente do tolo teimoso, mas inofensivo do que outros e depois exemplos mais sofisticados e maquiavélicos que estrategicamente alimentam teorias da conspiração e esta era do pós-verdade e da manipulação pela redes sociais. Por isso, temas como as eleições americanas, a vacinação, o coronavírus, a desinformação e o culto do falso, a idolatria fácil e instável, o negócio da felicidade ou os crescentes nacionalismos, são terrenos férteis par analisar comportamentos estupidificantes. Mas também se analisam livros, filmes, séries e temas em geral que estão presentes no nosso quotidiano e nesses casos as entrevistas são excelentes pontos de partida para o debate.

É importante também referir que são vários os textos que fazem a ponte entre a estupidez e outros traços de personalidade, sem esquecer o peso das emoções e até as terapias e a necessidade constante de autoanálise, relembrando que se a estupidez é uma armadilha, o tempo também o é: "(...) mesmo quando encontramos o tempo certo para interagir com o passado, nunca conseguimos alterá-lo." (Adelino Cunha) 

Em suma, é um livro ao qual devemos de vez em quando voltar, para que não nos percamos numa certa cegueira de achar que um produto acabado.



sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

"O Segredo de Christine" de Benjamin Black e «O Mar» de John Banville - Opinião



Fui ler «O Segredo de Christine» por ter gostado de «O Mar» de John Banville. Black é o pseudónimo de Banville quando este escreve enredos mais policias, no entanto, voltando agora a ambos os livros, às suas personagens e enredos, e aos dramas que aqui são revelados, descobrimos mais traços comuns do que diferenças. 

Em «O Mar» focamo-nos em Max Morden, viúvo, introspectivo, silencioso e em quem o passado lhe pulsa como um "segundo coração".
Em «O Segredo de Christine» também Quirke é viúvo e sente que o passado o persegue, é igualmente um homem solitário e silencioso que prefere ou, o frio e esclarecedor ambiente da morgue ou o calor de mais um copo.
Ambos vêm de uma classe social mais baixa, mas em alguma fase da vida foram adoptados por uma elite que até certo ponto os protegeu das asperezas da vida, pelo menos até serem tocados pela doença, a mentira e a morte.

"Tudo aquilo que realmente sempre desejei foi sentir-me defendido, protegido, resguardado, refugiar-me numa toca de tepidez uterina e ficar acocorado lá dentro, escondido do olhar indiferente do céu e das asperezas do ar agreste."

A morte e a doença juntam-se a outros ressentimentos, que deixam o ambiente pesado e sórdido, quase insuportável, tornando o presente numa dissimulação e fingimento constantes que apenas deixam espaço para sentir as memórias e os escombros do passado, camadas impressas nestes homens como se de um quadro se tratassem. 

No entanto, ambos os personagens sentem que já viveram a vida com outra energia e até dotados de uma percepção sensorial pulsante. Tinham uma crença diferente no futuro. Sentiam-se vivos. Conectados.

"A vida, a verdadeira vida, deve ser uma luta constante, cheia de acção (...), que a vontade não pára de bater com a cabeça dura contra a parede do mundo."
"Sempre sofri do que julgo ser uma percepção extremamente penetrante da mistura de aromas que emanam da presença humana (...) a fragância acre e acidulada da própria vida..."

No entanto, ambos os enredos preferem explorar o peso do passado e transformar os protagonistas em pequenos botes de tristeza à deriva "(...) numa fúria muda, carregando nos punhos fechados as frustrações do dia como se fossem bagagem." Tanto Max como Quirke experimentam um acumular da infelicidade, essa espécie de zumbido agudo e incessante mas inaudível que lhes apaga o rasto em direcção ao futuro.

A morte, o passado, as memórias ou as descobertas febris da juventude são tão personagens como estes homens, bem como a intensidade da palavra, a forma cuidada e pensada com que o autor escolhe caracterizar os traços de cada interveniente, seja uma mulher a quem que cobiçam os seios altivos mas proporcionais à tristeza que carrega; a janela como testemunha que revela e espelha uma dor; a gaveta bafienta que encobre segredos; uma praia que devolve a infância ou um copo, companheiro predilecto de uma noite.  

Banville tem a mestria de elevar linguagem, transformando-a num personagem que tudo une. Embora a certa parte assuma:
"Porém, mantenho-me firmemente sentado à mesa, a empurrar os parágrafos como se fossem fichas de um jogo que já não sei jogar."
Ou seja, parágrafo atrás de parágrafo, vá munindo o enredo com mais instrospecção do que acção: "seu mutismo era uma emanação penetrante e saturante. Não dizia nada, mas nunca estava silencioso."

Mesmo que se lhes mude o pano de fundo, "O Segredo de Christine" de Benjamin Black ou «O Mar» de John Banville, são narrados na invernia que pode ser o imaginário de um homem sozinho, a braços com os pensamentos, que com a força de uma barragem, estão prontos a desaguar.